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quinta-feira, 20 de junho de 2013

Última Dança


Tocaram a campainha. Ele estava nos fundos. Ouviu e chegou a dar uma risada algo rancorosa, quase uma cuspida.
"Claro." Ele pensou. "É quase meio-dia. Meu horário de almoço vai ser comido por algum infeliz que vai entrar aqui e olhar tudo sem chegar nem perto de comprar nada... Vou mandar andar".
Andou a passos largos em direção à porta. Mas ao chegar lá, não se deparou com nenhum xarope de galochas, mas sim com uma forma esguia familiar, e uma cara brava que, sejamos francos, também era familiar àquela altura:
-Tá quase na hora do teu almoço, né?
Ele assentiu com a cabeça.
-Vou te esperar na frente da ACM, lá.
-E se estiver chovendo?
-Eu tenho sombrinha.
Ele sorriu. Esperou mais cinco minutos, correu ao mercado, comprou um pacote de biscoitos e foi encontrá-la em frente à ACM. Na pracinha. Ela estava de pé, diante da entrada da praça cercada. Uma chuva fina caía, mas ela estava com sua sombrinha fechada. Ele se aproximou olhando ela com os olhos semi-cerrados:
-Tu sabia que "sombrinha" é uma nomenclatura que tu só usa em dias de sol? Porque, se tu analisar friamente, essa pecinha de pano colorido envolvendo essas barbatanas não vai gerar nenhuma sombra de qualquer tamanho no clima de hoje...
Ela não sorriu:
-Eu não acredito que tu não me ligou.
-...Quando...?
-Dez dias. Foram dez dias e nenhuma notícia.
-Como assim?
-Tu me ligou na sexta um dia antes do aniversário da Lud pra dizer que não ia, e depois não ligou mais. Não me ligou, não mandou mensagem...
-Ué... Nem tu.
-Eu tava esperando tu mandar!
-E eu tava esperando tu mandar. Achei que tu estivesse brava, que tivesse ficado chateada e te dei um tempo pra absorver isso-
-E ia me ligar quando?
-Eu não ia! Tu me conhece, tu sabe que eu não telefono. Nem mandar mensagem eu mando. Eu achei que quando tu não estivesse mais brava tu entraria em contato!
-E se a única forma de eu não estar mais brava contigo fosse tu me mandando mensagem? Ou me ligando?
-...
-O que ia ter acontecido?
-... Eu não teria ficado sabendo e nem tu teria deixado de ficar brava comigo. Tá satisfeita?
Ela suspirou. Ergueu a sombrinha, a abriu. Começou a andar, então parou e olhou pra ele com uma expressão impaciente. Ele andou até o lado dela, e rumaram junto à uma lanchonete próxima.
-É muito difícil ser tua amiga, viu?
Ele não respondeu. Deu-se conta que estava fazendo a sua cara emburrada. Cenho franzido, e um princípio de bico nos lábios. Ela continuou:
-Passei no teu serviço sábado. Porque tu não abriu?
-Passei mal. Cheguei em casa quase de manhã, tive um vomitório... Deve ter sido um lanche suspeito que comi de madrugada... de qualquer jeito não fui. Fiquei em casa vomitando sábado quase inteiro.
-Eu não fiquei brava contigo... Fiquei só chateada.
-Não dá no mesmo?
-Não.
-Se tu diz...
-E no mais?
-Tudo na mesma.
Ele sabia do que ela estava falando, mas não deu corda.
-Tu sabe do que eu tô falando, Ned. Não me enrola...
-Eu lamento, Didi... Não tenho nenhuma boa notícia pra te dar. Aliás, eu encontrei, viu?
-O quê?
-O lugar onde tu leu tudo. Realmente, eu tinha a resposta o tempo todo...
-Desculpa não ter te contado onde era...
-Não te preocupa. Se ela quisesse que eu soubesse onde era teria me contado. Descobrindo sozinho ninguém me contou.
Ela sorriu passando a mão no ombro dele.
-Maior detetive da terra... - E cantarolou a musiquinha do Batman dos anos sessenta.
Ele riu:
-Do mundo, Didi. O Batman é o maior detetive do mundo. De qualquer forma, obrigado. É uma referência muito lisonjeira.
Entraram na lanchonete. Ela sentou no balcão, pediu uma vitamina de laranja e mamão. Ele pediu uma limonada amarela.
Ela se encurvou bastante, apoiou o queixo nos braços, cruzados sobre o balcão de fórmica preto, olhava pra ele:
-Tu leu tudo?
-Li.
-Foi ver como ela estava?
Ele olhou pra ela de um jeito que provavelmente teria sido ameaçador nos seus tempos de juventude. Hoje em dia era, no máximo, contrariado. Ela ergueu as sobrancelhas:
-Foi?
-Não, né? Claro que não... Mandei uma mensagem...
-Não ligou?
-Eu não v... Eu não vou ficar ligando a qualquer hora... Não sei os horários dela. Não sei que horas ela sai do serviço, que horas ela almoça. Não sei o que ela faz quando sai... Não sei mais nada. Não quero colocar ela em uma situação desconfortável. Mandei mensagem num horário em que achei que ela fosse estar trabalhando, e se ela pudesse me responder, responderia.
-E ela respondeu?
-Respondeu.
-Hm...
-"hum" o quê, alemoa?
-Sei lá... Teu tom... O que houve?
-Tu sabe, não sabe? Tu lê. Tu leu... Tu sabe o que houve.
-Eu sei...
-Então... Não precisa me ouvir externar, né?
-Não.
A vitamina dela chegou. A limonada dele, também. "Açúcar?" perguntou a senhora que servia. "Não, obrigado", ele respondeu. A loira a seu lado disse "Sim! Por favor", e quando a senhora gentil estendeu-lhe o açucareiro, daqueles de plástico com um furo em cima, de onde sai um rio de açúcar, ela disse "Obrigada", e despejou um monte de açúcar no copo rosa pink gigante.
Ele ficou olhando incrédulo:
-Tu tem vermes, né? Só pode...
Ela riu.
-Meu metabolismo não queima calorias, torra... Como é que tu está?
Ele estava pescando algumas sementes que boiavam na limonada com a colher, não levantou os olhos pra responder:
-Já vi dias melhores...
-Eu sei. Mas olha... Se ela não tem razão, tu deveria falar pra ela...
-Eu já falei. Falei antes. Ela chegou à uma conclusão diferente. Isso é com ela. Fugiu da minha alçada.
-Prova que ela tá errada...
-Eu queria que fosse assim. Queria mesmo. Queria que bastasse eu resolver. Mas não é. Tu me imagina dizendo que amo alguém?
Ela não respondeu. Baixou os olhos pra vitamina.
-Não - Disse, enquanto achava o canudo com os lábios.
-Eu disse pra ela. Tu me conhece, Didi. Sabe que eu não diria da boca pra fora. Eu disse que ela era o amor da minha vida. Tu sabe que eu também não diria isso da boca pra fora.
-Eu sei... Olha, eu sei, tá? Mas talvez tu pensasse que fosse na época, e depois viu que não.
Ele abriu a boca pra responder, mas ela o deteve e continuou:
-Não tô dizendo que é isso. Isso é o que ela pode estar pensando.
-Eu não posso me responsabilizar pelo que as pessoas interpretam de mim.
-Meu Deus do céu... Que pessoinha mais complicada que tu é, viu?
-Eu não sou uma pessoa fácil. Isso é público e notório, nunca fiz propaganda enganosa nesse sentido.
-Ela não tem razão? Tu não escolheu pensar só nas coisas ruins?
-Eu vou te dizer no que eu penso... Eu penso que ela é tudo o que eu sempre quis. Que ela e eu seríamos obrigados a ficar juntos em um mundo que fizesse o mínimo de sentido. Eu penso que ela foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida, que ela seria a resposta as minhas preces se eu fizesse alguma. Eu penso no cheiro dela. No cheiro do cabelo dela. No sorriso dela e no modo como minha boca sempre ficava machucada depois que a gente se beijava muito tempo por causa dos dentes dela. Eu penso nas pantufas cor de rosa, penso em rendinhas, em cobertores vermelhos que estão se desfazendo, e em domingos à tardinha mandar mensagens pra ela dizendo que estou indo lá pra gente ver desenho. Eu penso em todos os filmes que a gente viu juntos, em todos os que deveríamos ver juntos, nas noites que não dormimos abraçados e especialmente naquelas em que dormimos. Eu penso em passeios de mãos dadas, sapatos de salto altíssimos, em levar ela pra passear na Praça da Matriz e mostrar o grifo em que eu gostava de montar quando era pequeno. Eu penso nela rindo de mim tirando a cebola do sanduíche do McDonald's, em como ela usa "obrigado" quando deveria usar "obrigada", e em como por conta disso, eu cheguei a formular uma teoria de que ela era transexual já que isso explicaria o fato de ela ser tão perfeitamente moleque e seria mais a cara da minha sorte. Eu pensei em dizer que fui de camiseta do Star Wars ver Star Trek com meus amigos conforme nós havíamos combinado, e que não foi a mesma coisa porque ela não estava lá. Que eu sinto saudades todos os dias. Que eu mantenho a mais firme inabalável e clara certeza de que ela é o amor da minha vida, e que se tem alguma coisa que eu lamento na nossa relação, é o fato de que eu não soube cuidar dela e nem ser uma presença positiva na vida dela. É nisso que eu penso.
-Ned... Ela é quem tem que decidir isso. E se ela não precisa de ninguém pra cuidar dela. Ela-
-Ela disse que eu perdi ela. E eu perdi. Eu fui rancoroso. Eu fui teimoso. Eu sou assim. Tu sabe... Rápido na ira, vagaroso no perdão...
-Tu não é... Tu tá te agarrando nisso porque tu acha que não é bom pra ela. Ela já disse que não, mas não adianta. Tu encafifa com as coisas e pronto...
-Mais um defeito pra lista. - Ele disse erguendo o copo num brinde amargo.
Ela ergueu as mãos como quem desiste e então as deixou caírem no balcão.
-Tu é quem sabe... Mas tem mais uma coisa que eu quero te dizer antes de fechar o assunto... Posso?
Ele assentiu com a cabeça de má vontade. Ela continuou:
-Ela tem medo de te ver casado, pai de filho por aí. Ela disse. Eu sei que tu não vai... A menos que alguma coisa muito espetacular aconteça, tipo a guria dos Transformers aparecer aqui querendo dar pra ti, e olhe lá... Mas e se o contrário acontecer? Ela é nova, bonita... Parece meio ingênua, mas isso se resolve com o tempo. Vai aparecer alguém, alguém que talvez não seja o amor da vida dela. Mas alguém disposto a tentar se enquadrar no papel.
-O que é que tem? Como eu vou me sentir? Destruído, demolido. Arrasado. É óbvio. Se isso acontecer...
-Não. Quando acontecer. Porque vai. Vai acontecer. É questão de matemática.
-Tá... E se é inevitável, qual o teu ponto?
-Se tu não vai fazer nada, então tu tem que deixar pra lá.
-Deixar pra lá...
-É. Deixar ela ir. Seguir adiante. Parar de escrever sobre vocês todos os dias.
-É minha forma de lidar com isso.
-Mas atrapalha ela. Não é justo com ela.
-...
-Tu sabe que eu tô certa.
-Provavelmente.
-E então?
-Tu tem razão. Eu vou parar. Ela vai pensar que eu não gosto mais dela...
-O que baseado no fato de tu acreditar tão firmemente que não é bom pra ela, se enquadra nos teus propósitos, não é?
-É... - Ele concordou de olhos baixos.
Ela estendeu o copázio após mexer a vitamina, ele ergueu seu copo de limonada.
-A que estamos brindando? - perguntou.
-A um novo começo. Pra ela... Ela merece.
-Ela merece. - Ele concordou.
-Ao amor da tua vida, Ned.
Bateram os copos.
-Eu ainda vou escrever sobre isso... Uma última vez.
-Eu sei. Pra deixar claro que tu ama ela.
-É. Eu amo ela. Com tudo o que eu tenho, e com o que eu não tenho, também. Amo demais. Ela é o amor da minha vida e sempre vai ser.
-Eu sei. E quando tu for escrever, fala que eu sou esguia. Adoro quando tu me descreve como tendo "formas esguias".
-É uma maneira de dizer que tu é uma magricela sem parecer ofensivo.
Os dois riram. Ela passou a mão no braço dele:
-Tu vai ficar bem?
Ele sorriu a segurando pela ponta do queixo e estalou-lhe um beijo na bochecha:
-Não.

Um comentário:

  1. eu amo você com tudo o que tenho e com o que não tenho também. Amo demais . Você é o amor da minha vida e sempre vai ser .

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