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quarta-feira, 30 de novembro de 2016

O Pastor - Parte 3


Quase não houve resistência.
A pele se abriu após uma pequena pressão inicial, e a lâmina foi penetrando rapidamente na carne conforme o rato se debatia e guinchava sob a mão enluvada do rapaz que manuseava o canivete suíço.
Após ter enfiado a lâmina até o cabo do canivete no corpo do animal que ainda se debatia, ele a removeu inteira num movimento rápido, e então a enfiou novamente, desta vez com mais confiança e ciência do que fazia.
Repetiu o movimento outras três vezes, até que o roedor parasse de se mexer por completo.
Dera trabalho pegar o rato.
Ele achava que seria a parte mais difícil da tarefa, mas agora, vendo o animal inerte sobre uma poça de sangue, compreendia que não fora.
Nem sem lembrava de como fizera para apanhar o animal, na verdade...
Matá-lo fora a grande provação.
Jamais matara um animal que não fosse um inseto. Geralmente moscas e mosquitos aos quais matava de maneira indiscriminada com nuvens de inseticida.
A última vez em que matara alguma coisa com a plena noção do que fazia, fora aos sete anos de idade. Na praia, quando em meio a uma onda de pesadelos que o assolou durante uma longa semana, se pusera a chacinar formigas com requintes de crueldade infantil.
Agora, apunhalara uma criatura indefesa cinco vezes...
Um gosto amargo lhe subiu à boca e lágrimas deixaram seus olhos rasos d'água.
Respirou fundo enquanto via a poça de sangue sob o animal aumentar a cada segundo.
Secou os olhos.
Apanhou, de dentro de uma sacola plástica, um jornal que levara consigo e juntou o corpo do rato do chão.
Havia muito sangue.
Nem sabia que cabia tanto sangue dentro de um rato.
Precisou se inclinar para alcançar o bicho em meio ao sangue sem pisar na poça.
Colocou mais algumas folhas de jornal sobre o sangue que se acumulava no piso de concreto já sabendo que o papel não seria suficiente para limpar aquela quantidade de sangue.
Passou outra folha de jornal no chão ensanguentado, mas o líquido era demasiado, repetiu o processo mais duas vezes, e jogou todo o papel dentro do saco, que fechou com um nó, sabendo que ainda havia muito sangue no chão...
Muito sangue.
Estava na garagem do subsolo do prédio onde sua avó morava. Era um ambiente que, na infância, o assustava bastante, mas agora, crescido, não tinha mais o mesmo efeito.
Um salão amplo com algumas colunas separando as vagas dos condôminos, uma pia grande ao fundo, do lado da porta onde ficava o antigo fosso de lixo.
Quando pequeno, ele achava o máximo aquele fosso de lixo.
Uma portinhola junto à escada do prédio, onde os moradores simplesmente atiravam suas sacolas de lixo para que elas caíssem no fosso onde o zelador as acomodava em grandes sacos e deixava diante do edifício para ser coletados pelo caminhão...
Abriu a porta do fosso e o cheiro forte e azedo dos detritos lhe atingiu como um bofetão.
Achou que era um ponto positivo.
Com o fedor do lixo sendo forte como estava, era improvável que o cadáver do rato fosse se destacar nas horas que levaria até a próxima coleta.
Olhou o saco plástico cheio de jornal ensanguentado... Pesado por causa do conteúdo, estava cheio de sangue até a metade... Por mais quanto tempo aquele rato iria sangrar?
Jogou o saco plástico no alto da pilha, fechou a porta e parou junto à pia para lavar as mãos. Havia um sabonete de mecânico sobre o balcão de aço inox, e após terminar o pequeno ritual de limpeza, subiu a escadaria estreita e íngreme que levava até o saguão do prédio, fechou a porta de madeira vermelha que acessava a garagem atrás de si e sentou numa das poltronas ali colocadas.
Lembrava-se de adorar chegar àquele saguão na época de fim de ano.
O zelador montava uma grande árvore de natal com luzes e enfeites, e sob ela acomodava dezenas de pequenos embrulhos.
Tudo decorativo, mas ainda assim, em sua infância ele achava o máximo.
Passou a mão molhada na testa, pensando no que fizera.
E em porque o fizera...
...
Por que o fizera...?
Não sabia.
Subitamente estava tentando lembrar de porque matara a ratazana, quando percebeu, por baixo da porta de acesso à garagem, um fluído escuro que escorria.
Seria possível?
Que o rato sangrara tanto que inundara a garagem? Mas o lance de escadas entre o saguão e o subsolo era grande... Grande demais...
Andou até a porta pensando no que estava errado naquela situação toda, e, quando pegou a maçaneta se deu conta...
Sua avó não morava naquele prédio já havia alguns anos...
Ainda assim abriu a porta, e percebeu que a escada havia sumido. Engolfado por uma imensa poça de um fluido quase negro onde boiava o cadáver o rato que havia apunhalado.
Olhando para o rato ele se deu conta de que havia mais alguém naquele saguão. Quase podia ouvir o sorriso... Os pelos de seus braços e maxilares se eriçaram num arrepio, e sem olhar ele sabia que o Homem das Flores estava ali. E esticava o braço para tocar nele com sua mão áspera.
Acordou na cama, em casa, coberto de suor.
Era o quarto pesadelo naquela semana, eles simplesmente não paravam. Olhou para o relógio:
Uma e seis da madrugada.
Não fazia uma hora que fora deitar.
A privação de sono já cobrava seu preço.
Seu desempenho na escola estava decaindo, suas relações, também.
Estava sempre acabrunhado e sonolento, não conseguia fazer suas coisas, não sabia por mais quanto tempo conseguiria suportar a situação.
Levantou-se da cama, e andou até o gaveteiro onde guardava suas roupas. Apanhou um jeans surrado e, ao puxá-lo da gaveta, jogou algo no chão.
Era um canivete suíço que ganhara ainda na infância e não via há muito tempo.
Ficou olhando a peça.
Pensando se estivera naquela gaveta o tempo todo... Todos aqueles anos.
Seria possível?
Estava quase intacto, exceto por uma das laterais de plástico vermelho, que caíra.
Guardou o canivete na gaveta de novo.
Vestiu as calças, calçou os tênis e saiu de casa silenciosamente.
Era madrugada e havia um ar fresco na rua que lhe arrepiou a pele molhada de suor. Atravessou a avenida e sentou-se em um banco de pedra na praça do outro lado da rua, e escorou-se para trás, deixando a brisa secar-lhe o suor do corpo.
Estava inquieto.
Levantou-se e começou a circundar a praça.
Vagarosamente, passo a passo, quando sua atenção foi atraída por uma luz bruxuleante à distância.
Velas acesas junto ao meio fio na esquina contígua à praça.
Ele sabia o que era.
A praça ficava em uma perfeita encruzilhada da avenida com uma rua adjacente bastante tranquila. Era o ponto perfeito para vários praticantes de religiões afro deixarem suas oferendas, de garrafas de cachaça e balas de mel até batatas cozidas recheadas com dinheiro vivo, ele já vira de tudo naquela esquina ao longo dos anos.
Aproximou-se, curioso, e viu a bandeja de papelão decorada com papel celofane colorido cheia de pipocas. Ainda havia velas e uma garrafa de cachaça Velho Barreiro.
A entidade em questão era exigente. Normalmente a bebida na esquina era depositada em garrafas de plástico, embora se lembrasse de já ter visto garrafas de cerveja e até um uísque J&B naquela esquina.
Além disso, havia um charuto queimando e...
Um rato.
Ratos não eram uma raridade naquela zona.
À noite era comum se deparar com roedores correndo rentes ao meio-fio das calçadas e em dias de chuva eles surgiam em números consideravelmente maiores.
Ainda assim, ver o rato ali o fez sentir mal.
A lembrança do pesadelo estava fresca em sua memória.
Enfiou as mãos nos bolsos da calça, e, para sua surpresa, encontrou o canivete suíço...
Não o havia devolvido à gaveta?
Estava parado de pé, apalpava o canivete em seu bolso, olhando o rato a uma distância de cerca de dois metros quando o animal saiu da bandeja de pipocas e começou a andar na direção oposta.
Mais tarde, se lhe perguntassem, ele responderia que não sabia como a garrafa de cachaça fora parar em sua mão, mas a arremessou em cheio sobre o rato.
A garrafa se quebrou ao impacto, difícil dizer se, contra o rato ou contra a pedra do cordão da calçada.
Assaltado pelo ataque covarde e violento, o roedor tentou fugir com dificuldade, mas o pé do rapaz deitou-se pesado sobre o bicho, e a lâmina do canivete entrou profundamente na base de seu crânio.
O rapaz andou até onde estava a oferenda, rasgou um pedaço do papel que forrava a bandeja de papelão, e limpou a lâmina, guardando-a no bolso em seguida.
A rua continuava deserta, e ele caminhou a passos lentos pra casa, embora seu coração batesse feito um tambor dentro do peito.
Subiu as escadas e entrou em casa em silêncio, torcendo para que sua família não houvesse notado sua ausência.
Foi ao banheiro, lavou as mãos e o canivete e voltou ao seu quatro.
Tirou os tênis e as calças, e chegou a colocar o canivete de volta na gaveta, mas o pegou de volta e o pousou sob o travesseiro.
Deitou-se com o coração pesado de culpa, mas depois de pegar no sono, só acordou com o despertador na manhã seguinte.

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