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terça-feira, 3 de dezembro de 2019
Resenha Filme: O Irlandês
Martin Scorsese é, eu já devo ter dito isso aqui por que repito isso o tempo todo, o maior cineasta em atividade em Hollywood.
Na ponta do lápis, ele é um diretor sem filmes ruins no currículo. Scorsese oscila apenas entre o bom, o ótimo e o excelente, e quem discorda ou tem um gosto muito peculiar pra cinema, ou está errado.
É simples assim.
Scorsese é tão bom que ele pode se dar ao luxo de ligar o foda-se e fazer um filme de três horas e meia estrelado por septuagenários e azar de quem não ver. O diretor de Touro Indomável, Silêncio e O Aviador não liga se uma geração de pós-púberes tardios achar que o filme é chato. O Irlandês é o que é.
E nesse caso, é a adaptação do livro I Heard You Paint Houses ou "eu soube que você pinta casas", de Charles Brandt, que narra a biografia de Frank "O Irlandês" Sheeran, um matador da máfia que teria sido o responsável pelo sumiço de Jimmy Hoffa em 1974 (e que foi amplamente desmentido por criminologistas em artigos e até outros livros de especialistas).
No longa de Scorsese nós encontramos Frank Sheeran (Robert De Niro) já idoso, cabelos alvos escasseando na cabeça, olhos nublados, sentado em uma cadeira de rodas e vivendo em um asilo. Frank imediatamente começa a nos contar a história de sua vida.
Em seu relato, Frank nos conta sobre sua viagem de carro com seu amigo Russel (Joe Pesci), de Kingston, Pensilvânia, até Detroit, em Michigan, para um casamento em 1975.
Ao parar na estrada em um dos inúmeros intervalos para fumar exigidos pelas patroas, Frank aponta um posto da Texaco adiante a Russel, um posto onde quase trinta anos antes os dois se viram pela primeira vez.
Era 1947, e após voltar do fronte italiano da Segunda Guerra Mundial, Frank era um caminhoneiro que resolveu desviar a carne que transportava para restaurantes de mafiosos na tentativa de conseguir um trocado a mais em seus vencimentos.
Acusado de roubo pela empesa para a qual trabalhava, Frank seria processado e defendido por Bill Bufalino (Ray Romano), advogado do sindicato, e eventualmente, através de Bill, seria formalmente apresentado a Russel, cabeça da família Bufalino que comandava a máfia italiana na Pensilvânia, e com quem começaria uma longa amizade que o levaria a se tornar um capanga, "arranjador" e depois um matador para a máfia.
Mas as coisas não iriam parar por aí.
À certa altura, Frank seria apresentado a Jimmy Hoffa (Al Pacino), um dos mais famosos líderes sindicais da história dos EUA, de quem se tornaria guarda-costas, colega e amigo pessoal em uma jornada de décadas que colocaria o ex-caminhoneiro em uma posição privilegiada para testemunhar e, não raramente, participar ativamente de momentos capitais da história dos EUA.
Essa premissa chega a ser uma ofensa a tudo o que O Irlandês contém em suas nada econômicas três horas e meia de duração, uma narrativa que pinta Frank Sheeran como o narrador não-confiável definitivo conforme estuda o comportamento de um homem a quem a audiência realmente jamais chega a conhecer.
Estranhamente ensimesmado para um mafioso e surpreendentemente inclinado a resolver as coisas na conversa para um assassino, Frank parecia estar sempre satisfeito com o bastidor. Em estar atrás dos sujeitos realmente importantes, como Bufalino, Hoffa e Tony "Gordo" Salerno.
Quando não é incumbido de alguma tarefa mais específica, como apagar algum safado, Frank geralmente está imóvel e mudo, apenas reagindo ao que acontece ao seu redor. E toda a sua surpreendente história de vida, e sua nada desprezível participação em alguns dos eventos mais importantes da história política dos Estados Unidos nos anos 1960, para ele, são apenas coisas que lhe aconteceram ao longo dos anos.
Em seus anos finais Frank assume que realmente não lamenta nada do que fez. Pra ele, era apenas um trabalho.
Esse distanciamento de Frank é parte da beleza de O Irlandês, e o que o separa de outros filmes de gângster de Scorsese, como Cassino ou Os Bons Companheiros. A despeito de ser um longa sobre a ascensão e a queda de um homem dentro da estrutura da máfia, há uma qualidade de contemplação no longa que só é possível quando temos esses sujeitos de setenta e tantos anos olhando para trás, e examinando, ainda que inadvertidamente, a moralidade de suas ações ao longo de suas vidas.
Então, sim... Quem está esperando um filme de mafioso cheio de tiro, porrada e bomba, certamente vai achar O Irlandês chato.
Especialmente porque Scorsese não está preocupado em correr com sua história. Cada cena em câmera lenta tem sua razão de ser. Cada olhar silencioso, cada conversa aparentemente sem sentido entre gângsters espertinhos, cada sorvete tomado por Jimmy Hoffa é um tijolo na construção dessa história e importa.
O roteiro de Steven Zaillian é uma sucessão de flashbacks dentro de flashbacks, de um octogenário olhando para seus cinquenta e poucos e de um cinquentão olhando para seus trinta e poucos e sendo capaz de lembrar de quando tinha vinte e poucos na Guerra... E essa matrioska de reminiscências é a maneira de esse personagem olhar para trás e tentar entender como se sente com relação à própria vida sem necessariamente conseguir.
Frank Sheeran é o melhor trabalho de De Niro desde O Lado Bom da Vida. O ator que vinha atuando no piloto automático em anos recentes finalmente encontra um trabalho que não apenas lhe permite atuar em alto nível, mas o desafia a fazê-lo muito além dos trejeitos do ator. Frank é um sujeito complicado, que se aparta de sua própria vida na tentativa de ignorar os horrores que causa e o caos que cria. Quando ele lamenta, é por não ser capaz de lamentar, e ver De Niro dar vida a esse personagem é um privilégio.
Assim como é sensacional ver Al Pacino interpretando Jimmy Hoffa interpretado por Al Pacino.
Porque Pacino não se transforma em outras pessoas. Ele simplesmente especula como aquela pessoa seria se fosse Al Pacino. Seu Jimmy Hoffa não guarda nenhuma semelhança com o de Jack Nicholson, por exemplo, além do corte de cabelo. Em sua primeira colaboração com Scorsese, o eterno Michael Corleone segura um pouco seus excessos. Sua maneira de transformar palavras de uma sílaba em berros de três é controlada (os monossílabos viram gritos de duas sílabas, apenas), seus gestos ainda são amplos, seu tom ainda é elevado, mas isso é porque esse Jimmy Hoffa precisa ser assim. Sua ruína não cai sobre ele por seus atos, mas por sua falta de modos, e nesse sentido, Pacino está perfeito.
Ainda assim, o grande ladrão de cenas do filme é Joe Pesci.
O ator arrancado da aposentadoria vive Russell Bufalino, um mafioso absolutamente diferente de Tommy DeVitto ou Nicky Santoro. Sai a desagradável bomba-relógio de explosões de violência, entra o sujeito afável de voz tranquila que, por alguma razão, parece infinitamente mais ameaçador em sua quase sobrenatural maneira de estar sempre aberto ao ritmo alheio. Ver Pesci dar vida a esse sujeito calmo e equilibrado buscando equacionar cada situação de modo a obter soluções que causem o mínimo de danos possível é um deleite não apenas porque vimos o quanto Pesci pode ser explosivo em outros anos, mas pela maneira segura e comprometida com a qual ele o faz.
Esses três atores são os pilares de um elenco enorme, que ainda conta com Harvey Keitel, Stephen Graham, Bobby Canavalle, Jesse Plemons, Kathrin Narducci, Lucy Gallina, Welker Whyte, Jack Huston e Anna Paquin (que entra muda e sai calada, mas tem, além de costas lindas, um olhar extremamente acusador), entre outros...
A alardeada tecnologia de rejuvenescimento digital funciona em alguns momentos melhor do que em outros, De Niro, por exemplo, fica muito estranho (tanto pelo rejuvenescimento digital quanto pela presença de um par de olhos azuis que são muito, muito estranhos), o de Pacino está OK, e o de Pesci, excelente. De Niro talvez sofra mais porque sua maquiagem digital é a que tenta viajar mais longe de volta no tempo, e por mais lisa que esteja a cara do ator, seu corpo e movimentos, especialmente os mais exaltados, são os de um homem de setenta e tantos, não é, por exemplo, mais estranho do que ver atores envelhecidos com maquiagem tradicional, por exemplo, mas está longe de ser essa revolução espetacular, ao menos por enquanto.
A trilha sonora de Robbie Robertson é ótima, assim como a cinematografia de Rodrigo Prieto, o desenho de produção, também, mas não há quem mereça mais ovações do que a editora Thelma Schoonmaker que consegue fazer as transições do filme absolutamente naturais e orgânicas de um período para o próximo, tudo sob a batuta de Scorsese, que chega aos setenta e seis anos com a segurança e a galhardia de um cineasta que, ao contrário de Frank Sheeran, pode olhar para a sua carreira com nada além de orgulho.
O Irlandês está disponível na Netflix.
Assista.
Não é sempre que filmes desse porte são lançados, especialmente em streaming.
"-Você gostaria de ser parte disso, Frank? Você gostaria de ser parte dessa história?
-Sim, eu gostaria. O que quer que o senhor precise eu eu faça, eu estou disponível."
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