Pesquisar este blog

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

Recomeço?


Ele observara a loira durante toda a noite. "Observara", na verdade, não fazia justiça. Ele a secara descaradamente. Uma mulher que percebesse um sujeito a olhando como ele olhava pra a loira iria requerer uma ordem judicial pra mantê-lo à distância. Ele olhava pra ela mais ou menos como o Damien Rice olhava pra guria da praia naquele clipe de The Blower's Doughter, que todo mundo acha que chama "I Can't Take My Eyes Off you", sabe qual? Lembra da cara de maníaco do Rice? Então. Era como ele olhava pra ela.
Até dava pra entender. Ela era linda. Um arraso. Um disparate. Bonita demais, mesmo. Bonita demais pra uma festa que ele frequentasse, pelo menos. Uma deusa loira e longuilínea serpenteando com desenvoltura pelo salão, falando com pessoas, dançando, bebendo. E ele ali, escorado em uma parede, mascando chiclete como quem espera que a festa acabe pra poder ir embora, o que de fato estava. Estava ali como vítima de um casal de amigos, o Augusto e a Maroca, que o obrigaram a ir à tal festa na esperança de que ele arrumasse, também, uma namorada, e parasse de segurar vela, o que, aliás, vinha sendo a única coisa vagamente romântica que ele fazia a quase dois anos.
Não era o sobrevivente de nenhum relacionamento que terminou em hecatombe, apenas acabara um namoro já a algum tempo e não encaixou nenhum namorico na sequência. Sua vocação pra solidão se manifestou, e ele resolveu ficar sozinho por alguns meses, que se tornaram vários, que se tornaram um ano, que estavam quase se tornando dois. Seu melhor amigo e a namorada, suas companhias mais frequentes, estavam preocupados, diziam, até com a saúde dele. Física e mental. Disseram que ele não podia ficar em casa, largado às moscas, vendo pornografia na internet e evitando gente. Ele protestou dizendo que estava em pleno gozo de suas faculdades mentais, que sua saúde estava ótima e que nem evitava gente, nem via pornografia na web e que eles queriam, mesmo, é que ele lhes desse um pouco de privacidade, o que ele faria com prazer.
Não adiantou.
Eles resolveram que iriam ressucitar a vida social dele. E essa festa era o seu primeiro encontro com o desfibrilador social que os dois planejariam, querendo ele, ou não. Agora ele começava a ter mais e mais certeza de que, o que eles queriam, mesmo, era ter um tempinho sem ele por perto, nem dor na consciência por tê-lo deixado de escanteio. Olhou pro copo de soda limonada que tinha na mão e suspirou enquanto bebia um gole.
Foi então que ele percebeu, a movimentação dela, a deusa loura, ganhou propósito e direção e... Sim. Ela se aproximava dele. Usava um vestido tubinho preto de um tecido bem leve, que marcava suas curvas quando ela andava, seus tornozelos estavam delicadamente envoltos pela tira do sapato de salto alto que ela calçava com elegância. Ele olhou pra ela e ficou apavorado. "Meu Deus, meu Deus, ela tá vindo pra cá, o que que eu faço? O que que eu faço?", ele pensou enquanto, escorado na parede atrás de si, fazia cara de descolado.
"Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus! Meu Deus!", pensou enquanto sentia que o suor começava a lhe escorrer pelas costas e do cabelo sobre as orelhas. "O que é que eu faço, essa mulher é linda, linda, linda. O que que eu digo? O que será que ela vai dizer? Ah, meu Deus, que mico, ela vai dizer que me confundiu com alguém. Ai, minha nossa. Olha só pra ela. Que beleza. Minha Santa Aquerupita. Tem cara de inteligente. Deve ser inteligente, também. Pra completar a minha humilhação. Vai parar perto de mim, linda desse jeito, e querer conversar sobre física quântica. Imagina minha cara:
Ela:
-Oi, tudo bem?
e eu:
-Tudo, e tu?
E ela:
-Tudo ótimo. Visse as últimas da física quântica?
E eu engasgo por que não me ocorre nada pra responder, e ela pergunta se eu tô me sentindo bem, e pra não passar por burro eu me jogo no chão fingindo que não consigo respirar, ou que desmaiei, ou que morri, qualquer coisa, quelquer vexame pra ela não ver como eu sou um idiota."
Ela estava cada vez mais perto. Um sujeito a cumprimentou com três beijinhos.
"Ah, pronto. Isso, fica com esse cara aí, nem chega perto de mim, desafasta como diz o Falcão. Ele também não deve manjar de física quântica, mas certamente deve ter abdôme de crocodilo, com cento e setenta e três gomos, então, quando ela perguntar se ele viu as últimas da física quântica ele levanta a camiseta, mostra a barriga pra ela e ela vai embora com ele, e eles viverão felizes para sempre, e eu terei, pelo menos, a satisfação de ter juntado esse casal perfeito que vai dar origem a toda uma geração de semi-deuses olímpicos ou participantes do Big Brother."
Ela se despediu do tal sujeito, e continuou andando em direção a ele.
"Ai, meu Deus. Sua burra. Por que não foi com o cara? Ele tem o abdôme de atleta, deve ser rico, bem dotado, sei lá o que mais. Não chegue perto, não chegue perto... Ai, meu Deus do céu."
Ela estava a menos de cinco metros dele, abriu um sorriso.
"Será que foi pra mim? Será que foi pra mim? Só pode. Ou isso ou o homem invisível está na minha frente e essa cabeleira loura cheia de gel dela é equipada com a visão térmica do Predador, só pode. Atrás de mim só tem parede. O que eu faço? Sorrio de volta, claro. O que mais? Evito física quântica.
-Visse as últimas da física quântica?
respondo:
-Não, estou em meu ano sabático.
Deve funcionar. Minha nossa, e se ela gostar de sujeitos medianos que nem eu? Será que existe isso? Mulher linda que nem essa que se apaixona por sujeitos meia boca que nem eu? E se for? Nossa, talvez meus filhos sejam bonitos que nem ela. O nariz, a boca, os olhos, o corpo, tudo dela, e meus... meu... Ah, meu sobrenome, vá lá, já tá de bom tamanho. Nossa, linda e inteligente, não posso dar ponto sem nó. Preciso pensar bem pra não dar mancada."
Ela chegou perto, rescindia um perfume cítrico, de seus cabelos, de sua pele, de tudo, ele supunha. Ela suspirou olhando pra ele:
-E aíam? Team chicléam?
Ele levou uma fração de segundo pra entender o que ela dissera por causa do sotaque do bomfim, carregadíssimo, e da voz nasalada que ela tinha.
-Quê? Ah, chiclete? Tenho, sim.
Estendeu a cartela prateada de trident de morango.
-Ah, naum... Esse daíam eu não gostóam...
Ele recolheu o chiclete e guardou-o novamente no bolso.
-Lamento, é só o que eu tenho...
-Faloam. - Ela respondeu, e então se afastou, serpenteando novamente em meio à multidão.
Ele ficou ali, olhando pra ela enquanto ia embora. Bonita, sim. Mas tinha a voz meio enjoada, né? Falava muito cantado. Mesmo pros padrões portoalegrenses, e, era impressão dele, reflexo do tempo que passara sozinho, ou ela era meio mal educada?
Seus amigos se aproximaram, foi a Maroca quem perguntou:
-Bah, quem era aquela gostosa, ali?
Ele olhou desencantado pra frente, pensando em dizer que era uma piriguete irritante, mas, ao ver os olhos esperançosos da Maroca e do Augusto, disse apenas:
-Talvez a futura mãe dos meus filhos...
O Augusto riu enquanto puxava a Maroca pelo braço de volta à pista de dança, deixando-o novamente a sós com seus pensamentos. Nos próximos dias ele daria um sossego pra Maroca e pro Augusto. Não sairia com eles nem se fosse convidado. Talvez ele ficasse em casa, evitando pessoas, jogado às moscas, quiçá até visse pornografia na internet, mas talvez, quem sabe, saísse pra encontrar alguém... Alguém que se parecesse mais com uma pessoa de verdade, que fosse bonita, claro, mas também divertida, inteligente e que soubesse se comunicar por mais do que gemidos monossílabícos.

Nenhum comentário:

Postar um comentário