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quinta-feira, 31 de março de 2011

Aprendendo.


O Alfeu roía as unhas naquela manhã. Nada de novo, o Alfeu tinha entre seu vasto arsenal de hábitos desagradáveis, o de roer as unhas. Perdera as contas de quantas vezes o haviam repreendido por aquilo, mas jamais deu ouvidos. Homem feito, ainda tinha as unhas roídas como um moleque. Não ligava. Não achava que tivesse obrigação de ter unhas bonitas e apresentáveis. Fazia questão de que estivessem limpas e era o suficiente para si própria.
Então, lá estava o Alfeu, roendo as unhas. Marcara um encontro ás cegas para o final daquele dia. Não sabia o que esperar. Não sabia como poderia ser a moça com quem marcara o encontro. Haviam conversado algumas vezes, é verdade. Ela parecera-lhe muito inteligente, divertida, mas quem é que garante que ela não falava com ele com a wikipédia aberta na janela do lado? Como podia ter certeza de que a moça em questão não era, na verdade, um sujeito solitário e obeso que cansado da completa e absoluta falta de contato humano travestira-se com os trejeitos de uma mulher de personalidade excitante para suprir a própria carência mesmo que de maneira fictícia?
Alfeu expôs esses temores a um amigo, que, primeiro, o taxou de lunático por marcar um encontro às cegas com uma (um) mulher (pederasta) desconhecida(o) pela web sem sequer ver uma foto da pessoa em questão.
De nada adiantou Alfeu dizer que vira fotos das mãos, pés, braços e pernas da pessoa com quem falava. Seu amigo apenas abriu o google e recortou mãos, pés e pernas de meninas em fotos e mostrou a Alfeu enquanto afinava a voz dizendo "Meu nome é Sebastião, opa, digo, Suzannah, sou loira, um metro e setenta, cinquenta e quatro quilos...". Alfeu riu sem dizer nada, continuou conversando com seu amigo, e ainda ouviria mais insultos, mas nada de traumático.
Se não servira para afastar as pessimistas teorias conspiratórias de Alfeu, ao menos foram suficiente para fazê-lo rir um pouco, desanuviar a cabeça. Alfeu pensou em não comparecer. Tinha medo do que podia acontecer se fosse. Não tinha certeza do que esperar, e, pessimista que era, tinha quase certeza de que, se a moça com quem conversara por tanto tempo via internet não fosse um homossexual com hábitos de higiene duvidosos, provavelmente não compareceria no encontro, ou pior, compareceria, o veria, e daria as costas indo embora sem jamais contatá-lo novamente.
Era a forma de ver o mundo de Alfeu. Sempre o pior dos cenários.
Pensou em contatar sua misteriosa interlocutora e expressar, tentando não parecer tão inseguro, seus temores. Mas não conseguiu. Não era de externar seus sentimentos, sempre conseguia engolí-los e controlá-los. Não era de dizer como se sentia. Talvez por isso fosse tão solitário e amargurado, já haviam lhe dito, úlcera, outra coisa que lhe disseram que engolir os sentimentos podia acarretar, jamais teve.
Não que Alfeu houvera sido sempre amargurado e solitário. Não. Alfeu já se relacionara. Já estivera em namoros, e, pelo menos uma vez, amara. Talvez tenha sido a única vez em que Alfeu tenha sentido alguma coisa de forma tão intensa que se viu obrigado a pôr pra fora. Fora sua primeira namorada. A única pessoa que ouviu da boca de Alfeu um "eu te amo" autêntico, e que significasse algo além de amizade.
Muita coisa mudara desde então. Alfeu crescera, envelhecera, aprendera algumas coisas e desaprendera outras tantas, mas jamais dissera "eu te amo" de novo.
Agora, após tanto tempo sozinho, após tantas noites mal dormidas em longas conversas quase secretas, após tanto pensar, resolvera colocar de lado suas dúvidas, ignorar seus alarmes internos, abdicar de seus mecanismos de defesa, e experimentar. Quem sabe, ao invés de um homem de cento e quarenta e oito quilos, não aparecia uma elegante representante do sexo feminino? Quem sabe, ao invés de uma mulher de passado duvidoso que o levasse a um motel barato e lhe roubasse um rim, uma pessoa que lhe levasse pra sua vida e lhe roubasse o coração. Sentiu-se um tremendo idiota após esse pensamento cruzar-lhe a mente. Mas a verdade é que, do jeito que estava, imaginava se, algum dia, diria "eu te amo" à alguém novamente.
Vestiu-se sem grande esmero. Calça jeans e camiseta. Não queria dar a impressão de ser alguém diferente do que era sempre. Nada de propaganda enganosa. Tênis, cabelo bagunçado. Respirou fundo... E foi ao local combinado no horário estabelecido.
Não podia, imaginou, ser pior do que os cenários que simulara em sua mente. E, se fosse tão ruim quanto imaginava que poderia ser, na pior das hipóteses teria uma nova e cabeluda história pra contar aos amigos e arrancar-lhes risos em algum churrasco pós-futebol.
Chegou ao destino e esperou. Minutos de atraso que pareceram séculos, e ela apareceu. De alguma forma, pareceu natural. Pareceu certo. Mas ele não precisou aprender a dizer "Eu te amo" à uma pessoa nova.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Sem queixas


O Lucineu não tinha do que se queixar, pra ser bem honesto. Tinha emprego, casa, conseguia sustentar os estudos, a TV à cabo, com internet e telefone, comprara recentemente uma TV de 42 polegadas, HD e tudo mais, tinha computador com desempenho acima do razoável, não estava irremediavelmente endividado, e nem tinha, em seu futuro próximo, a ameaça de doenças coronarianas fatais. Preocupado com a saúde após um período um tanto relapso, vinha perdendo peso já a dois anos sem grandes esforços ou arroubos, provavelmente teria perdido mais peso mais rápido se tivesse feito alguma dieta mirabolante, mas, francamente, não tinha pressa.
O Lucineu não era bonito. Nem era particularmente inteligente. Não tinha um grande papo, não era a alma de nenhuma festa que frequentasse, não era capaz de monopolizar uma conversa exceto se estivesse nervoso, o que raramente acontecia.
Se Lucineu tinha alguma qualidade, era a de ser tranquilo. Provavelmente haviam monges em templos nas montanhas do Nepal que eram menos calmos do que Lucineu. Nada o enervava, nada o deixava apreenssivo, raras eram as coisas capazes de tirá-lo do sério. Era quase ataraxia o dom que possuia Lucineu.
Lucineu era uma pessoa modesta, de modestas aspirações, e estava satisfeito de estar satisfeito. Não se ressentia por nada, exceto pelas chances desperdiçadas de fazer mais, e aprendera a não mais desperdiçá-las.
Lucineu era descrente. Não acreditava em políticos, religião, seres humanos, a vida de modo geral, e quase tudo mais. Se Lucineu acreditava em alguma coisa, era em casualidade.
Não as boas casualidades. Não encontraria dinheiro no bolso daquele casaco de inverno. O pote de sorvete na geladeira não teria sorvete, e sim feijão em seu interior. A porta do bar se abriria e entraria um trapaceiro com passes para chegar à Lisboa, e não Ilsa Lund carregando consigo as lembranças de um passado luminoso.
Lucineu não tinha do que se queixar. E não se queixava. Jamais iria fazer o gol de um título pelo Inter, jamais estrelaria sua própria série de TV, nem iria puxar o coro da Marselhesa em um café no Marrocos dominados pelos nazistas. Não. Mas poderia tentar ser, modestamente, um bom homem, ou, ao menos o melhor homem que pudesse ser. Tentar merecer o amor que lhe era dirigido, correspondê-lo da melhor maneira, e quem sabe, não agir feito um pateta quando, após anos, a porta do bar se abrisse e, ao invés de um trapaceiro com passes para chegar á Lisboa, Ilsa Lund entrasse.

terça-feira, 29 de março de 2011

Sofrimento


Jurandir estava fazendo a barba, coisa que odiava fazer, mas via-se obrigado por culpa da genética. Tivesse uma barba farta e fechada ele a deixaria crescer e tornar-se longa e hirsuta como se fosse um discípulo do mago Gandalf. Porém, os genes o traíram, e Jurandir tinha uma barba rala e repleta de buracos, que, quanto mais deixava crescer, mais o tornava parecido com um sem-teto. Era por isso que Jurandir fazia a barba três ou quatro vezes por semana, como naquela manhã, em que passou o gel no rosto e se pôs a movimentar o barbeador recém retirado da embalagem pela face irregular.
Foi ali, enquanto fazia a barba, que Jurandir, ao errar de maneira bisonha o movimento e enfiar com força a lâmina na própria pele, e, ainda pior, ignorando a dor, continuar movendo-a e abrindo um corte considerável abaixo do olho direito, apenas após isso, enquanto via o sangue verter-lhe pela face e pingar manchando de escarlate a pia do banheiro, que Jurandir teve uma epifânia.
Sim, naquele instante, Jurandir entendeu, de fato, o que acontecia. O ser humano é naturalmente masoquista. Sim! Masoquista. É a única explicação, teve certeza Jurandir, para explicar a condição humana! O ser humano só é inteiramente feliz quando sofre! Por paradoxal que pareça, fazia sentido. As pessoas, vivessem uma vida plena de felicidade e realização, não se sentiriam felizes, nem tampouco realizadas. Elas estariam tristes. Elas estariam incompletas. Era como o agente Smith dissera a Neo em um dos Matrix, Jurandir não lembrava qual, mas em um diálogo, o cyber-vilão dizia a Neo, (Ou teria sido ao Morpheus?), que na sua primeira versão a Matrix era uma simulação de felicidade perfeita, mas que a mente humana não foi capaz de assimilar tal coisa, e gerações morreram negando a simulação de felicidade que lhe era oferecida.
Fazia sentido, não? As pessoas são incapazes de ser felizes. Elas não sabem viver sem sofrimento. É como disse Scott Flanagan, "Cuidado com o que você deseja, pode acabar conseguindo.", e não é por que pode não ser exatamente como você imaginava, não! É por que, ao conseguir, você será infeliz por ter que estar feliz e dar-se por satisfeito! Arrá! Pensou Jurandir. Sim, por isso ele continuou se cortando. A dor o deixou feliz. Isso explicava muitas coisas, entre elas, o por que de ele ser tão louco por ela. Sim... Fazia todo o sentido, afinal de contas. Era sua necessidade de ser infeliz, de viver com a dúvida, com o sofrimento, com a temeridade... Claro. Era nada senão amor ao sofrimento!
Enquanto lavava a ferida e abria o espelho do banheiro à procura de um band-aid, Jurandir teve a certeza de que não queria mais aquilo. Se o resto da humanidade amava a dor, beleza, isso era com eles, com ele, não, ah, não, muit'obrigado.
Colocou o curativo sobre o corte, com decisão. E lembrou-se dela. De seus olhos. De seu sorriso. De suas pernas, pele e gestos. E percebeu que, com mil diabos...
Valia a pena.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Barulho na sala fria


Nelson - Sussurrou Virgínia, baixinho enquanto cutucava seu marido com as mãos delicadas e frias sob as pesadas cobertas de inverno. -Acorda, Nelson!
-Hrhhhmgh...
-Acorda, Nelson, pelo amor de Deus, homem!
-Guiéguifóin, Virxinhanhmm...? - Resmungou Nelson enquanto tentava escapar das mãozinhas da esposa, que o apunhalavam como pequenas pás de gelo, virando as costas pra ela.
-Nelson, tem alguém na casa! - Exclamou Virgínia em um sussurro.
-Nhaum tem ningfum na casa... - Replicou Nelson, ainda parcialmente adormecido.
-Eu tô ouvindo gente caminhando na sala, Nelson!
-É o gachurrum...
-A gente não tem cachorro, criatura!
Nelson acordou.
-Tá, tá... Peraí... - Aquiesceu levantando-se com dificuldade, sentindo na boca o gosto rançoso da saliva do sono. Sentou-se na cama o melhor que pôde sem sair debaixo das cobertas e inclinou a cabeça em direção à porta do quarto.
-Ah, Virgínia... Não tem ninguém na sala, é só a janela aberta, são os carros passando lá embaixo...
-Não, Nelson, eu juro! Era gente caminhando! Eu ia lá deixar a janela aberta com essa friagem?
-Não, meu amor, tu tava meio dormindo, e pensou que fossem passos, mas não eram, era apenas o som dos carros que enganou o teu subconsciente, vamo dormir, tá, por favor? Que eu tenho que acordar cedo amanhã e tá frio demais?
-Ai, Nelsoooooooooooon, dá uma olhada que seja, pelo amor de Deus, não vou conseguir dormir se tu não for até a sala pra ver se não tem, mesmo alguém, lá!
Nelson levantou com resmungos de protesto enquanto tentava fazer os dentes pararem de bater, pôs-se de pé segurando os braços junto ao peito e calçou as pantufas com pressa. Caminhou com passos apertados em direção à porta do quarto e a abriu, amaldiçoando o mundo enquanto o ar frio que vinha dos demais cômodos o atingiam como se fossem um tornado. Andou arrastando os pés pela casa por breves minutos, então voltou à porta do quarto onde encontrou Virgínia coberta até o nariz com o edredon.
-Não tem ninguém aqui, e a maldita da janela tava aberta, mesmo, a sala parecia a porra do Pólo Norte.
-Ai, amor, brigada, que susto...
-Tudo bem, vamo dormir, então?
-Tá. Ah! Amor, antes de tu deitar, pega o meu remédio pra cólica no banheiro e um copo d'água na cozinha?
-Pego. - Assentiu um confuso e rabugento Nelson enquanto andava em direção à cozinha novamente, ainda batendo dentes de frio e com os braços encolhidos. Virgínia sorriu enquanto o marido lhe entregava o remédio e a água, e, se tinha alguma dor na consciência pela farsa, ela sumiu quando teve que tirar os braços delicados de sob as cobertas quentinhas pra apanhar o copo.

Salto de fé


Tudo ia bem, pro Valdeir. Bom, "bem" também, é um exagero, as coisas iam bem pro padrão do Valdeir, que não era um patamar dos mais elevados, vamos combinar. Ele tinha um emprego decente, estava com a faculdade ali no colo, sua família gozava de boa saúde, tudo na santa paz, e, claro, havia Pamela. Pamela era a única coisa na vida de Valdeir que superava, e superava de longe, o status vigente das suas coisas. As coisas com Valdeir iam bem. Iam boazinhas. Iam na paz, tudo médio, tudo naquele largo patamar que chamamos de "funcional". Sabe? Como aquela mesa da cozinha. Não está estragada, não é nova, não é bonita, mas funciona. Sabe como?
A vida de Valdeir era assim em todos os âmbitos, à exceção de Pamela. Pamela era um glorioso, radiante e coruscante píncaro de glória iluminada na vida meia-boca de Valdeir. Valdeir não tinha, literalmente, palavras pra dizer pra ela o quanto ela significava na vida dele. Ele era incapaz de articular em sons inteligíveis ou símbolos legíveis, o tanto de cor, o tanto de calor, o tanto de vida que Pamela colocava em seus dias mais cinzentos e frios.
Valdeir supunha que Pamela sabia como ele se sentia, Mas, após uma daquelas conversas em que ela o deixava sem nenhuma reação exceto o seu sorriso mais bobo, Valdeir resolveu que precisava verbalizar seus sentimentos. Ou externá-los de alguma forma. O Valdeir resolveu que ia segurar na mão de Deus e dar um salto de fé. Mas lembrou que não acreditava em Deus, e nem tinha fé.
-Vida desgraçada, essa - pensou Valdeir enquanto se recolhia novamente à própria insignificância. - Dessas pessoas que nem eu, que precisam de provas e de certeza de tudo.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Cuidado...


Cuidado, amor, quando for atravessar a rua. Sabe como anda o trânsito, as pessoas estão malucas, apressadas, ninguém está livre de ser atropelado (Eu que o diga).
Cuidado, amor, quando sair da aula à noite. Sabe como anda a violência, as pessoas são essencialmente más, algumas desesperadas, ninguém está livre de ser assaltado.
Cuidado, amor, quando for tomar algum remédio. Sabe como são esses laboratórios, eles visam apenas o lucro, ninguém está livre de ter uma reação adversa a alguma medicação.
Cuidado, amor, quando for almoçar. Sabe, tu precisa te alimentar direito, ás vezes, com pressa, parece melhor só fazer um lanche, mas ninguém está livre de ficar anêmico.
Cuidado, amor, quando for esperar pelo ônibus. Sabe, ás vezes, com sono, a gente pode acabar dormindo na parada, e ninguém está livre de perder o ônibus e os sapatos.
Cuidado, amor, quando for falar comigo. Tu sabe dizer exatamente o que eu gosto de ouvir, e ninguém está livre de ter que passar horas conversando com um chato.
Cuidado, amor, quando for me encontrar. Tu cheira bem demais, e pode ser difícil me afastar do teu pescoço, ninguém está livre de ser confundido com um vampiro.
Cuidado, amor, quando for ouvir o que eu tenho a dizer, por que eu não sou inteligente, nem maneiro, nem divertido, e falo muito quando estou nervoso, de modo que ninguém tá livre de passar horas ouvindo um nerd trovar sobre meteorologia, cinema e astronomia feito um disco arranhado.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Resenha Cinema: O Discurso do Rei


Eu queria ver O Discurso do Rei desde antes de o filme papar os prêmios mais importantes do Oscar em fevereiro. Queria mesmo. Gosto muito do trabalho de Geoffrey Rush, acho um crime o Colin Firth só aparecer em comédias românticas britânicas, acho Tom Hooper um diretor que merece uma espiada, e achava Helena Bonham Carter uma ótima atriz antes de ela limitar seu trabalho aos Harry Potter e filmes do Tim Burton que, vamos combinar, já encheram o saco.
Mas, fevereiro chegou, saiu, e O Discurso do Rei estava em salas de cinema distantes demais pra eu querer me deslocar e vê-lo, e cheguei a pensar que só conseguiria assistir ao filme em DVD, ou Blu-Ray. Claro, eu estava subestimando o circuito alternativo, que sempre dá um jeitinho de recolocar na roda os filmes multi-premiados, e assim, ontem eu me abanquei confortavelmente na sala Paulo Amorim, da Casa de Cultra Mário Quintana, e vi o que, segundo os membros da academia foi o melor filme de 2010.
O longa de Hooper aborda um curioso episódio da Família Real britânica, em que Albert Frederick Arthur George (Colin Firth, merecido vencedor do Oscar), o segundo na linha de sucessão ao trono da Inglaterra, acaba se tornando rei após seu irmão mais velho abdicar a coroa em nome da própria felicidade ao lado de uma mulher divorciada.
O problema é que Albert era gago, e uma das obrigações da realeza, óbviamente, é falar em público, o que para o pobre nobre era impossível.
É onde entra em cena Lionel Logue (Rush), pouco ortodoxo australiano, especialista em problemas de fala que, a pedido da esposa de Albert, Elizabeth (Helena Bonham Carter, com uma discrição elegante que eu nem lembrava que ela tinha!), recebe o futuro rei para ajudá-lo a vencer seu problema.
Inicialmente descrente no trabalho do australiano, Albert abraça o trabalho de Logue, que pode ser sua única esperança de se tornar capaz de fazer sua obrigação como rei, e falar aos seus súditos no limiar da Segunda Guerra Mundial.
Tom Hooper dirige o filme com elegância, e até com excessivo conservadorismo, a direção de fotografia, porém, é muito esperta, usando ângulos e enquadramentos de câmera que tornam visível pra platéia o desconforto do personagem principal, além de usar com grande competência a luz e os contraplanos, mas o filme pertence, mesmo, ao seu elenco.
Colin Firth entrega uma atuação de primeira, cheia de nuances, contida em determinados momentos e explosivamente temperamental em outros, bem á moda dos nobres, ele é o dono do filme, mas Geoffrey Rush, embora interprete um papel menos exigente, especialmente pra um ator do seu calibre, não fica atrás, e dá alma ao longa, enquanto Helena Bonham Carter é o coração do trio.
No final das contas, O Discurso do Rei não seria o meu melhor filme de 2010, mas é um excelente filme que mostra o talento de Firth, de Rush, e mostra que Helena Bonham Carter devia trabalhar um pouco mais vezes fora de casa.

terça-feira, 22 de março de 2011

Pesadelo


Ele acordou sobressaltado, molhado de um suor frio. Sentou na cama respirando fundo na tentativa de fazer os batimentos cardíacos, que mais pareciam um tambor de selva, voltarem ao normal. Ele levou vários minutos fazendo isso. Respirando fundo, e olhando pra tela da TV, que mostrava um dos noticiários da madrugada da Globo News. Deitou novamente, encarando o teto. Fechou os olhos e coçou a barba de alguns dias. Sussurrou:
-Eu tive um sonho, agora... Ruim, Bem ruim. A gente tava junto, em um lugar... Tinha um cinema, eu acho, mas era aberto, era um tipo de cinema ao ar-livre, sabe? Um drive-in, mas sem o drive, tinha árvores, grama, e ninguém se incomodava, pois a tela do cinema era imensa, da altura de um prédio alto, mas bem mais larga, muito mais larga, e ia dar um filme, era em 3-D, mas a gente tinha esquecido de pegar os óculos, e então a gente saiu dessa área aberta, e era um shopping, e dentro do shopping tinha essa área aberta e verde do cinema. Engraçado, né? De qualquer jeito, a gente voltou pra pegar os óculos, e aí tu me pegou pelas mãos, e me falou alguma coisa, eu não me lembro o que era, mas era tão lindo, e eu não soube o que te dizer de volta, normal, né? Eu nunca sei o que te responder de volta... Tu me pergunta dos ciclos lunares, nomes de estrelas de outros sistemas solares, emigração, e isso eu consigo te responder, mas se tu me diz uma coisa bonita eu emudeço... Enfim, tu me falou isso... Eu não consigo lembrar o que era, mas era tão lindo... E eu sorri feito um idiota, sem dizer nada, parecia o Tobey Maguire quando a Kirsten Dunst repara que ele tem olhos azuis no primeiro Homem-Aranha, eu sorri, e tu sorriu de volta, e saiu andando, e eu fui pegar os óculos, e começou a tocar Stop Crying Your Heart Out, do Oasis nos auto-falantes do shopping, e eu entendi que aquela coisa linda que tu tinha me dito era uma despedida, e eu me desesperei pois não conseguia mais te ver, e só queria te encontrar, mas eu precisava pagar pelos óculos 3-D, e eles custavam quatrocentos reais e eu precisava ir ao banco, e aí me deu um alívio tão grande quando eu acordei e vi que tinha sido só um sonho... Mas aí, meu amor, eu estiquei o meu braço, e tu não tá aqui do meu lado, e eu não sei onde tu tá, nem o que tu tá fazendo, e nem me lembro do que eu te disse quando a gente se despediu pela última vez. Eu tava com vontade de me levantar, agora. Comer um biscoito, beber uma Fanta, terminar Assassin's Creed, mas não... Eu vou dormir de novo, tá bem, amor? Por que eu tô com muita saudade, e ás vezes, quando eu tô com dor de cabeça, eu durmo e alivia, então, quem sabe funciona, né? Quem sabe eu te acho naquela multidão e a gente vê aquele filme juntos, né?
'Cause all of the stars, are fading away, just try not to worry, you'll see them some day...

segunda-feira, 21 de março de 2011

Rapidinhas do Capita


De quando em quando eu penso na gente e rio sem parar, sabe? Em outras, dói muito, agora, por exemplo, tá doendo
Ás vezes eu me pego esperando que algo de muito ruim aconteça sem nenhuma razão, antes do começo, antes do fim
Eu sei, eu sei, é paranóia da minha parte, nem só de coisas ruins se faz a vida, eu sei, é claro, eu entendo
coisas boas ás vezes acontecem, tu por exemplo, é dessas coisas boas que acontecem, só não acontecem pra mim.

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O verão acabou, amor, acabou, que bom, assim fica mais fresco, acaba o calor, tá eu sei, acabar, mesmo, não acaba, pelo menos não imediatamente, mas já não vai ser tão quente. Eu nem achei que esteve tão quente assim, na verdade reclamei mais por hábito, acho que já vi verões bem mais quentes, tu não acha? Eu não sei, de qualquer modo, acho que já tiveram, sim. Nesse ano, tirando uns dias de janeiro, antes das férias, em que não deu nem pra tomar banho sem suar, achei que não foi ruim. O do ano passado, por exemplo, eu achei bem pior, sabe? O lado bom, amor, é que, acabado verão, quando a gente se encontrar, eu não vou estar suando em bicas. Pois é. Não vou ficar me encolhendo quando a gente for se abraçar por que minha camiseta está molhada no peito e nas costas, e nem vou estar com um bigode de gotículas de suor quando for te dar um beijo, por que eu pretendo te beijar, amor, pretendo, sim, espero que tu não te incomode de ganhar um abraço apertado e um (monte de) beijo de mim.

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Ah, como eu queria saber te arrancar um sorriso soprando um verso no teu ouvido.
Como eu queria te dizer um par de palavras e estar certo de que melhorei teu dia.
Mas o melhor que eu posso fazer, amor, é te beijar a orelha e deixar um zumbido.
Por que eu posso ser razoável de beijo e de retórica, mas sou muito ruim de poesia.

O messager


Ela estava esperando por ele em uma lanchonete onde iam desde que se conheceram. Ela nem era particularmente fã da tal da lanchonete, mas, à todas essas, já havia se acostumado com ela, de modo que era quase automático marcar os encontros dos dois lá. Ela olhou pro relógio do telefone celular. Ele estava atrasado. Estranho. Ele nunca se atrasava. Já tinha dez minutos de atraso. Ela alimentou aquelas minhocas de sempre, tinha razões pra tal, passado, e tudo mais. Enfim, ele apareceu. Chegou com uma expressão estranha no rosto, o cabelo repartido pro lado, uma boina na mão, e sentou na frente dela.
-Olá, chére.
Ela lançou-lhe uma expressão divertida e algo surpresa, e sorriu de volta:
-Olá.
Ele ficou olhando em volta como se estivesse conhecendo o lugar pela primeira vez. Ela perguntou se ele ia querer tomar uma Fanta, ou dividir uma Coca com ela.
-No, no - Ele responeu. -Eu vou tomar... Ah, no. Non posso tomar álcool, n'est pas? Tudo bem, enton, uma Coca-Colá.
Ela riu. Ele, de vez em quando, fazia dessas coisas. Brincadeiras que ela não entendia. Aquele sotaque francês fajuto se encaixava no tipo de humor dele.
-Tá bem, então, "François". Já vai pensando no que tu vai querer comer, pois eu acho que não vai ter nenhum lanche que inclua salada niçoise. - Ela disse enquanto agarrava o cardápio. Ele olhava pra ela, com um meio sorriso nos lábios. Ela ergueu uma sombrancelha, olhou pra ele, e estendeu-lhe um cardápio:
-Menu, monsieur?
Ele sorriu e segurou a mão dela.
-Eu consigo entender por quê ele te ama, mas non me entrra na cabeça a razón parra alguém como vous amá-lo.
Ela puxou a mão de volta.
-Tá, chegou dessa brincadeira sem graça, tá me assustando, Erasmo.
-Non, non, ma chére... O Errasmo non pôde comparrecer, non hoje, pelo menos.
-Chega, Erasmo...
-Ele querria. Ele não gosta de perder oportunidade de partilhar do teu tempo...
-Pára, Erasmo.
-Não sou o Errasmo, mon amour. Eu sou o Pierre.
-Tá bem, "Pierre", então chama o Erasmo, fa'çoavor?
-Non posso, chére. Ele non está disponível, agorra.
-Se tu não parar de palhaçada eu vou embora.
-Ele non pôde vir, pois o Errasmo non consegue dizer as coisas, savoir? Ele gostarria, ele querria, mesmo, mas é mais forte que ele. O Errasmo non é má pessoa, tem lá seus defeitos, mas quem não têm, n'est pas?
-Parou, Erasmo. Tá me assustando.
-Non prrecisa ter medo, chére. Ele tá segurro. Tá bem. E vai voltar em brreve. Mas antes...
-Antes o quê?
-Antes o vieux Pierre, aqui, terrá que fazer o serviço que o Errasmo non consegue, oui? Enton, vamos fazer rápido, parra o bobón poder voltar logo.
-Tá...?
- Entón... La vérité, é que o Errasmo non sabe falar o que sente, savoir? Ele non consegue exprressar os sentimentos dele, entón, têm muitas coisas que ele deixa passar, non? Ele tem tendência a se distanciar, se afastar, parrece que non está joyex, hãn? Parrece que está... Como é a palavrra...? Parrece entediado, acabrrunhado, oui?
Era verdade, ela pensou. O Erasmo tinha isso. Ele se distanciava, se emburrava, criava uma barreira entre eles. Ela nunca tinha certeza do que estava se passando pela cabeça dele, e por consequência, ela não sabia o que pensar.
-Ele nunca diz como é bom estar contigo, ele nunca diz como gosta de toutes les choses que tu faz, como te admirra, como gosta das afinidades que vocês partilham, ele non consegue dizer que te acha linda, que adorra le votre sourire, votre cheveux, votre sourcils, oui? Errasmo adorra tudo isso, entendre? Errasmo adorra tudo isso, ama tudo isso de passion, mas non sabe dizer. Je suis juste an messager, um mensageiro, oui? Prra te dizer que o Errasmo, mesmo sem saber como dizer, mesmo sendo un fou, mesmo com le distance, vous aime. Te ama.
Ela ouviu tudo com atenção. Ficou parada enquanto o Erasmo se levantava e dizia "au revoir, chére", e andava em direção ao banheiro. Ficou ali sentada, olhando pro cardápio sem de fato exergá-lo. Ergueu os olhos quando Erasmo voltou sorrindo, com o cabelo penteado como sempre, e sentou se desculpando pelo atraso.
-E então, vamos dividir uma pizza? - Ele perguntou.
-Oui. - ela respondeu sorrindo. -Uma pizza, o sol, as estrelas, la vie...
Estariam tré bien.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Conselhos


-Não é assim que funciona, velho.
-Eu sei.
-Não adianta tu entrar nessa, é furada.
-É. Tem razão.
-Eu sei que parece fantástico, que parece sensancional, mas, encare os fatos, meu amigo: Não é assim que o mundo funciona.
-É verdade.
-Tu tá com a tua noção de realidade nublada pela empolgação. Tu tá colocando o carro na frente dos bois. Tá contando com o ovo dentro da galinha. Tá ouvindo os latidos antes de a caravana passar.
-Acho que esse último tá errado.
-Pode ser, mas tu entendeu.
-OK.
-A verdade é que a seara que tu resolveu trilhar, leva unicamente ao desastre.
-"seara"?
-É... Achei que um pouco de solenidade na linguagem iria mostrar o quanto o lance é sério.
-Ah.
-Tu não foi feito pra isso. Tu nem devia ter permissão pra falar com gente, que dirá se relacionar com gente. Tu sabe como as coisas vão ser. Tu não é um ingênuo. Tu tem todos os defeitos do mundo, mas ingênuo tu não é.
-Puxa, obrigado.
-Sério, tchê. Se tu pensar, se tu concatenar por um breve instante que seja, tu vai ver que eu tenho razão. Isso já me aconteceu, lembra? Com aquela guria de Canoas. E o que tu me disse?
-Que ela era gorda.
-Não... Bom. Isso também. Mas não, tu me disse que eu não tava pronto pra aquela relação. Que eu era imaturo, idiota, e que eu ia colocar tudo a perder. E o que aconteceu?
-Mas vocês tão juntos até hoje!
-É, mas eu pareço feliz?
-Ah, cala a boca.
-Não, não... Falando sério, agora. Tu sabe como é que essas coisas acontecem. Olha... Não me obriga a apelar pra "Em caso de Emergência Quebre o Vidro".
-Tu não teria coragem...
-Ah, teria. Teria, sim. Se for o necessário pra te fazer ver a luz, eu teria.
-Não.
-Tu tá convencido?
-... Tô...?
-Não. Tu hesitou. Tá, me desculpa, mas eu vou ter que fazer isso. Finge que ouviu um barulho de vidro quebrando.
-Não.
-Lembra dela?
-Não.
-Lembra das conversas de vocês?
-Não. Não.
-Lembra como tudo parecia sensacional?
-Lálálálálálálálálálálá, não tô ouvindo, lálálálálálálálálálálálá!
-Lembra da...
-Não diga esse nome.
-Meyre?
-Desgraçado.
-Lembra ou não lembra?
-...
-Eu sei que sim, mas quero ouvir da tua boca.
-...
-Vamo, rapaz, tu tem quantos anos? Oito? Fala. Lembra?
-... Lembro.
-Ah, pois é. Me refresca a memória. Como foi que aquilo acabou?
-Mal.
-Mal...?
-É.
-Só mal?
-É.
-SÓ?
-...
-Desenvolva.
-Tá... Bem mal.
-Acho que a expressão que tu procura é tragédia.
-Nah... Não é pra tanto.
-Desastre. Armageddon. Holocausto. Apocalipse. Hecatombe.
-Tá, tá, eu entendi.
-Quanto tempo sem sair de casa?
-Uns dias...
-Vinte e dois?
-...
-Ainda bem que foi nas férias, senão tu tinha perdido o emprego.
-É possível...
-Quantas vezes tu ouviu Stop Crying Your Heart Out?
-... Todas, eu acho...
-É... Eu me lembro por que aquilo aconteceu. Tu lembra?
-Sim...
-Então tu sabe que eu tenho razão, não é?
-Sei.
-E vai seguir meu conselho?
-...
-Vai agir com o cérebro? Vai pensar no teu bem-estar e no que é certo?
-...
-Não, né?
-Não. Acho que não.
-Então boa sorte, filho da puta.
-Valeu, velho.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Sério isso, Bethânia?


Batatinha quando nasce espalha rama pelo chão
Menininha quando dorme, põe a mão no coração

E aí, Ministério da Cultura, cadê meu um milhão e trezentos mil reais?

quarta-feira, 16 de março de 2011

Não desista


Gilberto chegou em casa alguns minutos antes do horário de sempre, seu chefe o aliviara após pedir-lhe que ajudasse no treinamento de um novo funcionário, de modo que, naquela semana, vinha saindo meia hora mais cedo praticamete todo dia. "Deixa o novato trabalhar dobrado nessa meia hora final de expediente, Gilberto.", lhe dizia o patrão às cinco e meia, liberando-o de seus afazeres. "Vai namorar, jogar uma bola, ou ao cinema, só te some daqui.". E Gilberto, embora não quisesse jogar futebol, nem ir ao cinema, e muito meno namorar, ia, não apenas pra não desperdiçar a boa intenção de seu chefe, mas também por que andava cansado, abatido, alquebrado.
Chegou em casa e deparou-se com a faxineira, dona Gerusa, que lhe disse que tinha tomado a liberdade de beber o refrigerante que tinha na geladeira e arrumado umas gavetas que, nas suas palavras, "tavam pedindo pra virar ninho de barata". Ela havia jogado um monte de contas telefônicas velhas e faturas da TV a cabo fora, mas tinha achado umas coisas que talvez ele fosse querer, e, se não quisesse, ela levava agora com o resto do lixo e deixava na frente do prédio com os sacos.
Gilberto, meio a contragosto, foi fazer o inventário. Um álbum de figurinhas da Marvel de 1991, uns gibis da Mônica e do Cebolinha, meia dúzia de polígrafos da faculdade, e uma foto. Na foto, um Gilberto louco de faceiro fazia uma careta pra câmera abraçado em uma moça bonita de cabelos longos e negros. Essa moça era razão que, hoje em dia, lhe tirava a vontade de namorar.
A Fernanda.
O Gilberto era doido pela Fernanda. Era louco por ela, adorava ela de paixão, não sabia conversar sobre mulheres com os amigos sem falar dela, não sabia falar de nada sem mencioná-la, na verdade. Achava recompensador, importante, até, alardear o quanto ela era sensacional, quanto se davam bem, quanto tinham em comum, como ela era fantástica em tudo, especialmente em aguentá-lo com seus maus-humores, melancolias e inconstâncias. Ás vezes, quando um amigo seu dizia que a guria com quem estava saindo era isso, ou era aquilo, outro imediatamente já dizia, "É, mas a Fê...", antecipando o que inevitavelmente o Gilberto diria, mostrando por A + B, que a Fernanda era tão boa quanto a moça em questão, se não fosse muito melhor.
A Fernanda, esperando pelo Gilberto em casa quando ele chegava, ou o esperando na porta do trabalho, ou saindo da faculdade e sorrindo pra ele quando ele a esperava, eram as imagens vivas da felicidade às quais o Gilberto se agarrava pra ilustrar sua ideia de... Bom, felicidade, oras.
Até que aconteceu. Em um determinado momento, a Fernanda e o Gilberto brigaram. Feio. Feio, mesmo.
O mais engraçado, ou o mais triste, é que o Gilberto nem sequer lembrava por quê a briga começara. Mas lembra que acabou com ela dizendo que ele era reprimido, e com ele dizendo que ela era galinha.
"Galinha".
Parecia uma bobagem tão grande, olhando em perspectiva. "Galinha" era xingamento de quarta série, na concepção de Gilberto. A bem da verdade, o "galinha" saiu por que o Gilberto estava muito fulo, e não conseguiu pensar em nenhum xingamento mais violento. Ou, fosse ele mais calmo, tivesse suficiente presença de espírito, teria sido sardônico, teria sido sarcástico, e usado uma ofensa que fizesse justiça à Fernanda. Fernanda não era galinha. Ás vezes era briguenta, eventualmente era avoada. Galinha ela não era. Era orgulhosa. Ele lembra dela arrumando suas coisas sem derramar uma lágrima. Lembra da expressão fechada dela quando lhe entregou sua cópia da chave do apartamento. Lembra de ter pensado em segurá-la pela mão antes que ela saísse pela porta, e dito á ela que não fosse embora. Que não desistisse dele.
Mas ele não disse. Ele ficou lá, olhando ela partir usando uma máscara de orgulho que não lhe cabia.
Pensou em mandar dona Gerusa jogar a foto fora. Mas pensou melhor.
-Não, dona Gerusa. Eu vou guardar. Não tô preparado pra desistir disso.

terça-feira, 15 de março de 2011

Na fila


Dagoberto estava parado na fila do mercado, tinha um cesto na mão, dentro dele dois refrigerantes, um normal, e um zero. Não tomava nada dietético, mas seus amigos diabéticos não podiam consumir o açúcar de uma Fanta tradicional. Além dos refrigerantes uma caixa de bombons, um pacote de Doritos, um desodorante, as coisas de sempre. Nas costas uma mochila cheia de livros, lápis, folhas de papel, pastas canaletadas e outras tralhas que denunciavam que aquela seria uma tarde de RPG. Ele sorriu. Adorava RPG, achava divertidíssimo. Sabia que a maioria das pessoas viam RPGistas como nerds lunáticos que matavam amigos com facões em lugares ermos durante alucinadas sessão de jogo em live-action. Não era o caso dele e de seus amigos. Pelo menos, assim ele esperava.
Olhava distraído os livros em uma daquelas gôndolas estrategicamente colocadas na boca do caixa, Cem Sonetos de Amor, de Pablo Neruda. Não era dado a poesias, mas das de Neruda, gostava. Sempre sonhara em ser capaz de escrever poemas como os de Neruda. Apanhou, casualmente, o livro da gôndola, para ver se havia algum soneto escrito na contra-capa.
-Eu sempre soube - Disse a voz harmoniosa atrás dele. -Que sob essa dureza toda existia um romântico.
Dagoberto virou-se rápido, algo contrangido, não pôde evitar, e deparou-se com uma moça loira, cabelos curtos, olhos claros. Levou uma fração de segundo para ligar um nome de seu vasto arquivo à pessoa diante de si:
Regiane.
Regiane, com quem Dagoberto tivera um romance rápido, mas memorável. Claro, Dagoberto não pensou nessas palavras ao vê-la. O que pensou foi "Ah, não.". Não que Regiane fosse desagradável, ela não era. Ela bonita, era inteligente, tinha bom papo, estava, portanto, na contramão de ser desagradável. O "Ah, não" de Dagoberto fora causado pelo fato de ele não se sentir particularmente bem consigo mesmo naqueles dias. Mal barbeado, mal vestido, descabelado, não era, nem de longe, a melhor ocasião pra encontrar alguém com quem partilhara um passado. Especialmente alguém como Regiane, que aparentemente aproveitara muito bem os anos longe dele. Estava ainda mais bonita, com o sorriso brilhante iluminando-lhe o rosto delicado, cortara o cabelo, ele preferia cabelos longos, mas não podia negar que o corte caíra-lhe bem. Ela deu um passo a frente, abriu os braços, ele hesitou um segundo, chegou a titubear, como se estivesse prestes a receber um golpe, mas se recompôs rápido o suficiente para retribuir o abraço fraternal, e também o estalado beijo que recebeu na bochecha.
-Quê tu anda fazendo, guri? - Perguntou, jovialmente. Ele disse o que andava fazendo, ela também, ficaram conversando enquanto ele passava suas compras no caixa, continuaram enquanto ela passava as suas, ela disse que voltara ao velho pago recentemente, que sentira muitas saudades durante o tempo em que estiveram fora, aprendera a valorizar seu lar. Disse que a cidade continuava praticamente a mesma, haviam poucas diferenças, e, se algumas coisas haviam piorado, outras tantas melhoraram na proporção. Ela era otimista, lembrou-se Dagoberto. Isso sempre o incomodara, mas, ao mesmo tempo, era uma coisa que lhe faltava, ele que era sempre tão pessimista...
Ela continuou, disse-lhe que ele estava bem, que a barba o deixara distinto, que ele parecia mais alto do que ela lembrava, "Será que eu encolhi?", ela perguntou fazendo uma cômica cara de pânico.
Ele sorriu. Regiane era ótima. Se davam tão bem, sempre se divertiam, conversavam muito, durante muito tempo, era sempre estimulante falar com ela, quase o fazia sentir inteligente. Sorriu pra ela enquanto a ouvia falar, sentiu um calor tomando-lhe conta do peito e subindo-lhe pelo rosto, uma excitação. A convidaria pra sair? Devia convidar? Não tinha nenhuma ideia de como funcionava a etiqueta nesse tipo de caso. Com relação a ex-namoradas, ou, seja lá qual fosse o tipo de relação que tivera com Regiane antes. Eles jamais se preocuparam em rotular aquela relação, por isso ele jamais soube se ela era uma namorada, uma ficante eventual, um caso, ou o quê, não precisava saber, eles apenas se divertiam juntos. Por que eles não estavam juntos, mesmo? Ele nem era capaz de lembrar.
Ela continuava falando:
-Tu não usa mais óculos?
-Ah, ás vezes... Pra ler, ir a cinema, de vez em quando...
-Bom, sem óculos tu fica mais bonito.
Ele sorriu:
-Mesmo?
-Sim. - Ela confirmou. -De óculos tu parece um pouco, ah, sei lá, parece um nerd.
O sorriso dele sumiu. Lembrara porque não estavam juntos.

As chances


Ela bufou sentada no chão, largou o controle do video game, e virou-se pra ele com cara de poucos amigos:
-Não adianta - Disse. - Não consigo cem por cento de sincronização nessa memória idiota. Por que tu tinha que me fazer jogar essa porcaria desse Assassin's Creed? Agora eu viciei!
Ele sorriu por detrás dos óculos, deitado no sofá. Estava lendo um livro sobre a Segunda Guerra Mundial:
-Que memória é? - Perguntou. - A das armas do Leonardo Da Vinci?
-É. O tanque de guerra, aquele.
-Vixe, nunca consegui cem por cento, nessa, não pode tomar dano, né?
-É. É muito difícil, ainda mais aquela parte com os dois canhões!
-É, aquela parte é impossível, mesmo. - Ele disse, sentando-se no sofá e acariciando-lhe os cabelos cheirosos.
-É... - Ela assentiu ainda olhando pra tela da TV, que mostrava a mensagem "Dessincronization - Death" escrita em vermelho e preto no fundo branco.
-Mas - Ele posseguiu. -Nós somos bons nesse lance de impossível, não somos? Quer dizer, quais eram as nossas chances lá no começo, certo? Quando me falavam de tudo que podia dar errado, quando me diziam quais eram as possibilidades de fazer isso funcionar, cruzes, era de desanimar, mesmo. Mas, sei lá, por alguma razão, eu me sentia meio Han Solo: "Nunca me fale das probabilidades", sabe? E continuei acreditando, continuei botando fé, ora imagine, eu botando fé em alguma coisa, mas continuei, por que, sei lá, àquela altura, eu precisava acreditar, era parte de mim, uma parte boa, talvez a única parte boa de mim, e sem ela... Bom, francamente, sem ela, qual era o ponto de continuar, não é? E deu certo, olha só pra gente, não é? Quer dizer, eu, pelo menos, não tenho queixas. Valeu a pena continuar tentando, valeu a pena acreditar que daria certo, e fazer dar certo, então... Pôxa, continua tentando. Acho que pode dar certo. Cem por cento, com certeza...
-A gente ainda tá falando do Assassin's Creed? - Ela perguntou arqueando as sombrancelhas.
-Não. - Ele respondeu sorrindo.
Se beijaram. Ela terminou Assassin's Creed com 87% de sincronização. Foi melhor que ele, que terminou com 79%. Mas não se importaram.

segunda-feira, 14 de março de 2011

E se...?


Quem nunca sentiu dor? Todos sentimos alguma. Sentimos antes, podemos estar sentindo agora, e inevitavelmente sentiremos no futuro.
Dor é vida, alguém já disse. É possível. Explicaria o índice de suicídios... Ninguém gosta de sentir dor. As pessoas fazem tudo pra não sentir dor. Elas se exercitam, fazem check-ups periódicos, se viciam em analgésicos... É perfeitamente natural. Ninguém gosta de dor, ninguém quer sentí-la. Que já chutou uma bola com o dedo da unha encravada sabe, quem já deu à luz sabe. Quem já prendeu o dedo mínimo na gaveta, ou recebeu a chibatada de um elástico que arrebenta no lábio sabe. Dor é ruim.
E existe um tipo de dor que dói mais do que qualquer outra. Uma dor silente e constante, que não quer acabar nunca. É uma dor silenciosa pra todos, menos pra aqueles que a sentem. Pra esses coitados, ela berra como Amazing Graces ao som de gaita de foles. Não é feio, mas angustia, machuca, dá a sensação do que se perdeu. Ela paira como uma nuvem, pulsa como um sapo, e está sempre presente. Às vezes nos esquecemos dela, sorrimos, encontramos distração em uma atividade de todo dia, mas, quando menos se espera, ela ressurge. Estava ali o tempo todo, sentada em uma cadeira, vestida de preto como uma viúva má e agourenta que perdeu a razão de sua alegria e agora se dedica a infernizar quem ainda vive.
Provavelmente essa dor é assim. Uma velha de rosto encovado, de rugas profundas, de olhos escuros onde se vê o que é, e se imagina com pesar o que poderia ter sido.
Pena e comiseração é o que merecem aqueles que sentem essa dor. A dor da oportunidade que se foi, da palavra que não foi dita, do amor não consumado, do olhar jamais trocado. Pena e comiseração, pois feridos, assustados, ou decepcionados, desistiram. Pena e comiseração pois abandonaram a luta. Pena e comiseração pois, por mais que encontrem paz e conforto, por mais que encontrem amor e até felicidade, ainda verão, eventualmente, sentada em um canto, aquela velha funesta, e poderão ver em seus olhos quando ela perguntar:
-E se...?

sábado, 12 de março de 2011

Coisas quebradas


Leonardo acordou naquela manhã modorrenta e descobriu-se viciado em taurina. A dor de cabeça recorrente sugeria uma visita ao neurologista, se ele não conhecesse a causa dela. Andou com dificuldade até a cozinha, abriu a gaveta de um armário e pegou dois comprimidos de uma cartela de analgésicos, jogando-os na boca melada pela saliva grossa do sono. Abriu a geladeira e apanhou um redbul colocado estratégicamente junto à porta. Abriu a lata, e bebeu um gole pequeno que empurrou os comprimidos garganta abaixo. Uma vez alguém especial lhe dissera que até uma laranjada alterava a farmacodinâmica de um remédio, imagine então um energético? Mas Leonardo não acordara naquela manhã particularmente preocupado com a própria saúde. Seu corpo estava uma bagunça, é verdade. Descabelado, mal barbeado, com uma roupa ainda mais rôta do que o habitual. O problema de Leonardo não era a gastrite, não era o vício em taurina ou a revolução caótica e provavelmente maléfica que a mistura de energético com analgésico e anti-inflamatórios estavam causando em seu organismo pouco habituado à tanta química.
Não...
O problema de Leonardo era outro. Ele sabia qual era, por difícil que fosse verbalizar.
Seu espírito estava quebrado. O que o fazia coçar a cabeça dolorida de dúvida era se estaria quebrado além de qualquer conserto.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Rapidinhas do Capita


Efraim era solitário e triste. Não por causa do nome, cuja origem ignorava. Era triste por ser solitário, e era solitário por ser tímido.
Até que conheceu uma moça bonita que tinha cabelos castanhos muito compridos e lisos. Se nome era Kitellen. Por um desses acasos do destino, Kitellen gostou de Efraim, e eles acabaram ficando juntos, pra alegria dos amigos que não aguentavam mais a melancolia dele. Ele amava Kitellen, e ela correspondia, era perfeito, todos diziam.
O nome dele combinava com marca de gotas nasais, e o dela combinava com marca de lenço de papel. Só podiam ser muito felizes juntos. A única coisa que atemorizava os amigos era qual seria o nome do filho do casal.

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Ele abriu o jornal.
Teve um terremoto de 8,9 na escala Richter (Que vai até 10), seguido de um tsunami no Japão. Pelo menos quarenta e cinco mortos, até o momento, fora os danos estruturais que já foram causados pelo tremor. Não muito longe de Porto Alegre, em São Lourenço do Sul, uma enxurrada isolou localidades, e matou oito pessoas, pelo menos. Na Líbia, cofrontos sangrentos entre rebeldes e militares fiéis ao ditador Kadhafi estremecem o país. O Iraque não está muito melhor que a Líbia. O Afeganistão, então, nem se fala. Na África sub-saariana as guerras tribais continuam chacoalhando a população local, as guerras civis, idem. Por falar em chacoalhar, o Haiti segue demolido mesmo tanto tempo depois do terremoto que destruiu o país. O Dalai Lama pensa em aposentadoria. O aquecimento global só piora. A Coréia do Norte tem a bomba atômica. A índia tem a bomba atômica. O Paquistão, também tem.
O aquecimento global só piora. Péssima hora pra ser um urso polar.
A direção do Inter está dividida entre assumir uma parceria com uma construtora ou tocar a obra do Beira-Rio com recursos próprios.
Uma mulher perdeu o cachorro durante uma viagem de avião. Deve ser dolorido perder o cachorro em uma viagem de avião, pensa.
A Shakira vem à Porto Alegre.
Ele foi a um show da Shakira. Foi em 97.
Ele fechou o jornal. Existem tragédias muito piores acontecendo pelo mundo áfora, algumas quase no quintal. Suspirou pra si mesmo.
Mas não se convenceu.

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Evandro sentiu cada centímetro do aço frio rasgando suas entranhas em direção à sua coluna, quem segurava a espada era um homem parecido com o Tom Waitts, mas com uma cabeça cerca de quatro ou cinco vezes maior que a cabeça de uma pessoa normal. Ele era alto, e parecia ter alguma idade, mas era forte. Vestia jeans cinza surrados, e um colete preto tão gasto que o couro já rachava. O sujeito com a cabeça enorme sorriu dizendo "Feliz Páscoa, Evandro!" enquanto o apunhalava. Evandro pensou em correr pra longe da espada, mas achou que seria falta de educação já que era páscoa e ele nem sequer tinha comprado um ovo pra dar de presente à sua mãe, e estava atrasado pra o baile onde encontraria sua tia, que seria seu par, pois nenhuma das meninas da escola quisera acompanhá-lo, e ele nem sabia se sentia mais vergonha de ir com a tia ao baile, especialmente por que ela iria vestida de bailarina como sempre ia às ocasiões sociais, ou se sentia mais dor por estar sendo apunhalado por aquele monstro medonho vestido de motoqueiro e que estava, agora confortavelmente sentado no lombo de uma ovelha que tinha presas enormes e pernas compridas e finas e que era amparada por dois supridores do super-mercado Nacional.
Tocou o ti-ri-ti-ti do alarme e Evandro acordou suando frio, fora apenas um pesadelo. Levantou-se vestindo as calças, colocou a camiseta, as meias e os tênis, e rumou ao banheiro. Após atender ao chamado da natureza se olhou no espelho por alguns minutos. Alguns fios de sua sombrancelha apontavam pra cima. Ele encarou aqueles fios por longos minutos nos quais imaginou se não seria melhor ter ficado dormindo, sendo apunhalado pela espada de uma criatura medonha, ou indo ao baile da escola junto com a tia vestida de bailarina.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Across The Stars

-Eu sempre soube - Disse o Éverton -Como seria quando eu encontrasse o amor da minha vida.
-Mesmo?
-Sim. Tinha tudo esquematizado na minha mente. Todos os detalhes. Seria perfeito. Nós ficaríamos amigos primeiro, ela e eu. Bons amigos, melhores amigos. Conversaríamos por horas à fio, ás vezes, quando déssemos por conta, já teriam se passado várias horas, e nós nem teríamos reparado, pois nosso papo seria tão divertido... Ela e eu teríamos muitos gostos em comum, senão, não teríamos como ser amigos de verdade, entende? Teríamos todas essas afinidades, mas também teríamos algumas coisas em que seríamos completos opostos, pra podermos implicar amavelmente um com o outro, e assim faríamos, especialmente depois que a nossa amizade já estivesse mais entranhada. Quando ela e eu nos conhecêssemos, estaríamos namorando outras pessoas. Assim, poderíamos fazer queixas e trocar confidências, e nos consolaríamos quando alguma coisa desse errado, e quando o namoro de um dos dois acabasse, o outro seria o ombro onde iríamos afogar as mágoas. Conforme o tempo fosse passando, nossa amizade iria empalidecer um pouco. Nos afastaríamos por algum tempo, mas nos reencontraríamos, e seria como voltar pra casa. O engraçado, é que a sugestão de flerte que pra todos já seria óbvia àquela altura, só iria começar a aparecer pra gente em um momento bem bobinho, alguma coisa besta e inocente, tipo, a minha mão na nuca dela ao atravessarmos a rua...
-Na nuca?
-É, eu adoro nuca de mulher, adoro. Sei lá... Enfim, só nesse momento a sugestão de flerte ficaria evidente pra mim, pra ela iria demorar mais, talvez precisasse de outro gatilho, quem sabe, uma amiga dela perguntasse de mim, sabe? "Quem é aquele teu amigos?", e ela iria falar com alguma reticência, e se pegaria com ciúmes. E então, por alguma razão, ela, maravilhosa como ela só, veria alguma qualidade minha? Eu devo ter alguma, não é?
-Tu é bom na queda de braço, e não tem medo de abrir o açougue quando joga futebol, pra mim são grandes qualidades...
-É... Bom, talvez ela visse alguma outra coisa, sei lá. E gostasse de mim, também. E eu já amaria ela como amiga, e então, ela me olharia de um jeito diferente depois de a gente correr no Gasômetro, e o sol estaria se pondo, e jogaria uma luminosidade púrpura no rosto e no cabelo dela, e ela sorriria pra mim, e eu ia ouvir, claro como o dia, em todas as notas...
-O quê?
-...Across The Stars.
-Que porra é essa?
-É o tema de amor que toca pra Padmé Amidála e pro Anakin Skywalker em Star Wars Apisódio II - O Ataque dos Clones.
-Porra, aqueles três primeiros filmes são uma bosta.
-Não... Não são, não. Eles carecem, mesmo, da magia dos filmes da década de setenta e oitenta, mas não são ruins. Tem o Qui-Gon Jinn, tem o Darth Maul-
-Tem o Jar-Jar Binks.
-É, mas nos filmes dos anos setenta tinham os Ewoks, então, quase empata a fatura. Eu gosto dos filmes novos, os duelos de sabre de luz são sensacionais, e sempre haverá a música de John Williams.
-É, tá, não dá pra discutir isso contigo, mesmo. Mas e aí? Tocou a música? Across the Stars?
-Não... Ainda não. Mas eu tô ouvindo ela direto no meu MP3.

Passa...


Era um dia de verão abafado como outros tantos nos verões portoalegrenses. A culpa era da umidade. Lair não sabia ao certo, porque, mas sempre ouvira sua mãe maldizer o calor culpando a umidade. "Fosse o nosso clima mais seco, nosso verão não seria tão quente, nem nosso inverno tão frio.", ela dizia após secar a testa em alguma manhã calorenta quando, ao tanque, lavava roupas que não podia simplesmente jogar na máquina de lavar.
Essa era apenas uma das coisas entranhadas na mente de Lair desde que ele era um moleque de calção branco e chinelos de dedo do He-Man correndo por dentro de casa enquanto brandia uma espada imaginária e massacrava inimigos medonhos que se ocultavam em cantos escuros que de escuros nada tinham naquelas manhãs de verão. A culpa provavelmente era de seu pai. Seu pai lia gibis do Conan e, por impróprios que sua mãe e avós achassem, Lair era autorizado também a lê-los, e os lia. Por Deus, Lair os lia. Devorava as aventuras em preto e branco do bárbaro cimério, escritas pelo genial Roy Thomas e ilustradas pelo mestre John Buscema.
Os avós de Lair eram muito presentes em sua vida e criação. Lair passava uma parcela considerável de tempo com os dois, pois moravam em um apartamento espaçoso, onde, ao contrário do apartamento de dimensões reduzidas que dividia com seus pais, Lair via sua vida plena de privacidade, o que tornava os dias que passava na casa deles a hora de ser dono do próprio nariz.
Tudo isso passava pela cabeça de Lair naquela manhã calorenta de final de verão em Porto Alegre. Ele não sabia dizer porque aquilo tudo martelava em sua cabeça.
Lair não era sujeito de reminiscências, entretanto... Entretanto algo mexera nas vespas que viviam em algum canto esquecido das entranhas de Lair.
Mas passaria. Sempre passava...

terça-feira, 8 de março de 2011

Resenha Cinema: O Ritual


Pois é... Filme de terror. São coisas que só o carnaval fazem comigo, eu prefiro ir pro cinema ver Jogos Mortais 748 do que ficar em casa e ver o desfile da Unidos da Tijuca na GloBobo, ou o carnaval da Bahia na Band (Sério... Qual o sentido em transmitir um carnaval onde o barato é se esfregar todo suado em meia dúzia de desgraçados pulando em volta?), de qualquer modo, o importante é que, mil vezes cinema do que o carnaval, qualquer cinema. Eu queria mesmo, confesso, era ver O Discurso do Rei, ou Besouro Verde, mas esses filmes estão passando em cinemas muito longe da minha casa, e, no cinema mais pertinho, as opções eram Rango (Eu não gosto de desenhos.), Bruna Surfistinha (Fala sério, né? Pra ver a Déborah Secco pelada é só ver a novela das oito ou comprar uma das Playboy dela em um sebo.) ou Vovó... Zona 3 (Sem comentários...), então, resolvi arriscar o filme de exorcista com Anthony Hopkins, ator que raramente me desaponta.
Filmes de exorcista, como se sabe, são umas das vertentes mais exploradas do terror. Desde que Linda Blair ficou encapetada no clássico O Exorcista, volta e meia o tinhoso em pessoa se enfia na pele de algum desavisado dando origem a filmes com resultados tão variados quanto o bom O Exorcismo de Emily Rose, quanto mequetrefes pra danar como O Último Exorcismo, esse O Ritual, se perfila no grupo dos filmes legais.
Na trama conhecemos o jovem Robert Kovac (Colin O'Donoghue), que vive com o pai viúvo em uma pequena cidade norte-americana trabalhando em uma funerária. Sem dinheiro pra fazer faculdade e sem nenhum interesse em seguir a carreira de papa-defunto, o rapaz, mesmo desprovido de fé, se increve no Seminário como forma de obter educação de graça para depois abandonar o sacerdócio e seguir com sua vida. Ele é temporariamente dissuadido por seu professor, padre Matthew (Toby Jones), que lhe pede que, antes de decidir que caminho quer seguir, ele participe de um curso de exorcistas que acontece no Vaticano, o que o cético jovem, muito a contragosto, faz.
Lá, Michael conhece o padre Lucas Trevant (Anthony Hopkins, dono do filme, se divertindo às pampas, maneiro pra danar quando faz tipo de maluco.), experiente exorcista que lhe mostra as artimanhas do coisa-ruim, e as formas de lidar com elas.
O grande barato de O Ritual, além do elenco muito bom, que tirando o galãzinho-esforçado-mas-só-isso Colin O'Donoghue tem só atores talentosos como Hopkins, Jones, além de Ciáran Hinds, Alice Braga e Rutger Hauer ajudando a contar a boa história, é o fato de o filme não ser aquele terror típico e manjado, repleto de sustinhos batidos e meia-boca ou apoiado unicamente no grafismo de cabeças que giram e jatos de suco de abacate, tornando-o um suspense sobrenatural e um debate sobre ceticismo e fé onde a presença do diabo enquanto vilão é constante, mas ele é um adversário elegante, uma ameaça intelectual e, de certo modo, discreta, agindo através dos possessos testando a fé dos homens e fazendo a sua parte pra aumentar a tensão de quem está sentadinho no escuro esperando pra ver o que acontece na próxima cena.
Provavelmente isso pode incomodar aquelas pessoas que curtem um bom slasher à moda antiga (Confesso que cansei disso antes mesmo de Jason Vorhees viajar pra Nova York)ou aqueles filmes de horror mais óbvios, mas foi o diferencial que me fisgou. O Ritual provavelmente vai estar na minha estante quando for lançado pra home video, ali, do ladinho do espaço reservado pra O Bebê de Rosemary, último bom filme de terror autêntico produzido pelo cinema.

"Tenha cuidado, Michael. Escolher não crêr no diabo não o protege dele."

domingo, 6 de março de 2011

Transformação...


Oswair se acostumara a ser invisível. Não era fácil. Ser invisível exigia anos de solitária dediação. Por sorte, ou por azar, dependendo do ponto de vista, Oswair tinha as duas coisas. Era dedicado, e era solitário. Sempre fora, era fácil, pra ele, se afastar das pessoas. Não as entendia bem. Era desconfiado ao extremo, pessimista, incrédulo, talvez, até, um pouco tristonho. Não que fosse deprimido. Oswair ria. Se divertia, achava graça nas coisas, ás vezes em coisas que, pensando bem, nem tinham tanta graça, ainda assim, conseguia levar a vida com sorrisos, poucos, é verdade, mas ainda assim, ao menos francos.
Oswair era um sujeito simples, sabia do que gostava, sabia quem era, e, mais importante, sabia quem queria ser. Estava satisfeito, algumas pessoas o consideravam desagradável, mas e daí? Ele considerava quase todos desagradáveis, logo, que diferença fazia, não é?
É. Oswair não via razão pra se preocupar. Estava satisfeito do seu jeito. Com suas coisas, seu microcosmo, respondendo ao mundo com sarcasmo e ironia, rindo quando sentia vontade, e apenas quando sentia vontade, sem ligar pra nada ou ninguém.
Rick Blaine.
Sim. O Rick Blaine de Casablanca. Era o que ele almejava ser. Nada além disso. Um camarada cínico, frio, durão, que não se arriscava por ninguém, não importava o quê. Um sujeito tarimbado, experiente e que parecia ter mijo gelado escorrendo nas veias e testículos de pedra e que não queria ser notado, apenas paz para curtir a própria amargura.
Até que aconteceu. No lugar mais imporvável que ele podia imaginar, ele a encontrou. Linda, divertida, inteligente, tinham tanto em comum, e eram, ao mesmo tempo, tão diferentes, ela era tão melhor do que ele em todos os aspectos, fazia-o se sentir tão inadequado. Ainda assim, á despeito disso, se aproximaram. Conversavam, riam, após apenas algum tempo, ele percebeu que ela era especial. Percebeu isso através de um sinal tremendamente simples, na verdade:
Ela fazia com que ele já não desejasse mais estar sozinho, que não quisesse mais ser invisível, foi ela quem fez com que ele, ao invés de Rick Blaine, desejasse ser Atticus Finch.