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terça-feira, 15 de março de 2011

Na fila


Dagoberto estava parado na fila do mercado, tinha um cesto na mão, dentro dele dois refrigerantes, um normal, e um zero. Não tomava nada dietético, mas seus amigos diabéticos não podiam consumir o açúcar de uma Fanta tradicional. Além dos refrigerantes uma caixa de bombons, um pacote de Doritos, um desodorante, as coisas de sempre. Nas costas uma mochila cheia de livros, lápis, folhas de papel, pastas canaletadas e outras tralhas que denunciavam que aquela seria uma tarde de RPG. Ele sorriu. Adorava RPG, achava divertidíssimo. Sabia que a maioria das pessoas viam RPGistas como nerds lunáticos que matavam amigos com facões em lugares ermos durante alucinadas sessão de jogo em live-action. Não era o caso dele e de seus amigos. Pelo menos, assim ele esperava.
Olhava distraído os livros em uma daquelas gôndolas estrategicamente colocadas na boca do caixa, Cem Sonetos de Amor, de Pablo Neruda. Não era dado a poesias, mas das de Neruda, gostava. Sempre sonhara em ser capaz de escrever poemas como os de Neruda. Apanhou, casualmente, o livro da gôndola, para ver se havia algum soneto escrito na contra-capa.
-Eu sempre soube - Disse a voz harmoniosa atrás dele. -Que sob essa dureza toda existia um romântico.
Dagoberto virou-se rápido, algo contrangido, não pôde evitar, e deparou-se com uma moça loira, cabelos curtos, olhos claros. Levou uma fração de segundo para ligar um nome de seu vasto arquivo à pessoa diante de si:
Regiane.
Regiane, com quem Dagoberto tivera um romance rápido, mas memorável. Claro, Dagoberto não pensou nessas palavras ao vê-la. O que pensou foi "Ah, não.". Não que Regiane fosse desagradável, ela não era. Ela bonita, era inteligente, tinha bom papo, estava, portanto, na contramão de ser desagradável. O "Ah, não" de Dagoberto fora causado pelo fato de ele não se sentir particularmente bem consigo mesmo naqueles dias. Mal barbeado, mal vestido, descabelado, não era, nem de longe, a melhor ocasião pra encontrar alguém com quem partilhara um passado. Especialmente alguém como Regiane, que aparentemente aproveitara muito bem os anos longe dele. Estava ainda mais bonita, com o sorriso brilhante iluminando-lhe o rosto delicado, cortara o cabelo, ele preferia cabelos longos, mas não podia negar que o corte caíra-lhe bem. Ela deu um passo a frente, abriu os braços, ele hesitou um segundo, chegou a titubear, como se estivesse prestes a receber um golpe, mas se recompôs rápido o suficiente para retribuir o abraço fraternal, e também o estalado beijo que recebeu na bochecha.
-Quê tu anda fazendo, guri? - Perguntou, jovialmente. Ele disse o que andava fazendo, ela também, ficaram conversando enquanto ele passava suas compras no caixa, continuaram enquanto ela passava as suas, ela disse que voltara ao velho pago recentemente, que sentira muitas saudades durante o tempo em que estiveram fora, aprendera a valorizar seu lar. Disse que a cidade continuava praticamente a mesma, haviam poucas diferenças, e, se algumas coisas haviam piorado, outras tantas melhoraram na proporção. Ela era otimista, lembrou-se Dagoberto. Isso sempre o incomodara, mas, ao mesmo tempo, era uma coisa que lhe faltava, ele que era sempre tão pessimista...
Ela continuou, disse-lhe que ele estava bem, que a barba o deixara distinto, que ele parecia mais alto do que ela lembrava, "Será que eu encolhi?", ela perguntou fazendo uma cômica cara de pânico.
Ele sorriu. Regiane era ótima. Se davam tão bem, sempre se divertiam, conversavam muito, durante muito tempo, era sempre estimulante falar com ela, quase o fazia sentir inteligente. Sorriu pra ela enquanto a ouvia falar, sentiu um calor tomando-lhe conta do peito e subindo-lhe pelo rosto, uma excitação. A convidaria pra sair? Devia convidar? Não tinha nenhuma ideia de como funcionava a etiqueta nesse tipo de caso. Com relação a ex-namoradas, ou, seja lá qual fosse o tipo de relação que tivera com Regiane antes. Eles jamais se preocuparam em rotular aquela relação, por isso ele jamais soube se ela era uma namorada, uma ficante eventual, um caso, ou o quê, não precisava saber, eles apenas se divertiam juntos. Por que eles não estavam juntos, mesmo? Ele nem era capaz de lembrar.
Ela continuava falando:
-Tu não usa mais óculos?
-Ah, ás vezes... Pra ler, ir a cinema, de vez em quando...
-Bom, sem óculos tu fica mais bonito.
Ele sorriu:
-Mesmo?
-Sim. - Ela confirmou. -De óculos tu parece um pouco, ah, sei lá, parece um nerd.
O sorriso dele sumiu. Lembrara porque não estavam juntos.

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