Foi Tim Burton o culpado por nós termos, todos os anos, versões em live action de animações clássicas da Disney sendo lançadas nas telonas. Há mais de uma década, Burton tirou Alice do País das Maravilhas ou "Wonderland" e a levou para o Submundo, ou "Underland", bem a seu estilo de fábula sombria.
O bilhão de dólares arrecadado pela Alice de Burton mostrou que a Disney estava sentada em uma mina de ouro, e dali em diante, a cada temporada, uma versão (mais ou menos) de carne e osso de algum desenho da Disney pipoca nos cinemas. A Cinderela de Kenneth Brannagh, A Bela e a Fera de Emma Watson, o ótimo Mogli de Jon Favreau, o não tão bom O Rei Leão de Jon Favreau... O catálogo de animações da Disney tem dúzias de longas animados de qualidade que podem ser recriados para a produtora do Mickey encher os bolsos de seus investidores com o dinheiro dos fãs, e o último lançamento do estúdio era esse Mulan, remake da animação de 1998 que adaptava bem à moda da Disney, a trágica lenda chinesa da jovem que se alista no exército imperial para proteger o pai idoso.
Com a pandemia de Covid-19 fechando os cinemas do mundo, a Disney perdeu a chance de lançar seu novo Mulan em tela grande, mas tinha como trunfo, o seu serviço de streaming Disney+.
Foi através dele que, em setembro, o estúdio lançou o longa como conteúdo à la carte por exorbitantes trinta dólares extras na assinatura de quem se dispusesse a pagar em alguns territórios como EUA e Europa.
Aqui no Brasil, o longa foi lançado no início desse mês já como parte do acervo normal do catálogo, e ontem, sem muito o que fazer à tarde, resolvi conferir o longa-metragem de Niki Caro.
Quando conhecemos a personagem título pela primeira vez ela é uma menininha que voa por telhados da vila onde mora perseguindo galinhas.
Seu pai, Zhou (um cândido Tzi Ma) parece se divertir com as peripécias de sua filha (interpretada na infância por Crystal Rao), mas sua mãe, Li (Rosalind Chao) não o deixa esquecer que peripécias e molecagens são para meninos, e meninas devem aprender a se portar para honrar sua família através de casamento.
Mulan cresce tentando conter sua natureza, ganha a cara engraçadinha de Yifei Liu, e chega a se encontrar com a casamenteira da vila para mostrar que está apta a encontrar um pretendente. As coisas se complicam quando o povo Rouran do norte, liderado pelo impiedoso Böri Khan (Jason Scott Lee) passa a atacar as guarnições do exército chinês.
Böri Khan planeja vingar a morte de seu pai, outro invasor nortista, que anos antes morreu em combate com o imperador (Jet Li), e para fazê-lo, além da crueldade dos nômades assassinos que massacram o povo das aldeias, ele conta com a ajuda de Xian Lang (a bela Li Gong), uma poderosa feiticeira que é seu ativo mais valioso na guerra.
Em face ao ataque iminente de Böri Khan, o imperador lança um decreto: Ele irá reforçar o exército imperial usando a convocação de um homem de cada família do território. Quando o decreto chega à aldeia de Mulan, seu pai, um veterano da guerra anterior contra os nortistas é o único homem de sua família, e, idoso e manco, não tem chance de sobreviver à contenda que se aproxima.
É então que Mulan resolve agir.
Ela rouba a espada, a armadura e o cavalo de seu pai, e coberta pelo véu da noite, cavalga até a guarnição mais próxima, apresentando-se como Jun, filho de Zhou, juntando-se ao exército imperial chinês.
Lá, sob a tutela do comandante Tung (Donnie Yen), Mulan irá treinar para, em segredo, se tornar uma guerreira, e então, uma comandante...
Visualmente falando, Mulan é um belo filme. Em termos de fotografia, direção de arte figurinos e boniteza do elenco, o longa é lindo de se olhar, entretanto o roteiro escrito a oito mãos por Rick Jaffa, Amanda Silver, Elizabeth Martin e Lauren Hynek fica devendo.
Embora siga a mesma trilha narrativa da animação de 98, ambas inspiradas pelo poema lendário que remonta à dinastia Tang (que se estendeu dos anos 618 a 907), a versão 2020 remove os números musicais do desenho (o que, pra mim, está ótimo), e acrescenta mágica, e isso é a proverbial faca de dois gumes.
Se por um lado gera a presença de Xian Lang, uma personagem com conflitos e motivações interessantes que adiciona elementos bem vindos à trama, por outro ela empobrece a protagonista.
Nessa versão da história, Mulan é capaz de se conectar com seu Chi, que é a versão chinesa da Força do Star Wars. É por ter um Chi muito poderoso que Mulan é capaz, desde a tenra infância, de realizar prodígios de equilíbrio, acrobacia e força. Ela é praticamente uma super-heroína que dá saltos mortais no lombo de um cavalo à galope e chuta lanças para empalar inimigos em pleno ar. Mulan não precisa de treinamento, porque ela é uma guerreira natural. Ela não precisa aprender a lutar, ela não precisa superar os obstáculos de ser fisicamente mais frágil do que seus convivas durante o treinamento ou do que os inimigos durante a guerra. Ela não precisa encontrar formas de superar nenhum obstáculo além de ser mulher.
E com isso eu não quero dizer que ser uma mulher durante a dinastia Tang não seja um grande obstáculo, mas ao dar super-poderes e uma predisposição genética para a protagonista, o roteiro tira de Mulan a chance de ser a agente de seu próprio destino. Ela entra para o exército por amor ao pai, mas dali pra frente, tudo o que ela conquista é porque ela nasceu com um grande Chi. Ela não precisa encontrar maneiras criativas de superar as dificuldades do treino e da guerra porque ela é naturalmente mais apta que todos os demais. Ela não precisa fazer um grande esforço para vencer seus inimigos porque ela é mais forte, ágil e acrobática do que eles.
Jaffe, Silver, Martin e Hynek confundem força com infalibilidade, um problema recorrente no cinema de hoje em dia, basta ver a maneira como Rey e Carol Danvers resolvem seus problemas. Mulan, o longa, anda pelo mesmo caminho, prefere que sua protagonista pareça uma "mulher forte" e não uma pessoa de verdade, e o resultado é que jamais há ameaça à Mulan além do perigo de ter seu segredo revelado, e, conforme nós vemos no terceiro ato, mesmo esse perigo é relativamente inócuo.
E é uma pena.
Conforme eu disse antes, o longa é muito bonito, visualmente, há algumas boas sequências de ação, atuações bem-intencionadas e lampejos do que o longa poderia ter sido, como a relação entre Mulan e Xian Lang e flashes de camaradagem entre Mulan e os outros soldados, se o filme tivesse um roteiro mais inspirado, e ancorado por uma heroína mais humana.
Do jeito que está, o Mulan de 2020 é como uma estátua de gesso. Bonito, mas oco.
Assista à versão animada.
É bem melhor.
"Quando eles descobrirem quem você é, eles não terão piedade."
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