Pesquisar este blog

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Relógio



19:54: O título

Olha o relógio, faz cara de "que tarde":
-Putz... Quase oito horas... Vou pra casa, alemoa.
-Fica mais um pouco. A gente tá no meio da conversa, pombas...
Olha o relógio de novo:
-Tá... Eu fico mais um pouco, então.
-Bonito esse relógio. É novo?
-Não... Já tenho faz um tempo.

********************************************

18:38: O começo

Através do interfone:
-Quem é?
-Sou eu, Didi. Te trouxe um presente, desce aqui pra pegar...
-Não, sobe aí, quero falar contigo.
Ele teve a sensação de que a conversa não seria das mais animadas quando, ao entrar pela porta aberta do apartamento, a viu sentada sobre um pufe, de costas pra TV, com o I-Pad no colo, e ela jogou a capa do aparelho nele ao vê-lo parado no fim do minúsculo hall de entrada.
-Tu conseguiu, né, seu traste? Tu ia conseguir alguma hora. De tanto que tu tentou!
Ele esboçou um sorriso:
-Se a gente tá jogando coisas melhor eu te dar teu presente outra hora...
-Cala a boca e me dá minhas canecas, aqui.
Ele entregou o embrulho pra ela, que abriu com cuidado, removendo as caixas de papelão branco de dentro do papel de presente vermelho metálico. Abriu uma, depois a outra, as pousou sobre a mesinha com tampo de vidro no centro da sala e agradeceu:
-Brigada, Ned. São muito bonitas.
-Que bom que tu gostou.
-Mas não muda de assunto... Tu leu o que ela escreveu?
-Li.
-Leu tudo...
-As duas partes.
-São três.
-Três?
-Lê aí.
E estendeu o tablet pra ele.

********************************************

5:58: A despedida

Ele dobrou o edredom com cuidado, e o pousou sobre o sofá. Foi até o banheiro e amarrou o cabelo. Entrou no quarto dela pé, ante pé, e tocou-lhe de leve no ombro:
-Alemoa? Didi...
-Hum? - Ela resmungou, encolhida em posição fetal.
-Tô indo embora, tá? Obrigado por me ouvir. Obrigado por tudo.
-Obrigada pelas canecas e pela pizza e por ir na festa comigo...
Ele riu:
-De nada. Deixei teu edredom lá no sofá, tá? A gente se fala mais tarde.
Agachou-se e a beijou de leve na testa. Ele se mexeu, endireitando-se:
-O que tu vai fazer?
-Nada... Vou pra casa escovar os dentes, pegar minha mochila e ir trabalhar...
-Não... Do que a gente falou, ontem.
-Vou fazer o que tu disse.
-Às vezes eu tenho vontade de te esmurrar, sabia?
-Eu sei... Bom trabalho, alemoa.
-Pra ti, também. Bom dia. Traste...

**********************************************

19:01: O que tu quer?

-O que tu acha? - Ela perguntou, entrando na sala com duas canecas de Pepsi.
-Eu não acho nada, Lady Di... E quando eu acho, geralmente já tem dono.
-Sério. - Ela perguntou, chutando a capa do tablet pra perto dele e estendendo-lhe a caneca dos Beatles.
-Eu não sei... Conscientemente? Não. Conscientemente ela é o que eu quero. Tudo o que eu quero. Só o que eu quero.
-O que tu quer?
-Sim.
-E então por que vocês não tão juntos?
-Não sei...
-Vamos repassar teus relacionamentos...
-Ah, não.

***********************************************

21:43: Zangieff

-...Tu tá com fome?
-Um pouco...
-Quer pedir uma pizza?
-É... De repente...
-Só que as pizzas que eu tenho aqui não trabalham com Pepsi... Tudo Coca ou guaraná.
-A gente compra uma pepsi ali no Zangieff antes de ligar.
-Onde?
-No mercado. - Ele respondeu, levantando do sofá e vestindo o casaco que enganchou na pulseira do relógio obrigando-o a fazer uma pequena dança pra se desliar.
-Hum... Tu emagreceu?
-Um pouco...
-Quanto?
-Sete quilos.
-Tu tem comido direito?
-Mãe, o que é que tu tá fazen...-
-Hã?
-Tenho. Só tenho comido pouco.

***********************************************

20:12: Grave ponderação 1

-Tu não pode decidir pelos outros. Ela tem razão em ficar puta.
-Eu não... Eu não decidi por ela.
-Decidiu, sim. Por que é que tu pensa que só tu sabe o que é melhor e que só tu tem o direito de se magoar e ficar puto e fazer merda e se desculpar?
Ele riu:
-Tudo isso?
-É! Tudo isso. É sério, Ned... Tu precisa parar com isso... O que terminou com todos os teus namoros anteriores-
-Fora circunstâncias e motivos totalmente diferentes! - Ele interrompeu.
-É, mas a conclusão a que tu chega depois sempre é a de que tu terminou os namoros porque tu estava fazendo algo de errado! A outra parte sempre parece disposta a perdoar as tuas escorregadas e tentar de novo, e tu parece sempre decidir "Oh, não, eu não sou bom o bastante, pra ela. Melhor me afastar...", e acaba tudo.
-Não é assim...
-É bem assim. Tu leu gibi demais. Tua noção de bom mocismo é fora da realidade.

************************************************

22:20: Coice

-O pior é ela achar que o amigo dela tenha razão...
-Se o amigo dela tivesse alguma noção de romance não tinha sido biqueado pelo amor da vida dele.
-Eita... Cadê teus arreios?
-Tô falando sério. Tu é outro inepto na questão, mas ao menos tem a decência de não tentar aconselhar ninguém a respeito...
-Valeu.
-Quando te pedem conselhos a respeito de romance, o que tu diz?
-Não digo nada. Daiana Prince me proibiu.
-Palhaço.

************************************************

21:03: Enigma

-Esse coque e essa barba... Tu tá tentando parecer o quê? Um artesão da Praça da Alfândega?
-Tô tentando parecer o Khal Drogo.
-Eh, eh... Sonha...
-Bah... Obrigado.
-Mas não fica triste, o John Snow é bonitinho. Com o teu cabelo tu tá mais pra Jon Snow.
-Tá, valeu... Ela dizia que lembrava de nós quando via o Drogo e a Daenerys.
-A diferença de altura é grande assim, né?
-É...
-Não incomodava ela... Te incomodava?
-Bem capaz... Como é que tu sabe que não incomodava ela?
-Eu li... Li tudo, te disse.
-Como é que tu pode ter lido tudo se ela tirou tudo ar?
-Aaaaah... Tu não sabe de nada, Jon Snow...
-Fala.
-Se ela não te contou, não sou eu que vou contar. Mas digamos que tu tem a resposta no teu blogue. Só não sabe...
-Tu pode fazer todos os enigmas que quiser, vai ter que comer muito arroz com feijão pra ficar gostosa igual a Melisandre...
-Credo, cavalo...
-Dothraki até a medula, alemoa...

************************************************

00:25: Dorme aí

Ela pegou no sono no sofá, enrolada em um edredom rosa que de tão velho mais parecia um lençol. Ele a pegou no colo e a levou até o quarto, a deitou na cama e a cobriu com uma coberta melhor. Ela se lamuriou:
-Tem aniversário de quinze anos da minha prima no sábado. Vamo comigo?
-Tá maluca? Passei todo o tempo que a gente namorou fugindo da tua família e agora vou me enfiar no meio dela sem nenhuma promessa de sexo?
-Se é por isso eu te compro uma Playboy.
Ele riu. Ela continuou:
-É a minha prima que tu foi no aniversário aquela vez... Do livro do Harry Potter...
-Que vergonha, não vou, mesmo.
-Por favor...
-Tá... Vou pensar a respeito.
-Isso, pra ti é "não".
-Tem razão. Tá... Eu vou.
-Sério?
-Sério.
-Obrigada.
-De nada.
-Tem que ir de terno e gravata.
-Filhadaputa...
Ela riu.
-Dorme aí... - Sugeriu.
-Não sei se vou conseguir dormir...
-Então fica acordado aí... Tem coberta na sala. Pode ficar com a TV ligada, usar o computador, beber Pepsi, terminar a pizza, eu não me importo.
-É... Tá. Pode ser...
-E pensa no que eu te disse, Ned... Pra que adiar o inevitável?
-É... Pra quê, né... Dorme bem, alemoa.
-Tu, também.

************************************************

9:27: Fecho

-Alô...
-Ned?
-Oi, Didi...
-Olha só... Tu esqueceu teu relógio aqui.
-Sábado tu me entrega.

************************************************

23:09: Conclusão

-É tua culpa. - Ela disse, brincando com o relógio dele na mão.
-Tu já me falou isso antes. Eu nunca disse que não era.
-Mas insinuou. Tentou te eximir de culpa...
-Não. Sempre assumi inteira responsabilidade por tud-
-É, porque era a coisa estoica a se fazer.
-"Estoica"... Cadê essa enciclopédia?
-É sério.
-Talvez. Talvez tenha sido. Não conscientemente...
-Tu não é um herói. Nem um paladino, e nem um Jedai.
-Quando eu for escrever isso, vou escrever Jedi errado de propósito porque eu sei que tu não sabe como escreve.
-Tu só tá com medo.
-Eu não tenho medo de nada.
-Tu é um covardão.
-Eu realmente não tenho medo de nada.
-Por ti, talvez, não. Mas tu morre de medo de falhar pra quem tu ama.
-...
-Tu acha que falhou com ela.
-Eu falhei com ela.
-Ela é quem decide se tu falhou. E ela decide se essa falha é imperdoável, ou não. Se ela pode conviver com isso, ou não.
-Se ela falhasse comigo, eu ainda ia querer ela. Ainda ia amar ela. Ainda ia estar com ela sempre que pudesse. Mesmo que isso fosse ruim pra mim.
-Tu é burro. Ela talvez não seja...
-...
-Tu não vai me dizer o que foi, não é?
-Não.
-Bom... Eu tenho certeza de que não foi tão ruim quanto tu pensa.
-Rá...
-E mesmo se tiver sido... Mesmo se for. Ela estava disposta a te perdoar...
-Estava...
-É. Estava. Porque agora... Agora eu já não sei, mais. No lugar dela eu já teria-
-Te mudado pra Argentina?
-Golpe baixo.
-Desculpa...
-Tudo bem. Mas não importa.
-Não?
-Não. Tu pode silenciar, fechar a porta e tocar o barco o quanto tu quiser. Ela também... Pra ti isso vai ser jogar RPG e videogame, ler toneladas de gibis e livros e ir ao cinema feito um desvairado. Pra ela talvez seja rever filmes velhos, fazer dieta, se matar na academia, e, quem sabe, até arrumar um namorado novo...
Aquilo o deixou com um gosto amargo na boca. Ela continuou:
-Mas não importa... Vocês vão ficar juntos.
-Ah, vamos?
-Vão. Porque depois do que eu li, e do que eu ouvi... Se vocês não estiverem juntos, vão estar irremediavelmente sozinhos. E isso, Khal Drogo, é sabido.

Nenhum comentário:

Postar um comentário