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sábado, 12 de novembro de 2016

Minha Vó


Vó Lila, era uma avó típica.
Tinha cara, jeito e gestos de avó.
Físico de pata, cabelos grisalhos presos em um coque no topo da cabeça, avental e panos de prato...
Pintava, desenhava, bordava e costurava... Vivia na cozinha, e preparava refeições para batalhões, reflexo de ter sido mãe de sete filhos, jamais aprendera a cozinhar em pequenas quantidades.
Chegar à casa da vó Lila era certeza de encontrar mesa farta, e mais um prato para alguém que surgisse perdido na hora da refeição, pois ela seguia cozinhando em grandes porções.
Fazia uma pizza tipo bolo de sardinha que produzia orgasmos gastronômicos, e um bolo mármore que, acompanhado de sorvete de creme, era dessas coisas de comer ajoelhado.
No verão de 1989, no auge da febre do Batman de Tim Burton, pintou camisetas com o morcego preto sobre a elipse amarela para cada um dos netos.
Eram vários netos...
Ao menos dez espalhados pelo Brasil inteiro, que naquele ano convergiram juntos para a velha casa em Rainha do Mar.
Lá, ela me incumbia de ir diariamente à padaria, onde eu comprava vinte pãezinhos e oito litros de leite para o lanche da tarde.
O troco era meu, e eu podia torrar em gibis, picolés, ou o que mais eu quisesse.
Quando tínhamos menos contato, fora dos veraneios, nos encontrávamos e nos cumprimentávamos com cinco beijinhos. Eram três para casar, quatro para não morar com a sogra, e um quinto para não ficar viúvo.
Era um ritual que sempre repetíamos e do qual ela sempre ria um bocado.
Carioca da gema, viera ainda na década de 50 morar em Porto Alegre com meu avô, a quem conhecera no Rio quando ele fora para lá estudar.
Chegaram aqui casados.
Ela jamais perdeu o "R" duplicado "do catarro" como costumava chamar. Continuava se referindo à quem quer que fizesse alguma bobagem como "seu merrda", talvez a única palavra que ainda denunciava sua origem fluminense.
No rio, era Vascaína, aqui, se tornou gremista. Provavelmente para implicar com meu avô, que era colorado, mas pouco entendia ou se importava com futebol.
Quando falávamos a respeito seu único comentário era "Meu time tá uma merrda".
Alguns anos trás, acometida pela osteoporose e o sobrepeso, acabou perdendo parcialmente os movimentos de uma das pernas.
Andava pouco, apoiada por um andador, depois, tentou adaptar-se à uma cadeira de rodas, e finalmente ficou presa à sua cama.
Ainda tinha a mente afiada a maior parte do tempo, seguia acompanhando noticiários, lendo o jornal matutino, bordando e costurando.
Mas a verdade é que estava cansada.
Havia perdido o marido, quatro filhos, e a independência.
Sofria pelas idas ao hospital, as pequenas doenças costumeiras à pessoas em sua condição de imobilidade, e por considerar-se um fardo aos que a cercavam.
"Ficar velho é uma merrda", dizia.
"A alternativa é pior, vó", eu retrucava.
E ela me olhava como quem não concordava com o que eu dizia, mas não ia levar a discussão adiante.
No sábado passado, após três dias hospitalizada, minha vó se foi.
Minhas duas avós se foram em um período de menos de 45 dias.
No funeral, um sucesso de público repleto de pessoas indo dar um último adeus, me lembrei de estarmos sentados lado a lado na cozinha, na praia, depois de ela ter assado um bolo mármore.
Eu ganhei a primeira fatia, e mordi com sofreguidão, espalhando pedaços do bolo, ainda quente, pelo chão de lajotas cor de laranja.
Então olhei pra ela com a expressão culpada de quem havia feito uma besteira, e ela piscou olhando em volta e me disse:
-Ninguém viu.
Minha vó era assim.
Cúmplice, briguenta, desbocada, piadista...
Adorava ter todos por perto, e mesmo os atritos entre parentes amontoados lhe eram caros, pois eram testemunho de uma família numerosa e barulhenta a quem ela amava, por vezes de maneira rude, por vezes de maneira impaciente, ou até desigual.
Mas amava.
E de minha parte, era tão recíproco quanto qualquer amor pode ser.
Mensurado apenas pela saudade...
Essa "merrda" de saudade.

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