Após mais de um mês sem Netflix devido a perda de um cartão de crédito, ontem eu resolvi começar a recuperar o tempo que havia perdido afastado do precursor dos serviços de streaming que hoje infestam a barra de conteúdo da smart TV. Enquanto uma chuvarada sem tamanho varria Porto Alegre de maneira impiedosa, eu me acomodei no sofá para, munido de uma dúzia de salsichas empanadas e um copão de Coca-Cola, assistir um dos mais recentes lançamentos originais no catálogo do serviço, este Mank, projeto afetivo de David Fincher, dirigindo um roteiro escrito por seu pai, Jack Fincher, e o tipo de longa que, nos dias de hoje, só encontraria guarida de um estúdio na Netflix (ou "Netflix International Studios".) e sua cruzada para ser levada a sério enquanto produtora de cinema de qualidade.
Mank nos apresenta Herman Mankiewicz (Gary Oldman), ex-jornalista e crítico de teatro que em meados da década de 1920 resolveu tentar a carreira no cinema. Ele se tornou roteirista de filmes conseguindo um bom emprego na Paramount onde chegou a chefiar uma grande equipe de roteiristas encarregados de municiar a fábrica de sonhos do estúdio. Mas a despeito de seu começo promissor, Mankiewicz não foi bem-sucedido em Hollywood.
Um pândego alcoólatra e viciado em jogo, Mank se veria, no início da década de 1940, relegado aos mais baixos bastidores de seu ofício na indústria, sendo chamado eventualmente para polir roteiros de outros artistas sem receber créditos por seu trabalho, até que, em 1941, um jovem egresso do rádio de Nova York receberia da produtora RKO carta branca para fazer filmes. Esse jovem era Orson Welles e, para seu primeiro projeto na costa oeste dos EUA, ele contrataria Herman Mank como roteirista.
Por duas horas e onze minutos, David Fincher nos mostra como Mankiewicz foi isolado por Welles (vivido por Tom Burke) em um rancho no deserto de Mojave com duas mulheres, a datilógrafa Rita (Lilly Collins) e a governanta Freda (Monika Gossmann), para se afastar de todas as distrações possíveis e concluir o trabalho em apenas sessenta dias. Durante esse período, o longa vai e volta no tempo, mostrando como a vida pregressa de Mank, seus excessos e suas relações pessoais, moldariam o que se tornaria o roteiro de Cidadão Kane. Em especial o período durante a década de 1930, quando o escritor se juntou a círculo de amigos do magnata do jornalismo William Randolph Hearst (Charles Dance), e sua esposa, a jovem atriz Marion Davies (Amanda Seyfried, no que deve ser a maior atuação de sua carreira), vendo em primeiríssima mão a maneira como o poder operava em Hollywood, incluindo a forma como Hearst usou sua fortuna e suas conexões com o presidente da MGM Louis B. Meyer (Arliss Howard) para enfiar a colher na corrida pelo governo da Califórnia nas eleições de 1934.
Eu tenho certeza que a ambientação do longa, sua trilha sonora de jazz e sua perolada fotografia em preto e branco certamente levarão alguns a taxarem Mank como uma daquelas proverbiais "cartas de amor à velha Hollywood", mas não se deixe enganar, não é o caso.
Mank é a respeito respeito de um artista autodestrutivo realizando seu maior trabalho à custa de tudo o que possui tanto quanto é a biografia de alguém que se vê como um intruso na indústria do cinema (algo em que Ficher provavelmente se relaciona com Mankiewicz) quanto é uma palmadinha na bunda da relação pérfida entre mídia e política desde a época rádio e do cinema em preto e branco. Nem sempre é um filme fácil, especialmente quando mergulha com força nas intrincadas relações da Hollywood dos anos dourados demandando algum conhecimento do período para pegar todas as referências do roteiro, mas galgado em excelentes atuações (destaque para Dance, Seyfried, Howard além de Tom Pelphrey, como o irmão mais novo de Mank, Joseph e Tuppence Middleton como a estoica esposa do protagonista "Pobre" Sarah) ancoradas em um trabalho genial de Gary Oldman, o longa entra para a lista de melhores realizações da carreira de Fincher que, só agora me dei conta, não lançava um filme desde 2014.
Vale uma espiada para qualquer amante da sétima arte, é obrigatório para fãs de Fincher e de filmes antigos. O longa está disponível na Netflix.
"Você não pode capturar a vida inteira de um homem em duas horas. Tudo o que você pode esperar, é deixar a impressão de uma vida."
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