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quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Somos Todos Gente


Estava sentados lado a lado no balcão da lanchonete.
Ele comia seu sanduíche assinatura, o Ernest Hemingway, ela comia um sanduíche de rosbife cheio de creamcheese e cebola, uma combinação que o repugnava só de pensar.
Um sujeito na mesa próxima, nos seus quarenta e tantos anos, mexia descontroladamente no celular, resmungando o tempo inteiro.
Murmurava, ás vezes entre dentes, outras bufando, ou apenas falava, em tom de voz normal, atraindo olhares de pessoas próximas.
Xingava o aparelho sem parar.
"Anda, desgraçado...", "Mas que filho da puta...", "Vamo, seu merda...".
Resmungava sem parar, mas também se recusava a largar a maldita máquina. A comida semi consumida diante do prato era testemunho de uma relação de amor e ódio que parecia fadada seguir de maneira perene até que um dos dois vencesse, e naquele momento, a estratégia do celular parecia mais eficaz.
O sujeito praguejou novamente, ela sorriu. Rira na primeira vez, a reação foi se reduzindo conforme a piada se repetia e perdia a graça.
Ele tinha virado o corpo todo na terceira ou quarta vez que o sujeito insultou os deuses da moderna tecnologia, na esperança de que sua carranca de desaprovação e tamanho avantajado fossem suficientes para desencorajar o mau comportamento.
Ledo engano.
O camarada estava por demais atento à sua guerra particular com o telefone para prestar atenção no mundo à sua volta.
À certa altura, resmungando e amaldiçoando, simplesmente enfiou o celular no bolso, deu uma mordida no sanduíche diante de si à qual seguiu-se uma careta, e saiu.
Ela riu balançando a cabeça em sinal de comiseração, ele, bufou em desaprovação:
-Tu não odeia eles? - Ele perguntou, antes de morder o Hemingway, que sucumbia ante o peso da própria genialidade sujando-lhe o bigode e a barba com a generosa porção de molhos que empapavam o pão três queijos.
-Quem? - Ela perguntou. -Homens adultos que se lambuzam feito gurizinhos de seis anos comendo? - Riu.
-Não... - Ele respondeu, sorrindo e passando o guardanapo na boca e adjacências. -Gente. - Explicou.
-Gente? - Ela perguntou. -Tu diz gente que fala alto?
Ele maneou a cabeça como quem não ter certeza:
-Éééééééé... Bom... Sim... Sim. Essas pessoas que não cabem em si. Entende? Que não conseguem fazer as coisas em silêncio... Que demandam plateia.
-Pessoas mal-educadas? - Ela tentou restringir.
Novamente ele não tinha certeza:
-Hmmm... É, mas... Sabe, tem gente bem educada que é assim, também. Bem educada no sentido de polida. Bom vocabulário. Educação formal, não fala palavrão... - Ele explicou.
-Falar um bom palavrão é parte de uma educação formal completa. - Ela frisou. -Há momentos que pedem um palavrão por mais que tu seja um Houaiss em pessoa.
-É, eu concordo - Ele concordou. -Mas eu acho que não conseguir restringir... Não saber... Essa necessidade de compartilhar que as pessoas têm. Eu odeio isso.
-Compartilhar...? - Ela não entendeu.
-É, de dividir, se abrir, contar o que está havendo... Eu odeio isso. Eu odeio gente que precisa alardear pro mundo o que está fazendo. Que posta no Facebook que está no cinema, que tuíta que está no show, que posta foto da refeição no Instagram... Porque é que interessa pra alguém se tu está no cinema? O que é que eu quero saber se tu está no cinema? Qual é o grande feito? Quem liga? Basta ter vinte pila pro ingresso e pronto, qualquer apedeuta pode ir ao cinema.
-Até menos de vinte, dependendo... - Ela especulou.
-Exato! Até menos! - Ele concordou. -E ainda assim, as pessoas tratam isso como um evento. Como algo que precisa ser compartilhado. Como se alguém ligasse... Tu vai ao show, não pra ver o cantor que tu curte, nem pra ouvir as músicas que tu gosta, mas pra mostrar pros outros que tu foi. Tu não te contenta em comer uma boa refeição, tu precisa mostrar ela na internet ou no grupo do whatsapp pra receber o aval de outra pessoa, a experiência só existe se mais gente tiver visto, comentado e curtido, outrossim-
-"Outrossim"? - Ela o interrompeu.
Ele sorriu mas continuou:
-Outrossim, não aconteceu. Não foi completa. Não teve valor. Esse doente mental que saiu daqui, agora provavelmente brigou com o celular por vinte minutos porque não conseguiu postar uma foto do sanduíche, então o lanche ficou insonso, pálido, sem graça, e ele não comeu. Porque ele não sabia em si. Ele precisava compartilhar aquela refeição, e como não conseguiu compartilhar a refeição na rede, tentou de todas as formas compartilhar a sua frustração, mas, sem receber nenhum feedback, já que ninguém parou na frente dele fazendo sinal de "legal", ele foi embora.
-Na verdade esse sinal o pessoal chama de "joinha". - Ela disse, mostrando o polegar virado pra cima.
-Eu sei... Só me recuso a dizer "joinha". "Joinha" e "empoderamento". - Ele desdenhou.
Ela sorriu com uma expressão divertida.
-O que foi? - Ele perguntou.
-Nada... - Ela respondeu. -Mas obrigado por compartilhar comigo a tua opinião sobre o mundo. - Riu, antes de morder o sanduíche.
-Tu tinha razão, alemoa... Há momentos em que um palavrão se faz muito necessário... Aliás, vai à merda. - Ele disse, antes de repetir o gesto e morder seu próprio lanche.
Os dois riram.
No final das contas, somos todos gente, e por mais que se odeie o geral, sempre haverá espaço para alguns até mesmo no mais frio dos corações.

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