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quinta-feira, 4 de junho de 2020

(In)Adaptável


A reabertura da cidade já vinha acontecendo há alguns dias.
Os comércios, antes com as cortinas de ferro fechadas vinte e quatro horas por dia, já tinham recebido autorização para reabrir as portas durante horários pré-determinados e receber clientes, e os lojistas, ansiosos por tentarem recuperar um pouco do prejuízo dos mais de dois meses parados, estavam a mil com atendentes postados nas portas dos estabelecimentos usando máscaras, escudos faciais de acrílico e aspergindo álcool gel nas mãos de todos os clientes em potencial, e as ruas do Centro voltavam a se encher com pessoas de todos os formatos e tamanhos que vagueavam pelas calçadas da Rua da Praia com suas máscaras, fosse aplicadas corretamente sobre nariz e boca, fosse pendurada em uma das orelhas ou puxadas pro pescoço porque aparentemente as pessoas não gostam de usar máscaras, mesmo as mais feias, que poderiam se valer de manter a cara escondida, insistem em deixar a carranca à vista de todas, ignorando os benefícios de criar ao menos uma sombra de dúvida em que os vislumbra mascarados.
Ele andava pela rua após o trabalho e a academia com a máscara devidamente colocada sobre nariz e boca, e óculos escuros. Era tanto uma medida de proteção sanitária quanto o realismo de alguém que sabia fazer parte de um clube de homens que se beneficia de ter menos do rosto à mostra e ainda uma pequena satisfação de poder andar por aí praticamente vestido de Soldado Invernal.
Ele não sofrera em demasia durante o encerramento da pandemia. Sentira falta de lançamentos de cinema, sem dúvida, e sentira na carcaça molenga a falta de sessenta dias de academia ao dar-se conta que breves sessões diárias de flexões de braço, abdominais e quatro quilômetros de corrida antes do amanhecer não substituíam a rotina de exercícios à qual se habituara nos últimos anos.
Fora isso, tivera a quarentena quase como férias. Jogara videogame, assistira documentários, lera quadrinhos e livros... Só não foi exatamente igual a férias porque ele aproveitara o tempo para se dedicar com mais afinco aos estudos transformados em EAD, e não chegou nem perto de viajar para o litoral, mas fora isso... Férias, basicamente.
Agora já estava novamente habituado à nova rotina. Máscara, álcool gel, mãos lavadas o tempo todo...
Rapidamente transformara todas as facetas do "novo normal" em rotina. Até seus temores de que não seria capaz de frequentar a academia usando máscara provaram-se infundados. Ele tinha uma capacidade quase mutante de transformar qualquer coisa em rotina.
Ás vezes gostaria que fosse menos.
Questionava-se se não seria melhor ser mais inconformado.
Mas a verdade é que não era conformado. Era realista, disciplinado e extremamente adaptável.
Pensava justamente nisso voltando para a casa como sempre fazia no final da tarde, antevendo a hora em que sentaria em casa para assistir um documentário a respeito do caça japonês Zero na Segunda Guerra Mundial após ver os três noticiários que assistia depois do banho quando um cheiro muito gostoso invadiu suas narinas mesmo estando devidamente mascarado.
De imediato pensou que o cheiro era muito gostoso, mas não conseguiu identificar de que era.
Na sequência, percebeu que o cheiro o fazia lembrar de algo...
De alguém...
Levantou o cabeça e tirou os óculos procurando a fonte da fragrância e percebeu que estava diante de dois estabelecimentos que partilhavam uma parede na mesma calçada, um salão de beleza e uma confeitaria.
Sorriu sob a máscara e recolocou os óculos enquanto se lembrava que havia uma coisa à qual ele não sabia se adaptar:
A ausência dela.

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