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sábado, 17 de setembro de 2016
O Pastor - Parte 1
O primeiro pesadelo foi aos seis anos...
Lembrava-se bem... Era até estranha a riqueza de detalhes daquela lembrança... Ou talvez não fosse. Enfim...
Tinha seis anos.
E estava na praia com a família.
Naquele tempo, de férias escolares, não era incomum passar três meses na praia.
O pai conseguia transferências temporárias para uma agência bancária no balneário vizinho, e passava dois meses trabalhando no litoral e um de férias com a família, podia não apenas curtir a casa da família na praia, como ganhava um dinheiro extra, já que os voluntários da "operação verão" recebiam diárias para se hospedar e se manter no litoral enquanto trabalhavam.
Eram bons tempos.
Ele adorava o litoral. Amava o mar, ao qual conhecera com poucos dias de vida, e a liberdade do balneário, uma completa inversão da quase reclusão da vida na cidade grande, onde raramente podia brincar ao ar-livre.
Ter um quintal com grama onde brincar e a liberdade de andar vários quarteirões sem a supervisão de um adulto eram coisas às quais prezava sobremaneira.
A presença eventual dos primos e das primas também eram um bálsamo sazonal extra.
Tudo era uma maravilha, até a noite daquele sonho...
Em seu sonho, no quarto repleto de beliches onde se amontoavam as crianças na casa da praia, surgia pela porta pintada de azul-marinho brilhante um homem carregando um punhado de cogumelos.
Eram cogumelos vermelhos com longas hastes brancas organizados num arranjo como um buquê. O homem vestia botas negras, calças jeans escuras e um colete de couro preto aberto. Seu corpo era o de um velho musculoso, com pelos grisalhos no peito e na barriga. Tinha mãos nodosas e unhas levemente longas, mas o perturbador de fato, era a sua cabeça.
A cabeça era ao menos três vezes maior do que uma cabeça normal deveria ser.
Seus olhos, muito pequenos e juntos, fundos em olheiras profundas sob uma testa projetada, pareciam estar sempre sorrindo.
Tinha um nariz alongado e chato, praticamente dividido ao meio por um calombo bastante evidente. Sua boca tinha lábios finos e era larga, e seus dentes eram pequenos como grãos de arroz.
Não tinha praticamente sobrancelhas, e sobre cada olho tinha uma calosidade como um caroço subcutâneo do tamanho de meia bola de tênis. Esses caroços eram recoberto por uma pele inflamada, vermelha e lustrosa.
Tinha cabelos escuros cortados curtos, e uma barba fina que partia das suíças emoldurando-lhe o rosto e transformando-se em uma barbicha mais longa no queixo, que se estendia até a altura de seu peito.
Ele não falava, apenas sorria e olhava.
O sorriso dele não era amistoso, e suas intenções só podiam ser pérfidas. A única saída aceitável era a fuga, mas fugir parecia uma tarefa impossível...
O homem das flores... Era como ele o chamava, então, por causa do ramalhete... Conseguiu chegar perto o bastante para quase tocar...
Mas antes do toque, um despertar banhado em suor e lágrimas irrompia, atraindo a mãe do menino para o quarto, consolando-o e assegurando que fora apenas um pesadelo.
E era o que parecia ter sido.
Apenas um pesadelo. Uma ocorrência comum para qualquer criança.
Não tivesse se tornado uma ocorrência recorrente.
Na segunda vez que o homem das flores apareceu em seus sonhos, foi logo na noite seguinte.
Naquela segunda vez ele não carregava o ramalhete de cogumelos. Usava um chapéu preto, e tinha um cogumelo vermelho de haste longa preso à fita do chapéu.
Novamente ele sorria.
Com aqueles dentes miúdos, muito, muito mais de trinta e dois... Outra vez a fuga era a única alternativa.
Ela se deu na beira da praia, que estava deserta, iluminada por uma luz alaranjada como se o céu estivesse em chamas.
Novamente ele não correu. Apenas andou. E mesmo assim chegou perto o suficiente do menino para quase tocá-lo, sendo impedido no último instante pelo grito de despertar.
Novamente sua mãe correu em seu socorro, chegando esbaforida do quarto contíguo, oferecendo-lhe água, levando-o para lavar o rosto e assegurando-lhe que tudo não passava de um pesadelo.
Durante o dia, na mesa do café da manhã, o pesadelo virava até motivo de brincadeira de sua mãe e seu pai.
O menino sorria, mas a verdade é que temia que, à noite, acontecesse novamente.
E acontecia.
A sequência recorrente de pesadelos durou quase uma semana.
As visitas noturnas do "homem das flores" eram esquecidas durante o dia, mas conforme a hora de dormir se aproximava, se tornavam uma preocupação mais e mais palpável, uma sombra agourenta sob a qual era impossível estar tranquilo.
Especialmente para um menino de seis anos.
Ou sete.
Ele fez aniversário durante aquela sequência de pesadelos. E lembrava-se de ter ganho presentes dos familiares... Dinheiro dos mais abastados, miudezas bobas dos mais econômicos ou menos endinheirados.
Ganhou bobagens como um chaveiro... Uma peça de plástico negra com seis botões coloridos.
Quando pressionado, cada botão reproduzia um som... Metralhadoras, sirenes, bombas... Um tio apelidou o aparelho de "aporrinhola".
Ganhou carrinhos de brinquedo... Um boné estilo legionário... E, talvez o grande presente do dia, um canivete suíço.
Entregue sob sérias recomendações de jamais usá-lo para apunhalar um amiguinho, jamais correr com nenhuma das lâminas expostas, e usá-lo, não como um brinquedo, mas como uma ferramenta.
Não lembrava se a comemoração fora com bolo ou churrasco... O que lembrava é que, antes de sucumbir ao cansaço de um dia de verão, sol e festa, temeu novamente uma visita noturna do homem das flores.
E ela veio.
A perseguição se dera sobre um muro de lajotas vermelhas algo familiar, porém, no sonho, o muro parecia não ter fim, e se erguer muito, muito acima da altura do chão. Aos sete anos, ele conseguia correr por muito tempo em cima de um muro, mas não o suficiente.
Não sendo perseguido daquela maneira.
A perseguição terminou com todas as outras. O homem das flores próximo o suficiente para tocá-lo. Ele se aproximou tanto que o menino jurava poder sentir a respiração dele tocando-lhe as sobrancelhas.
Abriu a boca, que pareceu aumentar de tamanho, e a rotina de despertares aterrorizados se repetiu.
Novamente molhado de suor, com lágrimas nos olhos, a respiração ofegante e o coração palpitando.
Custou a voltar a dormir... Sua mãe e pai estavam com os outros adultos bebendo e conversando na garagem.
Podia ouvi-los à distância, e teve raiva por ninguém estar ali para ampará-lo.
No dia seguinte, enquanto andava pelas ruas do balneário, ele encontrou o muro de lajotas vermelhas onde fora perseguido em seu devaneio noturno.
Era um muro de tamanho normal. Não se estendia por quilômetros e quilômetros. Não era mais alto que um arranha-céu. Era apenas um muro de sessenta centímetros de altura, que servia de passarela apenas às formigas que trabalhavam ali.
Ele não soube ao certo o porquê... Mas municiado de seu canivete suíço recém ganho, se pôs a mutilar os insetos.
Arrancava-lhes as pernas... As cabeças... Dividia-lhes as seções do corpo e as via agonizar.
Passou nisso um bom tempo. Tanto que, quando se deu conta, o sol já se escondia, e ele, envergonhado da carnificina cruel que realizara, se levantou e foi pra casa, onde tomou banho e comeu como se nada houvesse acontecido.
Na hora de dormir, novamente temeu pela visita do homem das flores, mas não foi seu último pensamento.
Esse foi reservado às formigas.
Apiedou-se delas e teve raiva de si próprio pelo que fizera.
Jogou o canivete suíço na caixa de brinquedos comprometendo-se a não usá-lo nunca mais.
A surpresa não foi que, naquela noite, sonhou novamente com o homem das flores...
Mas sim que conseguia fugir dele com mais desenvoltura.
Novamente no muro de lajotas vermelhas da noite anterior.
Conforme corria para ganhar distância, algumas sessões do muro desmoronavam como se fossem feitas de areia.
Em seu interior, um líquido amarelado malcheiroso, parecido com vômito, corria em profusão.
O homem das flores parecia recear pisar naquele fluido fétido, e com isso, ficava para trás.
O menino, dando-se conta disso, saltava sobre o muro, garantindo que pedaços do muro se partissem e revelassem a nojeira em seu interior.
À certa altura de seus esforços, uma longa rachadura se projetou de onde o menino deu seu último pisão, o muro se desfez embaixo dos pés do visitante noturno, e ele caiu naquela poça nauseabunda, afundando aos gritos.
Não houve despertar apavorado, entre grito e lágrimas naquela noite...
Ele acordou tranquilo em sua cama, deitado de lado com a mão sob o travesseiro.
A única coisa estranha, era que seu punho se encerrava ao redor do canivete de descartara antes de dormir.
Ele não se preocupou com isso, porém... Estava demasiado feliz por ter vencido seu algoz.
Ou ao menos, era nisso que ele acreditava...
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