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sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Resenha Cinema: O Bebê de Bridget Jones


Se eu fosse elencar as maiores personagens femininas do cinema, minha lista certamente começaria com a princesa Leia Organa, ou com Beatrix Kiddo, ou com Scarlet O'hara... Alguma dessas personagens fortes que tomavam os rumos de suas vidas nas próprias mãos e comandavam destinos com suas decisões.
Ainda assim, eu encontraria um espaço na parte de cima dessa lista para Bridget Jones.
A inglesa gorducha com suas listas de resoluções furadas, luta perene contra a balança e incontinência verbal é uma personagem muito divertida.
Posto isso, devo confessar que, apesar de reconhecer as qualidades de O Diário de Bridget Jones, e de achar sua continuação menos inspirada Bridget Jones: No Limite da Razão uma comédia com seus bons momentos, não imaginava que, quinze anos após o lançamento do filme original, alguém ainda estivesse interessado em ver o retorno de Bridget ao cinema, exceto, talvez, Renée Zellweger, que conquistou sua primeira indicação ao Oscar de melhor atriz com a personagem (um feito e tanto considerando que estamos falando de uma comédia), e cuja carreira dera uma desacelerada violenta nos últimos anos.
Quando anunciaram que haveria um terceiro filme, a notícia não chegou a me impressionar. Especialmente após Hugh Grant, parte do triângulo amoroso dos filme anteriores se recusar a retornar ao papel do divertido mulherengo Daniel Cleaver.
Tudo em O Bebê de Bridget Jones parecia berrar caça-niqueis e desespero conforme as únicas manchetes de sua estrela eram por ter aparecido em algum evento irreconhecível devido à cirurgias plásticas (Zellweger não estrelava um filme havia seis anos!).
Ainda assim, ontem era um dos seis homens na sala de cinema para a sessão de O Bebê de Bridget Jones, e, devo admitir, estava errado.
O Bebê de Bridget Jones começa com a heroína celebrando seu quadragésimo terceiro aniversário com uma velinha em cima de um cupcacke ao som de All By Myself. Sua única companhia é a indefectível taça de vinho, e seu diário, agora um iPad.
Zellweger não perdeu o jeito.
Tudo continua no lugar, do sotaque às expressões faciais (aliás, no filme, Renée Zellweger parece ela própria, e continua bonita), mas algumas coisas mudaram para a personagem.
Bridget parou de fumar, chegou ao seu peso ideal e agora é uma bem-sucedida produtora de um programa de TV matutino.
Seu séquito de amigos ainda conta com Shazzer (Sally Phillips), Jude (Shirley Henderson) e Tom (James Callis), mas enquanto eles chegaram aos quarenta e poucos e sossegaram, casando-se e tendo filhos, Bridget precisou desenvolver um novo círculo de amizades que conta com mulheres solteiras de trinta e poucos anos como sua amiga Miranda (Sarah Solemani).
É Miranda quem arrasta Bridget para um enlameado festival de música onde, completamente bêbada, ela acaba na tenda de Jack Qwant (Patrick Dempsey), com quem resolve passar a noite.
A transa casual de Bridget é tópico de conversas com as amigas por onze dias, quando, após um batizado, Bridget encontra seu ex-grande amor, Mark Darcy (Colin Firth), e, na atmosfera bucólica do evento, os dois cabam, também, na cama.
A questão é que, após meses de vida sexual absolutamente inativa, Bridget acaba sendo vitimada por preservativos bio-degradáveis com a validade vencida, e descobre-se grávida.
O problema é que ela não sabe se o pai do bebê é Mark Darcy ou Jack Qwant.
Bridget se vê então precisando lidar com uma gravidez "geriátrica" (conforme sua médica, vivida por Emma Thompson, ótima no papel e também roteirista do longa) insiste em lembrá-la, uma nova chefe que surge querendo mudar o formato do programa de TV que Bridget produz, e o dilema da paternidade de seu filho.
O que é que eu posso dizer...
Eu ri muito assistindo ao filme.
Conforme eu disse lá no início, Bridget Jones é uma criação muito divertida de Hellen Fielding, sua intérprete é uma atriz com recursos, e a comédia escrita Dan Mazer e Emma Thompson é engraçada o suficiente para que a audiência não ligue para os clichês, além de ter encontrado uma forma divertida de explicar a ausência de Hugh Grant e o fato de Bridget não ter se casado com Mark Darcy.
Ajuda o fato que que Sharon Maguire, diretora do primeiro longa, tenha retornado para a sequência junto com todo o restante do elenco, incluindo Jim Broadbent, Gemma Jones e Neil Pearson.
Claro que a trama é manjada, quase uma formalidade antes do inevitável desfecho, ainda assim, é tudo divertido o suficiente para que nos sujeitemos a duas horas de enrolação folhetinesca de "quem é o pai", simplesmente porque é muito engraçado.
Não bastasse tudo isso, dá um certo alívio ver um filme protagonizado por uma personagem feminina que não é nem acessório narrativo e nem panfleto pró-feminismo, mas apenas um ser humano relacionável.
Com tantos predicados, O Bebê de Bridget Jones é um ótimo programa, divertido e que seria um fim digno para a trajetória da personagem no cinema, além de um bom retorno da sumidona Renée Zellweger.
Confira no cinema.
As risadas certamente valem o ingresso.

"Não vou ficar cometendo os mesmos erros quando posso sair e cometer erros novos."

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Somos Todos Gente


Estava sentados lado a lado no balcão da lanchonete.
Ele comia seu sanduíche assinatura, o Ernest Hemingway, ela comia um sanduíche de rosbife cheio de creamcheese e cebola, uma combinação que o repugnava só de pensar.
Um sujeito na mesa próxima, nos seus quarenta e tantos anos, mexia descontroladamente no celular, resmungando o tempo inteiro.
Murmurava, ás vezes entre dentes, outras bufando, ou apenas falava, em tom de voz normal, atraindo olhares de pessoas próximas.
Xingava o aparelho sem parar.
"Anda, desgraçado...", "Mas que filho da puta...", "Vamo, seu merda...".
Resmungava sem parar, mas também se recusava a largar a maldita máquina. A comida semi consumida diante do prato era testemunho de uma relação de amor e ódio que parecia fadada seguir de maneira perene até que um dos dois vencesse, e naquele momento, a estratégia do celular parecia mais eficaz.
O sujeito praguejou novamente, ela sorriu. Rira na primeira vez, a reação foi se reduzindo conforme a piada se repetia e perdia a graça.
Ele tinha virado o corpo todo na terceira ou quarta vez que o sujeito insultou os deuses da moderna tecnologia, na esperança de que sua carranca de desaprovação e tamanho avantajado fossem suficientes para desencorajar o mau comportamento.
Ledo engano.
O camarada estava por demais atento à sua guerra particular com o telefone para prestar atenção no mundo à sua volta.
À certa altura, resmungando e amaldiçoando, simplesmente enfiou o celular no bolso, deu uma mordida no sanduíche diante de si à qual seguiu-se uma careta, e saiu.
Ela riu balançando a cabeça em sinal de comiseração, ele, bufou em desaprovação:
-Tu não odeia eles? - Ele perguntou, antes de morder o Hemingway, que sucumbia ante o peso da própria genialidade sujando-lhe o bigode e a barba com a generosa porção de molhos que empapavam o pão três queijos.
-Quem? - Ela perguntou. -Homens adultos que se lambuzam feito gurizinhos de seis anos comendo? - Riu.
-Não... - Ele respondeu, sorrindo e passando o guardanapo na boca e adjacências. -Gente. - Explicou.
-Gente? - Ela perguntou. -Tu diz gente que fala alto?
Ele maneou a cabeça como quem não ter certeza:
-Éééééééé... Bom... Sim... Sim. Essas pessoas que não cabem em si. Entende? Que não conseguem fazer as coisas em silêncio... Que demandam plateia.
-Pessoas mal-educadas? - Ela tentou restringir.
Novamente ele não tinha certeza:
-Hmmm... É, mas... Sabe, tem gente bem educada que é assim, também. Bem educada no sentido de polida. Bom vocabulário. Educação formal, não fala palavrão... - Ele explicou.
-Falar um bom palavrão é parte de uma educação formal completa. - Ela frisou. -Há momentos que pedem um palavrão por mais que tu seja um Houaiss em pessoa.
-É, eu concordo - Ele concordou. -Mas eu acho que não conseguir restringir... Não saber... Essa necessidade de compartilhar que as pessoas têm. Eu odeio isso.
-Compartilhar...? - Ela não entendeu.
-É, de dividir, se abrir, contar o que está havendo... Eu odeio isso. Eu odeio gente que precisa alardear pro mundo o que está fazendo. Que posta no Facebook que está no cinema, que tuíta que está no show, que posta foto da refeição no Instagram... Porque é que interessa pra alguém se tu está no cinema? O que é que eu quero saber se tu está no cinema? Qual é o grande feito? Quem liga? Basta ter vinte pila pro ingresso e pronto, qualquer apedeuta pode ir ao cinema.
-Até menos de vinte, dependendo... - Ela especulou.
-Exato! Até menos! - Ele concordou. -E ainda assim, as pessoas tratam isso como um evento. Como algo que precisa ser compartilhado. Como se alguém ligasse... Tu vai ao show, não pra ver o cantor que tu curte, nem pra ouvir as músicas que tu gosta, mas pra mostrar pros outros que tu foi. Tu não te contenta em comer uma boa refeição, tu precisa mostrar ela na internet ou no grupo do whatsapp pra receber o aval de outra pessoa, a experiência só existe se mais gente tiver visto, comentado e curtido, outrossim-
-"Outrossim"? - Ela o interrompeu.
Ele sorriu mas continuou:
-Outrossim, não aconteceu. Não foi completa. Não teve valor. Esse doente mental que saiu daqui, agora provavelmente brigou com o celular por vinte minutos porque não conseguiu postar uma foto do sanduíche, então o lanche ficou insonso, pálido, sem graça, e ele não comeu. Porque ele não sabia em si. Ele precisava compartilhar aquela refeição, e como não conseguiu compartilhar a refeição na rede, tentou de todas as formas compartilhar a sua frustração, mas, sem receber nenhum feedback, já que ninguém parou na frente dele fazendo sinal de "legal", ele foi embora.
-Na verdade esse sinal o pessoal chama de "joinha". - Ela disse, mostrando o polegar virado pra cima.
-Eu sei... Só me recuso a dizer "joinha". "Joinha" e "empoderamento". - Ele desdenhou.
Ela sorriu com uma expressão divertida.
-O que foi? - Ele perguntou.
-Nada... - Ela respondeu. -Mas obrigado por compartilhar comigo a tua opinião sobre o mundo. - Riu, antes de morder o sanduíche.
-Tu tinha razão, alemoa... Há momentos em que um palavrão se faz muito necessário... Aliás, vai à merda. - Ele disse, antes de repetir o gesto e morder seu próprio lanche.
Os dois riram.
No final das contas, somos todos gente, e por mais que se odeie o geral, sempre haverá espaço para alguns até mesmo no mais frio dos corações.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Novo trailer de Doutor Estranho

Foi divulgado ontem à tarde o novo trailer de Doutor Estranho, na verdade um spot de TV de pouco mais de um minuto, onde Wong (Benedict Wong) explica a Stephen Strange que a ordem serve de escudo à Terra para ameaças místicas.
Além disso, há uma menção aos Vingadores e alguns vislumbres de cenas inéditas.
Confira:



Doutor Estranho estréia em 3 de novembro, dirigido por Scott Derrickson o longa vai apresentar a origem do Mago Supremo da Terra e abrir as portas para o lado místico do universo cinemático Marvel.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Rapidinhas do Capita


O Homem-Aranha chegou a Nova York.
Após encerrar as filmagens em Atlanta, na Georgia, a produção de Spider-Man: Homecoming chegou à grande maçã para filmagens, e Tom Holland caiu feito um saco de batatas na rede, inundada de fotos das filmagens nas ruas da cidade natal do teioso.
Duas das fotos mais maneiras estão aqui:



E mais uma porrada de fotos e vídeos, podem ser vistos no twitter oficial do ator, @abouttomholland.
Dirigido por Jon Watts, com roteiro de John Francis Daley e Jonathan M. Goldztein Spider-Man: Homecoming estréia em julho de 2017, além de Tom Holland estão no elenco Marisa Tomei, Michael Keaton, Zendaya Coleman e Robert Downey Jr., entre outros.

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E não foi só o Homem-Aranha que teve novidades.
Doutor Estranho, o mago supremo da Terra também ganhou novos posteres de personagens e algumas novas fotos:




Dirigido por Scott Derrickson com roteiros de C. Robert Cargill e Jon Spaiths, Doutor Estranho estréia em 3 de novembro.
O longa que contará a origem do personagem abrindo as portas do lado místico do universo Marvel no cinema é estrelado por Benedict Cumberbatch, e ainda tem no elenco Chiwetel Ejiofor, Mads Mikkelsen, Rachel McAdams, Tilda Swinton, Benedict Wong e Michael Stuhlbarg.

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Em entrevista Benedict Cumberbatch confirmou que estará em Vingadores: Guerra Infinita, e que o filme solo do mago supremo terá desdobramentos na terceira inclusão dos Vingadores na telona.

Resenha Cinema: Sete Homens e um Destino


Apesar de remakes serem um dos sintomas mais flagrantes da crise criativa da indústria cinematográfica americana, e um reflexo do tipo de público que frequenta os cinemas nos dias de hoje, um grupo, em sua maioria, de apedeutas e imbecis, eu não desgosto dos remakes apenas por serem reciclagens.
Esse ano, mesmo, o enxovalhado remake de Ben-Hur, foi um dos filmes que assisti que mais me emocionou.
Star Trek, um dos melhores filmes pipoca do ano, é um tipo de remake... Mogli, era um remake... Tudo bem... Caça-Fantasmas e Caçadores de Emoção: Além do Limite, foram filmes horrorosos, mas o lance é exatamente esse:
Não é o fato de ser um remake, ou não, mas sim, o tipo de remake.
É por isso que ontem eu fui assistir a Sete Homens e um Destino, casualmente, o remake de um remake...
O Sete Homens e um Destino original, dirigido em 1960 por John Sturges é um remake de Os Sete Samurai dirigido por Akira Kurosawa em 1954. A trama apenas trocava a vila de aldeões japoneses atacada por bandidos por uma vila de aldeões mexicanos, e os samurai desempregados por pistoleiros.
Ambos, tanto a versão samurai quanto a de caubói, são clássicos absolutos do cinema, a versão norte-americana, por sinal, chegou a virar série de TV no final dos anos noventa ainda assim me surpreendeu descobrir que haveria um remake para o longa.
Não porque Sete Homens e um Destino fosse terreno sagrado demais para ser mexido por uma nova versão, mas sim pelo fato de que, exceto por Quentin Tarantino, ninguém anda muito interessado em westerns, ainda que, os últimos que assisti tenham sido bons filmes (e aqui devo dizer que tenho um fraco por bangue-bangues, e é fácil me conquistar. Até de Rápida e Mortal eu gosto muito).
De qualquer forma, Antoine Fuqua, cineasta de Nocaute, Invasão à Casa Branca, O Protetor e Dia de Treinamento surgiu pra unir um grande e qualificado elenco e levar adiante o roteiro de Nic Pizzolatto e Richard Wenk.
Na trama conhecemos a cidadezinha de Rose Creek, um vilarejo contíguo a um vale prenhe de vida onde fazendeiros levavam uma vida tranquila.
Tudo muda com a chegada de Batholomew Bogue (Peter Sarsgaard), um homem de negócios com mão de ferro que passa a explorar a mina de ouro local sem nenhum pudor em explodir a montanha inteira em nome da fortuna e de invadir sem piedade as terras vizinhas enquanto corta o acesso de todos à água para favorecer sua operação.
Bogue tem muito dinheiro, e dinheiro compra poder. Ele é servido por uma renomada agência de detetives Blackstone, e até mesmo o xerife de Rose Creek serve a seus interesses.
Quando os fazendeiros se reúnem para discutir o que fazer com os abusos de Bogue, o homem chega à igreja da cidade como o próprio demo, avisa que quem não estiver feliz pode vender suas terras e ir embora.
Para reforças suas intenções, Bogue mata alguns dos fazendeiros locais, incluindo Matthew Cullen (Matt Bommer) marido de Emma (Haley Bennett).
Algum tempo depois, conhecemos Sam Chisolm (Denzel Washington), caçador de recompensas com histórico militar que representa a lei no Arkansas, nos territórios indígenas e em outros sete estados e que é um tremendo pistoleiro.
Após ver Sam em ação na cidade de Modesto, Emma apela para o caçador de recompensas, expõe seu problema com Bogue, e lhe oferece como pagamento tudo o que possui em troca de justiça, ou, pelo menos, vingança.
Chisolm aceita o trabalho, mas sabe que, sozinho, não poderá enfrentar o exército do vilão.
Para isso, ele começa a recrutar.
O primeiro a se juntar a Chisolm é o irlandês beberrão Josh Faraday (Chris Pratt), casualmente outro ás do gatilho.
Após recrutar Faraday, eles se separam, e enquanto Chisolm vai atrás de um criminoso mexicano chamado Vasquez (Manuel Garcia-Rulfo), Faraday viaja para encontrar o atirador que sofre de estresse pós-traumático Goodnight Robicheaux (Ethan Hawke) e seu associado Billy Rocks (Lee Byung-Hun), um chinês que é mestre no uso de facas.
Novamente reunidos, os cinco homens saem no encalço do famigerado Jack Horn (Vincent D'onofrio), um brutamontes algo instável que é mestre na arte do rastreio.
E antes que voltem a Rose Creek, eles conhecem o comanche Colheita Vermelha (Martin Sensmeier), que também acaba se unindo ao time.
Agora, a única coisa entre a ganância de Bartholomew Bogue e a cidade de Rose Creek são esses sete magníficos caubóis e seus peculiares talentos, mas será isso o suficiente para deter o exército de Bogue?
Óbvio que é bom.
Sete Homens e um Destino é um ótimo faroeste, com um elencaço de atores acima da média, ação de qualidade, tensão genuína e momentos de comédia bem utilizados para um respiro.
A produção é bem montada e a mão de Antoine Fuqua é firme, mas jamais pesada, é um sujeito que sabe assinar um filme.
Posto isso, não é um filme perfeito.
A forma como o grupo se forma é ligeirinha, quase rasa. Claro, todos sabem que os sete homens vão se unir em Sete Homens e um Destino, ainda assim, toda a formação do grupo é quase um passo a passo.
Por legal que seja ver Denzel Washington sair da sua zona de conforto e dispensar alguns dos trejeitos que nos acostumamos a ver os últimos anos, não dá pra não pensar em como seria se Chisolm não fosse um mocinho tão óbvio, algo que, por sinal vale pra praticamente todo o grupo, incluindo o índio, o mexicano e o chinês, três etnias fadadas ao lado do mal nos faroestes clássicos.
De qualquer forma, muito da qualidade de Sete Homens e um Destino está na simplicidade da premissa, vilão saqueando cidade x sete mocinhos, de modo que para fazer o longa funcionar não precisa muito.
Um bom vilão é metade do sucesso da empreitada, e Peter Sarsgaard oferece isso com folgas, inclusive é pena que não vejamos mais dele fazendo atrocidades ao longo do filme.
A outra metade é um grupo de heróis com quem a audiência se importe, e atores carismáticos como Washington, Chris Pratt e Ethan Hawke tiram essa parte de letra.
Junte a tudo isso uma mocinha de olhos marejados, um tiroteio espetacular no clímax do filme, e não tem como errar.
Sete Homens e um Destino é divertidíssimo. Faroeste da melhor qualidade, e, como foi dito ali em cima, faroestes não dão em árvores, bons faroestes, então, nem se fala.
Vale demais a visita ao cinema.

"-Aquilo que perdemos no fogo...
-Encontraremos nas cinzas."

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

A Demo de FIFA 17


Foi apenas na semana passada que fiquei sabendo que a demo de FIFA 17 já havia sido disponibilizada na PSN (casualmente após descobrir, surpreso, que PES 17 já estava nas lojas).
Lógico que como amante de games de futebol em geral, da série FIFA em particular, fui logo baixar a demonstração na PSN e passei o final de semana experimentando o game que vinha prometendo finalmente trazer alguma inovação à série.
Sou FIFeiro mas sou realista, a série da EA, já tem alguns anos, vem fazendo fortuna entregando, temporada após temporada, games que são versões um pouco mais polidas de si próprios, e muito pouco além disso.
Há pouca diferença entre a parte gráfica dos games, e a EA parece não ter encontrado o equilíbrio entre a velocidade e a cadência, alternando jogos velozes com jogos de toque de bola sem jamais conseguir conciliar ambos.
Após algumas partidas já fica claro que FIFA 17 será um jogo veloz após a cadência de FIFA 16.
Não chega a ser um problema.
Cadência ou velocidade são preferências pessoais, e privilegiar um ou outro não depões contra o game em si, apenas contra a competência de seus desenvolvedores.
FIFA 17 é um jogo veloz, e muito, muito bonito.
Mesmo a versão inacabada da demonstração deixa claro, esse é o mais belo FIFA já feito.
O gráfico está lindíssimo, a movimentação dos jogadores, o modo como os uniformes enrugam e suma, a iluminação, as texturas... A engine Frostbite é tudo o que foi prometido em termos de visual, a ponto de o suor na testa dos jogadores ser perceptível e crível ao final dos noventa minutos.
Graficamente lindíssimo, veloz e com novidades nas bolas paradas.
FIFA 17 alterou drasticamente o sistema de cobrança de faltas, escanteios e até pênaltis.
Esqueça a facilidade que era acertar a gaveta do adversário das imediações da grande área, ou aquela jogada manjada de cavar um escanteio porque tinha um volante excepcional no jogo aéreo.
O novo sistema torna até os pênaltis particularmente desafiadores, quebrando a cabeça daqueles que haviam dominado o antigo mecanismo de bolas paradas da série.
Além dos amistosos, a demo traz ainda um aperitivo do carro chefe da nova edição, o modo história chamado The Journey, onde o player controla o jogador Alex Hunter, neófito na Premier League em sua jornada para se tornar uma lenda do esporte.
O que me parecia apenas uma reciclagem do insuportável modo Be a Pro, onde o player jogava com um único jogador dentro de campo se mostrou uma grata surpresa.
O sistema permite escolher entre comandar apenas Alex ou todo o time (consideravelmente mais fácil) e cumprir alguns pré-requisitos para "subir de nível".
Fazer o passe para o gol, acertar onze passes, ter nota superior a sete... Coisas relativamente simples.
Após o jogo, Alex dá uma entrevista com opções de respostas limitadas que podem ser legais, neutras ou porra-loucas, o que influencia sua imagem junto à torcida, treinador e companheiros.
A amostragem é pequena, mas acena com um grandes possibilidades.
No geral, o novo FIFA parece todo muito interessante, e a demo em geral, o modo The Journey em particular, apenas aumentaram minha expectativa para o lançamento do game, previsto para o próximo dia 29.
Em contagem regressiva desde já.

Resenha DVD: Elvis & Nixon


Elvis Presley, o rei do rock, segue, quase quarenta anos após sua morte em 1977, sendo realeza, objeto de culto, e um dos artistas mais rentáveis da indústria do entretenimento.
Prova do magnetismo inatacável do carisma do rei do rock é que dificilmente passamos um ano sem ver Elvis dar as caras em alguma obra de entretenimento seja no cinema, na TV, ou apenas nos concursos de imitadores de Elvis que acontecem ao redor do globo.
Um dos longas mais recentes a nos trazer o rei do rock de volta à vida é esse Elvis & Nixon, filme surgido de um fato curioso:
A foto que o cantor tirou ao lado do ex-presidente Richard Nixon em dezembro de 1970 é o documento de imagem mais requisitado da história do Arquivo Nacional norte-americano.
O artista mais famoso da história dos EUA, em uma reunião com o presidente mais infame da história do país parece a matéria da qual sãos feitos os sonhos de contadores de histórias já que não há registros oficiais sobre o que foi discutido entre os dois durante o período em que estiveram juntos.
A diretora Liza Johnson e os roteiristas Joey e Hanala Sagal e Cary Elwes (o Westley de A Princesa Prometida) são os responsáveis por imaginar as circunstâncias desse surreal encontro de personalidades que, por si só, já mereceria uma espiada.
O longa só ganha em peso quando os personagens título são vividos, respectivamente por Michael Shannon e Kevin Spacey, dois dos maiores atores em atividade no cinemão norte-americano contemporâneo.
O longa abre com Nixon recebendo de seus assessores Egil Krogh e Dwight Chaplin (Colin Hanks e Evan Peters) uma carta de Elvis Presley, onde o músico se diz preocupado com os rumos da América e se oferece para assumir o posto de agente federal à paisana.
Daí, nós voltamos brevemente no tempo, da noite em que Elvis tem sua epifania em uma madrugada insone diante da TV até o momento em que, com a ajuda de seu amigo Jerry Schilling (Alex Pettufer) ele chega ao portão noroeste da Casa Branca e entrega sua carta de intenções para Nixon e se põe a aguardar uma resposta.
Infelizmente os roteiristas desperdiçam o que poderia ser um brilhante diálogo sobre homens poderosos e solitários, construtos midiáticos engolindo pessoas reais e choque entre personalidades fortes.
Elviz e Nixon são os protagonistas, seus nomes estão no título e seus intérpretes são dois atores tão fodas que superam com larga vantagem o texto que lhes é fornecido, então é um tanto quanto brochante assistir ao filme e ver que a reunião entre os dois, de fato, ocupa apenas uma pequena parte parte dos modestos oitenta e sete minutos de filme.
O longa se ocupa muito mais de Elvis tentando entrar na Casa Branca sem marcar uma reunião formal com a ajuda de seus amigos Jerry e Sonny (Johnny Knoxville), e de Krogh e Chaplin tentado convencer Nixon da utilidade em receber Elvis no Salão Oval.
Por divertido que seja, e o filme se esforça para tornar a coisa toda muito leve, a verdade é que ninguém liga para os assessores de Nixon, e menos ainda para os amigos de Elvis.
Quem é que quer saber do acidente de moto ou do conflito com a namorada de Jerry?
O que funciona em Elvis & Nixon são... Bem... Elvis e Nixon.
Mais o primeiro, tanto porque tem mais tempo de cena, quanto pela qualidade do personagem e cuidado do roteiro.
O texto não chega a ser um primor, mas Michael Shannon faz uma construção tão sensacional para seu Elvis que chega a dar um certo dó de o filme não ir mais além.
Misturando um tom de voz que nada tem a ver com as imitações clássicas de Elvis, mantendo o discurso do personagem quase infantil, com um gestual que flutua entre bençãos e golpes de caratê o intérprete mostra um Elvis Presley que vau muito além da peruca preta, das costeletas e dos trajes escandalosos.
Seu monólogo a respeito do irmão gêmeo natimorto e sua conversa com Jerry sobre como é difícil ser Elvis Aaron Presley quando se é Elvis Presley são dois momentos de atuação muito acima da média, e muito além do que o filme como um todo consegue aspirar.
Spacey, um mestre das imitações (procure no Youtube suas entrevistas, Spacey vai de Al Pacino a Katharine Hepburn passando por Jack Lemmon, Clint Eastwood e Marlon Brando) faz um trabalho competente emulando Richard Nixon, mas a verdade é que o script não está de fato preocupado com quem era essa pessoa, apenas com uma faceta sua que pudesse se opôr ao rei do rock.
Ainda assim, Spacey tem estofo e presença (e familiaridade com salões ovais cenográficos) para, da mesma forma que Shannon, ir além do texto.
Quando os dois finalmente se encontram nós finalmente temos um vislumbre do que o longa poderia ter sido, com Nixon se sentindo desarmado pelo elogio do rei do rock à sua aparência, Elvis se servindo descaradamente das guloseimas que, ele fora avisado, eram apenas para o presidente, ou Nixon, veladamente fazendo troça da caligrafia quase infantil do músico.
Com uma abordagem equivocada de diretora e roteirista, chega a ser estranho que eu recomende o filme, mas é exatamente o que vou fazer:
Assista.
É uma pena que os protagonistas do longa sejam negligenciados pelo roteiro, ainda assim, o Nixon de Spacey e especialmente o Elvis de Shannon, valem a locação.
Ver mestres de seu ofício em ação é uma oportunidade que não se deve desperdiçar.

"-Essa é uma pedra lunar. Ela me foi dada por um grande americano, Buzz Aldrin. Você pode remover o vidro e pegá-la se quiser.
-Não, tudo legal, cara. Buzz me deu uma, também."

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Minha Vó


Me lembro da última vez que vi minha vó.
Foi há cerca de dois anos... Quando a demência senil que a atacou após um câncer e uma infecção hospitalar permaneceu depois de as outras duas moléstias terem sido curadas...
Ela, aos poucos, foi se tornando uma sombra mais e mais pálida da pessoa que havia sido conforme ia sendo infantilizada pelo tratamento dispensado pelas cuidadoras e perdendo o contato com todas as atividades que a faziam ser quem era.
Minha vó fora uma doutora.
Bióloga, professora, ecóloga (jamais ecologista), especialista em aracnídeos... Ao limpar seu apartamento quando ela passou a viver com minha tia, esbarrei com seus inúmeros diplomas... Inúmeros certificados... Com suas inúmeras anotações... Com todas as lembranças e evidências de uma pessoa de mente e mãos ágeis que pouco a pouco foi sendo substituída pela velhinha que mal falava, e andava em círculos balbuciando na sacada do apartamento.
Nessa última vez que a vi, já havia pouco dela...
Apenas breves fagulhas de uma chama que queimara forte por muito tempo.
Foi, como só podia ser, fazendo uma piada...
Eu disse alguma bobagem e ela reagiu.
Ela riu, e eu a reconheci.
Aquela era a risada da minha vó.
Da minha vó de verdade.
Da mulher que me ajudava com os trabalhos de ciências e de português. Que tinha um Grande Dicionário Aurélio na estante de casa e não tinha o menor pudor em correr para pegá-lo e provar que seu linguajar, por prolixo que fosse, estava correto.
Que me acolhia quando eu precisava de roupas novas, material escolar, ou apenas de um brinquedo novo, mimos e carinhos.
Que me dava a liberdade de ir e vir que eu não tinha em nenhum outro lugar. Que não se furtava em arrastar o colchão de sua cama pro chão da sala me contando histórias quando a insônia me atacava na tenra infância.
A minha vó que se vestia com esmerada elegância, e lutava de todas as formas para encrespar os cabelos lisos. Que não resistia a uma conversa científica, que não tinha nojo nem medo de nenhum inseto ou animal e que era apaixonada por ginástica.
Que adorava o sol, e tinha o mais livre dos espíritos, por vezes, livre até demais, que amava ser o centro das atenções e a alma da festa, mas sempre encontrava espaço pra mim em seu coração, e em sua por vezes inchada agenda de compromissos.
Era dessa mulher a risada que eu ouvi naquele dia.
Aquela foi a última vez.
Dali pra frente... Cada vez havia menos da minha vó naquela velhinha.
Apenas uma vaga semelhança física...
Um semblante ocasional...
Ontem, às três e meia da madrugada, minha vó morreu.
Após uma penosa passagem pelo hospital, ela finalmente foi derrotada em uma batalha que começou há quase quatro anos atrás, e que se estendeu quase três anos além das previsões dos médicos.
Ontem, enquanto o caixão que levava seu corpo se encaminhava para a cremação ao som de Como Uma Onda, na versão de Tim Maia, cujo disco ela quase furara a faixa ouvindo vezes e vezes sucessivas num verão em que eu quase comecei a odiar o Tim Maia... Em meio ao lamento de perder uma pessoa que me deu tanto, eu me dei conta de que jamais havia dito a minha vó o quanto ela era importante pra mim.
O tamanho do papel que ela desempenhou em minha vida.
O quanto eu a amava.
Eu posso racionalizar que, por ser tão sabida, ela certamente deduzia isso tudo. Tendo toda a sua instrução, educação formal e sapiência, ela era capaz de, por A + B, compreender a dimensão do meu afeto e apreço.
Mas é apenas racionalização...
Uma esperança de que a falta dessa verbalização não tenha sido sentida.
Em várias ocasiões minha vó deixou claro que admirava a minha faceta mais racional... Mais fria... Que se orgulhava disso em mim.
Então é confortável pra mim, supôr que a minha vó entendia minha forma de gostar. Entendia minha maneira de não demonstrar afeição de forma mais efusiva.
Ainda assim... Me arrependi de jamais ter verbalizado.
Por que eu amava.
Amo.
E nunca nunca vou deixar de amar.
E nem de sentir saudade.

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

O Pastor - Parte 2


A vida mudara desde a tenra infância...
Os anos passaram e conforme os hormônios entravam em ebulição, os prazeres infantis de brinquedos e doces deram lugar aos esportes e às gurias.
Com quinze anos de idade, ele já não era mais um menino, mas um rapaz. Um rapagão de constituição esguia e forte, que corria como um cavalo e dividia seu tempo entre a escola e o futebol.
Adorava o esporte, e, ainda que não tivesse pretensões de seguir uma carreira esportiva profissional, dedicava-se à atividade com paixão. Quando não estava estudando, estava praticando alguma atividade esportiva.
Conforme mudava de figura, deixando de ser o moleque rechonchudo que corria por cima de muros na praia, atraía olhares diferentes das meninas, antes, objetos de desejo inalcançáveis.
Gostava daquilo.
Não conseguia relativizar, à época, o quanto aquela mudança o agradava. Havia passado por alguns anos difíceis ao começar a frequentar a escola. Vítima de bullying era frequentemente discriminado pelas outras crianças, o que o levava a ter um círculo de amigos extremamente reduzido, geralmente restrito a um ou dois coleguinhas.
Naquele momento isso mudara por completo.
Sendo atlético e bem apessoado e tendo conservado a veia intelectual do isolamento infantil, ele tinha dezenas de amigos na escola e na vizinhança. Era convidado para festas, disputado para trabalhos escolares por conta das boas notas e praticamente arrancado de casa todos os dias por alguém do seu círculo social em constante expansão.
Estava feliz.
E teria permanecido assim, se em uma noite quente de dezembro, após chegar em casa tarde da noite e despencar dormindo no quarto, não tivesse tido um sonho...
No sonho, ele andava por uma rua do centro de Porto Alegre onde passaram bons anos de sua infância.
Ao lado do prédio onde morava, havia uma praça com grandes carvalhos enfileirados um ao lado do outro.
Reconheceu de imediato aquela praça.
Crescera brincando nela... Normalmente solitário... Ás vezes com amigos. Ali tivera sua primeira briga, e sua primeira derrota em uma briga.
A despeito disso, era um lugar familiar... Lembrava-se de brincar ali com revólveres de espoletas... Em um tempo quando o mundo era menos politicamente correto e as crianças brincavam com réplicas perfeitas de armas de fogo de verdade... Ele fora uma dessas crianças, feliz da vida com seu Colt .44 de cano ventilado que soltava fumaça por todos os lados quando disparado e era municiado com oito barulhentos cartuchos de pólvora em um anel de plástico vermelho, a única coisa que destoava no convincente simulacro de uma arma de verdade.
Em seu sonho, ele se lembrava de tudo isso. E se não fossem as sombras agourentas das árvores tomando formas sinistras no chão de terra, ele teria andado por ali de coração leve.
Mas foi justamente de uma daquelas sombras que emergiu, sorridente, uma figura medonha e familiar.
O "Homem das Flores", que o visitara em seus pesadelos durante uma longa semana na tenra infância ressurgia. Ainda usando botas negras, calças cinzentas e um colete preto aberto... Ainda com o peito forte à mostra, com a cabeçorra se estendendo muito além do que era razoável verticalmente.
Ele sorria, de boca aberta, e seus olhos... Dois pontos brilhantes dentro da cova de suas olheiras, aprofundadas pela sombra de sua testa projetada e dos asquerosos caroços inflamados em sua testa... Seus olhos encontraram o rapaz que, de imediato relembrou o terror infantil, e se pôs a correr.
As ruas estavam desertas, mas ainda que não houvesse sol, em seu sonho era dia, e ele reconhecia aquela rua. Crescera andando nela. Conhecia seus caminhos, entretanto o "Homem das Flores" parecia não precisar de mapa ou orientação. Em seu passo comedido estava sempre atrás do rapaz conforme ele se lembrava, e a cada vez que olhava para trás, a abominação parecia ter ganhado metros na perseguição sem fazer esforço algum.
O rapaz, prestes a sucumbir ao pânico, passou diante de uma garagem que tinha uma grande rampa que descia para o subsolo de um prédio.
Ao lado da rampa, havia um para-peito com um mirante de onde se podia observar o miolo de um quarteirão localizado em uma rua em declive, de modo que os fundos dos prédios da rua se encontravam vários metros abaixo do nível da calçada.
Em um átimo, o jovem se lembrou que, nos sonhos, ao cair, nós sempre acordamos antes do impacto fatal, e sabendo que, naquele momento, sonhava, fez a curva fechada para dentro da garagem e saltou do para-peito, acordando-se em seguida.
Ouviu o grunhido que exalara ao acordar.
Seu pescoço e nuca estavam suados em profusão. Sentou-se na cama e, por estranho que pareça... Riu.
Não pôde deixar de rir da situação. De ser assombrado por um pesadelo da infância. Achou verdadeiramente engraçado. Na verdade, olhando em perspectiva, naquela época, ele chegou a sentir uma doce melancolia após aquele pesadelo.
Mas não se aprofundou naquela linha da raciocínio. No dia seguinte sequer lembrava do tal sonho. Sequer sentiu orgulho da própria presença de espírito onírica, dar-se conta que estava sonhando, assumir as rédeas do sonho e saltar para o despertar, fora algo que, logo após acordar, o havia feito sentir uma fagulha de soberba, mas a verdade é que, naquele tempo, o vigor e a velocidade de uma vida adolescente não lhe dava tempo de remoer, reviver ou analisar coisa alguma.
Estava demasiado preocupado com o que acontecia à cada minuto. A escola, os esportes, os amigos, as festas, as gurias... Sempre havia alguma coisa acontecendo e ele não tinha tempo para ficar pensando em um sonho bobo que tivera naquela noite, ou em qualquer outra. E a verdade fora que o surto de adrenalina no qual acordara naquela madrugada havia sido um tipo de recreação...
O dia transcorreu repleto de descobertas, risos e esportes como transcorriam todos os seus dias, então.
À noite, quando foi dormir, nem sequer se lembrou do "Homem das Flores", e não sonhou com ele.
Ao menos não da maneira como ocorrera antes.
Naquela noite ele sonhou com uma casa escura. Parecia o sobrado de sua bisavó em Caçapava do Sul. Mas estava velho... Dilapidado. As paredes cor-de-rosa do quarto onde a bisa dormia e assistia à TV tinham a tinta descascada e estavam sujas e manchadas... O piso de tabuão de madeira escura estava úmido, e algumas das ripas de madeira que formavam o assoalho estavam fofas de tão podres, enquanto de outras faltavam grandes pedaços.
Na sala de jantar, cujas paredes eram dominadas por um quadro de Nossa Senhora e um grande relógio de parede, a mesa estava suja... Uma toalha de renda branca manchada estava em cima da mesa, ela estava manchada pelo líquido que escapava de uma taça longa virado ao lado de uma bandeja de porcelana branca.
Sobre a bandeja, havia um pedaço de carne esverdeada, e ela se mexia como se houvessem insetos ou larvas dentro dela... Ele não ouvia nenhum ruído, e a única janela do ambiente estava fechada, exceto por uma fresta entre as tábuas das venezianas por onde entrava uma luz pálida.
Olhou em volta dando-se conta que não encontrava as portas... Em sua memória, aquele ambiente devia ter três, a que levava à cozinha, a que levava à porta de entrada da velha casa e outra que levava ao anexo da casa nova, construída anos depois do sobrado original...
Percebeu-se preso naquela sala.
Sem ter pra onde fugir... Sem ter pra onde correr.
Andou até a parede do relógio. Lembrava-se que aquele relógio badalava de maneira agourenta à cada hora... Não foram poucas as ocasiões em que acordara de madrugada durante suas férias ouvindo o soar do relógio.
Perguntava-se como podiam continuar dormindo com o soar das badaladas madrugada adentro... Temia que o relógio ressoasse enquanto estava preso ali.
Aquele pensamento, por alguma razão, o encheu de terror.
O vidro do relógio estava sujo e embaçado... Ainda assim, o rapaz teve a impressão de ter visto o reflexo de alguém atrás de si, e se virou rápido para olhar.
Não havia ninguém, porém. Tudo continuava igual.
Exceto...
A taça... Modelo próprio para champanhes e espumantes... Estava de pé. E dentro dela, havia um cogumelo vermelho de haste longa.
Posicionado como se fosse uma flor.
Atrás dele, o relógio badalou.
Despertou novamente em sua cama. Suado e ofegante.
Não sentia o surto de adrenalina da noite anterior. Estava exausto.
Aquele pesadelo fora perturbador... Um augúrio de alguma espécie. Ele reconhecera de imediato o cogumelo de haste longa. O vira antes... Nos pesadelos de sua infância, arranjados como um buquê nas mãos do "Homem das Flores". Depois um deles preso à fita do chapéu preto que usava sobre a cabeçorra desproporcionada.
Não conseguiu mais dormir...

sábado, 17 de setembro de 2016

"Desperdício", não.


É tão estranho...
Tu nunca sai dos meus pensamentos.
Nunca.
Em algum momento, eu acho que sempre lembro de ti. Mas, é uma lembrança mantida à uma distância segura. Algo no qual eu não me aprofundo.
Não me aprofundava... Há muito tempo.
Talvez seja uma maneira de manter as coisas numa chave de segurança.
Lembrar de ti geralmente me leva a pensar no que eu desperdicei... No que deixei passar.
E eu racionalizo as coisas pensando que, nas palavras de Renato Russo, foi só o tempo que errou.
Tu era tudo o que eu sempre quis.
Tudo o que eu podia querer.
Mas eu era jovem e estúpido demais pra me dar conta.
E a nossa janela se fechou.
Foi minha culpa. Eu confesso, admito, e posso te garantir... Já cumpri a pena.
Acredite.
Eu conversava com outra pessoa uma vez... E falei de ti. E, naturalmente, sem pensar a respeito, falei uma dessas verdades que nós só dizemos assim... Naturalmente... Sem pensar a respeito...
Eu disse que, se tu tivesse sido minha segunda namorada... Ou terceira... Ou quarta... Eu teria me casado contigo no ato.
Sem nem pensar duas vezes. Que eu teria passado o resto da minha vida contigo, se tu não tivesse sido minha primeira namorada.
É estranho... Porque não é algo em que eu tenha pensado antes de falar.
Isso simplesmente fluiu quando eu relembrava meus relacionamentos.
E depois que eu disse, eu me dei conta e só então pensei a respeito. Se eu tivesse base de comparação... Se eu não fosse um fedelho...
Eu ia saber.
Eu ia saber que, melhor do que aquilo, não tinha como estar.
Ao menos não na parte que interessa.
Eu tinha chegado à essa conclusão já há algum tempo... Sem exagero, mais de um ano.
Mas não tinha posto pra fora.
Fui, inclusive aconselhado a não te dizer...
Eu não sei por que.
Eu coloco isso como um elogio (Desculpe se for pretensão da minha parte). Não estou pedindo nova chance... Nossa janela fechou, o barco zarpou, o trem partiu e todas essas figuras de linguagem pra chance desperdiçada.
"Desperdiçada", de novo essa palavra.
Não tá certo...
Porque, se tem uma coisa que eu sei com certeza nessa vida, é que nem um milésimo de segundo passado do teu lado foi um desperdício.
Então... Eu só precisava te dizer isso. Tô com isso pulsando no peito feito um sapo desde ontem quando ouvi teu nome.
Sapo...
Engraçado, né? Que ainda hoje eu conecte "sapo" e"coração"...
Por que será...?

O Pastor - Parte 1


O primeiro pesadelo foi aos seis anos...
Lembrava-se bem... Era até estranha a riqueza de detalhes daquela lembrança... Ou talvez não fosse. Enfim...
Tinha seis anos.
E estava na praia com a família.
Naquele tempo, de férias escolares, não era incomum passar três meses na praia.
O pai conseguia transferências temporárias para uma agência bancária no balneário vizinho, e passava dois meses trabalhando no litoral e um de férias com a família, podia não apenas curtir a casa da família na praia, como ganhava um dinheiro extra, já que os voluntários da "operação verão" recebiam diárias para se hospedar e se manter no litoral enquanto trabalhavam.
Eram bons tempos.
Ele adorava o litoral. Amava o mar, ao qual conhecera com poucos dias de vida, e a liberdade do balneário, uma completa inversão da quase reclusão da vida na cidade grande, onde raramente podia brincar ao ar-livre.
Ter um quintal com grama onde brincar e a liberdade de andar vários quarteirões sem a supervisão de um adulto eram coisas às quais prezava sobremaneira.
A presença eventual dos primos e das primas também eram um bálsamo sazonal extra.
Tudo era uma maravilha, até a noite daquele sonho...
Em seu sonho, no quarto repleto de beliches onde se amontoavam as crianças na casa da praia, surgia pela porta pintada de azul-marinho brilhante um homem carregando um punhado de cogumelos.
Eram cogumelos vermelhos com longas hastes brancas organizados num arranjo como um buquê. O homem vestia botas negras, calças jeans escuras e um colete de couro preto aberto. Seu corpo era o de um velho musculoso, com pelos grisalhos no peito e na barriga. Tinha mãos nodosas e unhas levemente longas, mas o perturbador de fato, era a sua cabeça.
A cabeça era ao menos três vezes maior do que uma cabeça normal deveria ser.
Seus olhos, muito pequenos e juntos, fundos em olheiras profundas sob uma testa projetada, pareciam estar sempre sorrindo.
Tinha um nariz alongado e chato, praticamente dividido ao meio por um calombo bastante evidente. Sua boca tinha lábios finos e era larga, e seus dentes eram pequenos como grãos de arroz.
Não tinha praticamente sobrancelhas, e sobre cada olho tinha uma calosidade como um caroço subcutâneo do tamanho de meia bola de tênis. Esses caroços eram recoberto por uma pele inflamada, vermelha e lustrosa.
Tinha cabelos escuros cortados curtos, e uma barba fina que partia das suíças emoldurando-lhe o rosto e transformando-se em uma barbicha mais longa no queixo, que se estendia até a altura de seu peito.
Ele não falava, apenas sorria e olhava.
O sorriso dele não era amistoso, e suas intenções só podiam ser pérfidas. A única saída aceitável era a fuga, mas fugir parecia uma tarefa impossível...
O homem das flores... Era como ele o chamava, então, por causa do ramalhete... Conseguiu chegar perto o bastante para quase tocar...
Mas antes do toque, um despertar banhado em suor e lágrimas irrompia, atraindo a mãe do menino para o quarto, consolando-o e assegurando que fora apenas um pesadelo.
E era o que parecia ter sido.
Apenas um pesadelo. Uma ocorrência comum para qualquer criança.
Não tivesse se tornado uma ocorrência recorrente.
Na segunda vez que o homem das flores apareceu em seus sonhos, foi logo na noite seguinte.
Naquela segunda vez ele não carregava o ramalhete de cogumelos. Usava um chapéu preto, e tinha um cogumelo vermelho de haste longa preso à fita do chapéu.
Novamente ele sorria.
Com aqueles dentes miúdos, muito, muito mais de trinta e dois... Outra vez a fuga era a única alternativa.
Ela se deu na beira da praia, que estava deserta, iluminada por uma luz alaranjada como se o céu estivesse em chamas.
Novamente ele não correu. Apenas andou. E mesmo assim chegou perto o suficiente do menino para quase tocá-lo, sendo impedido no último instante pelo grito de despertar.
Novamente sua mãe correu em seu socorro, chegando esbaforida do quarto contíguo, oferecendo-lhe água, levando-o para lavar o rosto e assegurando-lhe que tudo não passava de um pesadelo.
Durante o dia, na mesa do café da manhã, o pesadelo virava até motivo de brincadeira de sua mãe e seu pai.
O menino sorria, mas a verdade é que temia que, à noite, acontecesse novamente.
E acontecia.
A sequência recorrente de pesadelos durou quase uma semana.
As visitas noturnas do "homem das flores" eram esquecidas durante o dia, mas conforme a hora de dormir se aproximava, se tornavam uma preocupação mais e mais palpável, uma sombra agourenta sob a qual era impossível estar tranquilo.
Especialmente para um menino de seis anos.
Ou sete.
Ele fez aniversário durante aquela sequência de pesadelos. E lembrava-se de ter ganho presentes dos familiares... Dinheiro dos mais abastados, miudezas bobas dos mais econômicos ou menos endinheirados.
Ganhou bobagens como um chaveiro... Uma peça de plástico negra com seis botões coloridos.
Quando pressionado, cada botão reproduzia um som... Metralhadoras, sirenes, bombas... Um tio apelidou o aparelho de "aporrinhola".
Ganhou carrinhos de brinquedo... Um boné estilo legionário... E, talvez o grande presente do dia, um canivete suíço.
Entregue sob sérias recomendações de jamais usá-lo para apunhalar um amiguinho, jamais correr com nenhuma das lâminas expostas, e usá-lo, não como um brinquedo, mas como uma ferramenta.
Não lembrava se a comemoração fora com bolo ou churrasco... O que lembrava é que, antes de sucumbir ao cansaço de um dia de verão, sol e festa, temeu novamente uma visita noturna do homem das flores.
E ela veio.
A perseguição se dera sobre um muro de lajotas vermelhas algo familiar, porém, no sonho, o muro parecia não ter fim, e se erguer muito, muito acima da altura do chão. Aos sete anos, ele conseguia correr por muito tempo em cima de um muro, mas não o suficiente.
Não sendo perseguido daquela maneira.
A perseguição terminou com todas as outras. O homem das flores próximo o suficiente para tocá-lo. Ele se aproximou tanto que o menino jurava poder sentir a respiração dele tocando-lhe as sobrancelhas.
Abriu a boca, que pareceu aumentar de tamanho, e a rotina de despertares aterrorizados se repetiu.
Novamente molhado de suor, com lágrimas nos olhos, a respiração ofegante e o coração palpitando.
Custou a voltar a dormir... Sua mãe e pai estavam com os outros adultos bebendo e conversando na garagem.
Podia ouvi-los à distância, e teve raiva por ninguém estar ali para ampará-lo.
No dia seguinte, enquanto andava pelas ruas do balneário, ele encontrou o muro de lajotas vermelhas onde fora perseguido em seu devaneio noturno.
Era um muro de tamanho normal. Não se estendia por quilômetros e quilômetros. Não era mais alto que um arranha-céu. Era apenas um muro de sessenta centímetros de altura, que servia de passarela apenas às formigas que trabalhavam ali.
Ele não soube ao certo o porquê... Mas municiado de seu canivete suíço recém ganho, se pôs a mutilar os insetos.
Arrancava-lhes as pernas... As cabeças... Dividia-lhes as seções do corpo e as via agonizar.
Passou nisso um bom tempo. Tanto que, quando se deu conta, o sol já se escondia, e ele, envergonhado da carnificina cruel que realizara, se levantou e foi pra casa, onde tomou banho e comeu como se nada houvesse acontecido.
Na hora de dormir, novamente temeu pela visita do homem das flores, mas não foi seu último pensamento.
Esse foi reservado às formigas.
Apiedou-se delas e teve raiva de si próprio pelo que fizera.
Jogou o canivete suíço na caixa de brinquedos comprometendo-se a não usá-lo nunca mais.
A surpresa não foi que, naquela noite, sonhou novamente com o homem das flores...
Mas sim que conseguia fugir dele com mais desenvoltura.
Novamente no muro de lajotas vermelhas da noite anterior.
Conforme corria para ganhar distância, algumas sessões do muro desmoronavam como se fossem feitas de areia.
Em seu interior, um líquido amarelado malcheiroso, parecido com vômito, corria em profusão.
O homem das flores parecia recear pisar naquele fluido fétido, e com isso, ficava para trás.
O menino, dando-se conta disso, saltava sobre o muro, garantindo que pedaços do muro se partissem e revelassem a nojeira em seu interior.
À certa altura de seus esforços, uma longa rachadura se projetou de onde o menino deu seu último pisão, o muro se desfez embaixo dos pés do visitante noturno, e ele caiu naquela poça nauseabunda, afundando aos gritos.
Não houve despertar apavorado, entre grito e lágrimas naquela noite...
Ele acordou tranquilo em sua cama, deitado de lado com a mão sob o travesseiro.
A única coisa estranha, era que seu punho se encerrava ao redor do canivete de descartara antes de dormir.
Ele não se preocupou com isso, porém... Estava demasiado feliz por ter vencido seu algoz.
Ou ao menos, era nisso que ele acreditava...

sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Resenha Cinema: Conexão Escobar


É engraçado como Pablo Escobar, o Elvis Presley dos narcotraficantes sul-americanos deu uma de Elvis Presley e vinte e três anos após sua morte, experimenta um novo surto de popularidade.
Além do bem-sucedido seriado Narcos na Netflix, o barão da cocaína também conseguiu seu nome no título em português de The Infiltrator, longa onde, nem de longe é figura central como na série estrelada por Wagner Moura, mas tem sua sombra lançada sobre os personagens de maneira agourenta por boa parte do filme.
Longa que adapta o livro de memórias do agente federal da Alfândega Robert Mazur (Bryan Cranston), que em 1985 teve a ideia de uma operação que mudava a abordagem das agências da lei norte-americanas na guerra contra as drogas de Ronald Reagan.
Se até então, as forças policiais perseguiam as drogas, fazendo grande alarde com suas apreensões de centenas e centenas de quilos que cocaína de cada vez, uma migalha em um universo onde o cartel de Medelín, sozinho, transportava quatrocentas toneladas da droga para os EUA pela Flórida periodicamente; Mazur teve a ideia de, ao invés de perseguir as drogas, ir atrás do dinheiro, e dos peixes grandes.
Um experiente agente infiltrado, Mazur cria a persona de Robert Musella, um empresário cheio de negócios legítimos capaz de lavar centenas de milhões de dólares em dinheiro de drogas que com a ajuda de seu parceiro, Emir Abreu (John Leguizamo), consegue uma porta de entrada para o mundo dos grandes traficantes.
Mazur e Abreu, precisam convencer os bandidos de que são confiáveis em todos os sentidos para galgar os degraus da organização criminosa até os maiores chefões do cartel. Uma tarefa que se mostra particularmente árdua quando se lida com assassinos cruéis e sem escrúpulos e onde qualquer deslize acarreta consequências, como o fato de Robert se negar a fazer sexo com uma prostituta para se manter fiel à esposa com quem o casamento sofre as reverberações de sua vida dupla, culminando com a adição de uma nova agente à equipe, Kathy Ertz (Diane Kruger), que se torna sua "noiva".
A cada novo círculo alcançado, aumenta o escopo de um eventual sucesso da operação, mas os riscos envolvidos também aumentam em proporção geométrica, especialmente quando, após serpentear entre assassinos e banqueiros, Robert finalmente alcança Roberto Alcaino, um importante tenente na organização do próprio Pablo Escobar, colocando Mazur, Ertz e Abreu em estado de constante apreensão o tempo todo conforme eles lutam para manter seus disfarces enquanto fecham o cerco para o que pode ser o maior êxito da guerra contra as drogas até então.
Dirigido por Brad Furman, o mesmo de O Poder e a Lei e Aposta Máxima com roteiro adaptado por Ellen Brown Furman, Conexão Escobar é um bom filme de tira infiltrado.
Não tão bom quanto Os Infiltrados ou Donnie Brasco, mas bom o suficiente para se sobressair em uma temporada repleta de filmes para crianças.
O trabalho de Furman na direção não chega a ser um primor.
Há zero assinatura na forma como a história é contada, mas ao menos o cineasta acerta na direção do elenco, todo muito bem.
John Leguizamo faz um ótimo trabalho como o tira porra-louca desajustado Emir Abreu, Benjamin Bratt está muito bem como Roberto Alcaino, o homem de família amigável e polido que é o braço direito de um açougueiro. Diane Kruger surpreende na pele de Ertz, e consegue não apenas não sumir, mas também roubar várias de suas cenas com o dono da festa, Bryan Cranston.
O eterno Walter White alcança um equilíbrio complicadíssimo ao convencer não apenas interpretando Robert Mazur, mas Robert Mazur interpretando Robert Musella.
A cena com o bolo no restaurante é excelente, mostrando o ator indo de um personagem ao outro em questão de segundos. Muito do que funciona o filme se deve à performance do ator que encabeça o elenco (ainda composto por Amy Ryan, Olimpia Dukakis, Jason Isaacs, Juliet Aubrey e Joseph Gilgun.).
Apesar da direção morna, o longa consegue criar momentos de tensão genuínos, conta uma boa história, e tem trabalho de elenco acima da média.
Certamente vale a ida ao cinema, especialmente para fãs de um bom filme policial.

"-Eu não negocio sob ameaça.
-Infelizmente você não está em posição de ditar termos com don Pablo."

quinta-feira, 15 de setembro de 2016

Claustro


Décimo-sexto dia trancado dentro de casa.
Dezesseis dias sem ver a luz do sol. Venezianas fechadas, luzes apagadas.
Duas semanas e dois dias sem ver ou ouvir outro ser-humano. Seria o mesmo período sem ver outro ser vivo não fosse pela lagartixa que vi na cozinha, ontem à noite.
Trezentas e oitenta e quatro horas sem ouvir a voz de outra pessoa.
Vinte e três mil e quarenta minutos de solidão.
Um milhão, trezentos e oitenta e dois mil e quatrocentos segundos de claustro auto-infligido...
Não que eu esteja contando...
Eu sei que eventualmente terei que sair das trevas... Minha mente racional diz isso.
O tempo todo.
O cérebro assume as rédeas vez por outra e se esforça pra se fazer entender... "Veja bem", diz o consciente, "Isso não vai funcionar.".
Eu sei a que ele se refere.
Em algum momento a comida vai acabar.
O dinheiro do banco vai acabar.
E aí vai acabar a energia elétrica... A água...
Na eventualidade de tudo isso acabar vai ser apenas questão de tempo até que eu acabe, também.
O ponto é... Será que eu não prefiro acabar?
Não sei...
O consciente diz que não.
O inconsciente diz "whatever".
Inconsciente idiota. Falando em inglês.
Quem ele pensa que é?
A verdade é que eu estou me divertindo transformando minha casa em uma caixa de Schrodinger...
Nesse momento eu estou vivo e morto ao mesmo tempo.
A experiência é por demais libertadora pra alguém querer abrir mão.
E eu nem precisei do contador Geiger, do veneno e do composto radioativo... Só da chave de casa.
Banqueteando-me da delícia de ver o celular tocando e não atender, imaginando a aflição das pessoas do outro lado da linha se perguntado o que aconteceu comigo...
Seria ainda mais delicioso se alguém ligasse de fato e todo o prazer sádico de afligir os outros não fosse inventado.
O consciente diz que as pessoas ligariam se eu não as afastasse a todas.
O inconsciente diz "quem liga?"...
Pra um inconsciente ele até que sentiu a minha censura por falar em inglês de maneira desnecessária.
Existe um dito a respeito de não faltar ao trabalho e dar ao patrão a certeza de que tu não é necessário... Acho que foi o que eu fiz... Mas ao invés do trabalho faltei à vida... E ao invés do patrão, foram todas as pessoas que ganharam a certeza de que eu sou desnecessário...
Na verdade tudo isso... Todo esse experimento... Começou por eu ser desnecessário.
Não foi?
Desnecessário para uma pessoa em particular. Não fosse isso, e talvez as coisas tivessem seguido seu curso natural e eu ainda estivesse simulando minha vida lá fora.
Em contato com outros seres humanos. Com outros seres vivos que não a Madalena...
É o nome da lagartixa...
Se eu não tivesse sido confrontado com a minha inutilidade... Eu não teria me enclausurado isolado por dezesseis dias...
Trezentas e oitenta e quatro horas...
Vinte e três mil e quarenta minutos...
Um milhão, trezentos e oitenta e dois mil e quatrocentos segundos...
Dos quais só pensei em ti.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Choro


Samuel saía do supermercado, ao atravessar a rua em direção à sua casa, carregado de sacolas, quando viu uma menina de doze, talvez treze anos, sentada em um banco da praça que ficava em frente à loja.
Ela chorava copiosamente. As mãos no colo, as costas coladas ao espaldar do banco, soluçava.
Samuel sempre se apiedava ao se deparar com as lágrimas de outrem.
Não conseguia evitar uma ponta de aflição. Sempre se perguntava se devia fazer alguma coisa. Dizer alguma coisa. Oferecer algum tipo de auxílio ou amparo. Qualquer coisa.
O sofrimento alheio, quando transbordava pelos olhos, era algo ao qual Samuel não conseguia ser indiferente.
Quando era em adultos, sempre existia o receio de ser rechaçado, taxado de enxerido. De metido. Santarrão...
Uma vez vira uma mulher chorando no shopping. Uma funcionária da Renner.
Ela saiu de dentro da loja, se escorou na parede, e chorou copiosamente sem que ninguém lhe dissesse palavra.
Samuel ficou arrasado. Teve ânsias de se aproximar e perguntar se estava tudo bem. De ampará-la... Sabia como era difícil chorar sozinho quando se passava por um apuro.
Olhando em perspectiva, teria sido uma espécie de bálsamo se alguém houvesse surgido lhe oferecido amparo. Mesmo que fosse algo pequeno, como uma mão no ombro.
Apenas para que ele soubesse que não estava sozinho.
Naquela ocasião, no shopping, ele não se aproximou.
As convenções sociais venceram seus ímpetos e ele se manteve à margem do sofrimento daquela mulher.
Ainda hoje pensava no que teria acontecido...
Qual teria sido o desgosto que levara aquela mulher a abandonar seu posto de trabalho e chorar de maneira tão aberta e dolorida?
Ele seguiu seu caminho à época sem voltar ou olhar para trás.
Mas agora... Agora era uma criança quem chorava. As limitações sociais e a privacidade tinham limites mais cinzentos quando se tratava de uma criança.
Ela poderia estar em um apuro que não seria capaz de resolver sem o auxílio ou a supervisão de um adulto.
Se fosse o caso, estaria à mercê de quem lhe oferecesse auxílio, e Samuel sabia que existia muita gente mal-intencionada no mundo. Então, se era pra alguém oferecer a mão àquela menina, que fosse alguém de intenções verdadeiramente altruístas, como ele próprio.
Aproximou-se devagar. Com um sorriso perdido em meio à uma expressão de genuína comiseração.
A menina chorava já havia algum tempo. Ainda que soluçasse e tivesse o rosto vermelho e inchado, já esgotara suas lágrimas. Qual seria o mal que afligia aquela menina a tal ponto de sofrimento e dor?
Samuel se perguntou se estaria equipado psicologicamente para oferecer ajuda diante de um caso particularmente horrível... E se ela houvesse perdido seus pais... Se fosse vítima de algum tipo de abuso...? Se alguma coisa realmente terrível tivesse acontecido, o que ele poderia fazer?
Titubeou.
Talvez essa fosse a razão para não oferecer auxílio. O fato de que, em certas ocasiões, simplesmente não haveria auxílio para oferecer. Não coubesse em suas mãos oferecer ajuda para determinados tipos de aflição... Talvez devesse virar as costas e ir embora...
Parou de andar. Chegou a se preparar para virar sobre os calcanhares e partir.
Mas deteve-se.
Era exatamente esse tipo de decisão que fazia com que o mundo fosse um lugar tão miserável.
Achar que não se envolver era melhor.
Algum amparo, mesmo que insuficiente, era melhor do que nenhum amparo.
Aproximou-se:
-Por que é que tu estás chorando, guriazinha?
Ela virou os olhos pra ele. O rosto desfigurado por um longo pranto. Os lábios tremeram e seus olhos ficaram rasos d'água.
Samuel se apiedou. Sentou-se no banco em frente ao que a menina ocupava.
Não queria sentar ao seu lado e causar a impressão de que era algum tipo de pervertido. Mas começava a se perguntar que tipo de trauma aquela criança ostentava que a fazia desabar daquela forma.
De uma de suas sacolas de compras sacou uma embalagem de toalhas de papel. A abriu e removeu um rolo arrancando uma folha.
A estendeu para a menina:
-O que foi que houve? - Perguntou. -Por que é que tu está assim?
A menina apanhou a toalha de papel e a colou no rosto. Começou a falar mas as palavras foram engolidas por um murmúrio que se tornou uma nova sessão de choro.
Samuel não sabia o que fazer.
-Olha... Não fica assim... O que quer que tenha te acontecido... Tu não tá sozinha...
Arriscou. Achava que estar sozinho quando sofria era uma das piores sensações que podia existir.
-Mas eu tô... - Replicou a menina. -Eu tô sozinha...
Os piores temores de Samuel se materializaram. A menina estava sozinha... Seria uma órfã sem irmãos? Talvez a filha de uma viúva e agora perdera a mãe para alguma doença gravíssima? Será que ela não tinha família imediata a quem recorrer e temia ser institucionalizada?
Que horror...
ofereceu o rolo de papel-toalha à menina, que aceitou.
-Mas... Olha... Porque tu acha que está sozinha? A tua família...? Eles...
A menina o interrompeu:
-A minha família não entende!
Samuel também não... Então ela tinha família?
-Mas... Tu tem família?
-Tenho... Mas eles não entendem que eu tô sozinha... - Chorou.
-Por que tu está sozinha...? - Samuel estava confuso.
-Porque ele terminou comigo... - Disse a menina, num soluço.
"Ele terminou comigo"? A menina estava falando de... Um namorado? Mas ela era uma criança. Não devia ter catorze anos...
-Teu... Namorado terminou contigo? - Perguntou, incerto.
-É! - A menina confirmou. E novamente se desmanchou em lágrimas.
Samuel não conseguia entender um namoro causar tanto sofrimento para uma criança... Mas ele era antiquado. Os tempos eram outros. Talvez a menina estivesse experimentando o fim do seu primeiro amor. Um relacionamento de dois amiguinhos que vinha de vários anos e que ela julgava como um namoro... Vai saber... Ele próprio crescera com uma melhor amiga que por alguma razão partiu seu coração ao surgir com um namorado... Talvez fosse algo nessa linha.
-Hmmmm... E ele e tu "namoravam" há muito tempo...? - Perguntou, tentando suprimir as aspas que se formaram naturalmente em seu discurso.
-Sim... - Confirmou a menina em um miado. -Dois dias...
-Dois... Dias... ? - Samuel absorveu com dificuldade: -E vocês se conheciam há quanto tempo?
-Dois dias... - Disse a menina, como se fosse uma obviedade, enquanto secava as lágrimas.
Samuel levantou, pegou o papel-toalha de volta, enfiando dentro da sacola de compras.
-É... Mundo cão, mesmo. Boa sorte. - Bufou.
Saiu deixando para trás a menina com sua dor.
Sabia que não tinha o direito de qualificar a dor alheia como mais ou menos justa, mas podia qualificar seu amparo.
E, por esse padrão, a menina que chorava pelo fim de um relacionamento de dois dias, no que dependesse dele, podia chorar até precisar receber fluídos no hospital.
Samuel ao menos descobrira que, eventualmente, conseguia ficar alheio ao choro de outrem.

sábado, 10 de setembro de 2016

A Carona


Quinta-Feira, sete e meia, quinze pras oito da manhã.
A Renata parou o carro no sinal e começou a mexer no celular. Estava na perimetral, mais ou menos próxima à José do Patrocínio, no horário do pico matinal. Sabia que levaria alguns minutos pra voltar a se mover, e foi conferir os e-mails.
Mal tinha aberto a tela de e-mail, lenta pela falta de um wi-fi confiável, quando a porta do carro se abriu.
Assomou a figura avantajada de um homem dos seus trinta e poucos, barbudo, cabelos desalinhados, expressão indefinida no rosto, que foi sentando no banco do carona.
A Renata ficou uma fração de segundo pensando no que é que estava acontecendo. Era assalto. Certo que era assalto. O sujeito queria o carro.
Não.
Naquele trânsito ele ia levar o carro de que jeito?
Era um ladrão que ia querer o dinheiro dela. Ia limpar a Renata... Mas a Renata só tinha vinte e dois reais na carteira. Vinte e dois reais e umas moedinhas.
Será que isso bastaria?
Dava pra comprar uma quantidade razoável de crack com vinte e dois reais ou ele ia ficar possesso e matar ela?
Ia querer o celular. Mas ainda faltavam duas parcelas pra terminar de pagar...
Mas se ela estivesse morta, também, que diferença faria?
Será que cobrariam as duas parcelas pendentes da mãe dela?
Que horror... Francamente, Casas Bahia... Não esperava isso...
Mas espera... Ela estava se desviando do assunto.
O que o meliante que acabara de entrar no carro queria.
Será que era um estuprador em série?
A Renata era bonita. Achava que podia emagrecer dois quilos, mas era bonita.
Um estuprador em série parecia um perigo palpável. O que ela devia fazer?
Aproveitar que ele ainda não sacara a arma e fazer um sinal de socorro pro cara no carro ao lado?
O idiota estava conversando animadamente no celular pelo viva-voz... Isso não era infração igual usar o telefone junto à orelha?
Ai, meu Deus! O homem se ajeitou sentado, trazendo uma mochila no colo!
É uma bomba!
É um terrorista!
Um talibã do Estado Islâmico!
-Oi, me dá uma carona até a João Pessoa? - Ele perguntou.
A Renata não entendeu.
-Não entendi... - Assumiu.
-Tu vai entrar antes? - Ele perguntou. Parecia calmo.
-Entrar onde?
-Na José ou na Lima?
A Renata não ia entrar... Ia seguir até a Osvaldo Aranha.
-Não... Eu entro na Osvaldo...
-Ah, que bom. Obrigado. - Agradeceu ele, se ajeitando no assento.
A Renata não entendeu. Estava tensa. As mãos crispadas no volante olhando pra frente evitando olhar para seu captor.
O que faria? O que faria? Tinha seu celular ainda na mão. Podia discar nove, um, um e pedir socorro... Não... Não era nove, um, um... Nove, um, um era no programa do cara do Carro Comando... Era um, nove, zero que se ligava no Brasil.
Olhou de esguelha para o tarado... Ele olhava pra frente com cara de pensativo. Olhou pra ela, que olhou pra frente de novo, rápida.
Ele tomou fôlego:
-Deixa eu te perguntar uma coisa...
Ele não estava pedindo licença. Ia perguntar de qualquer jeito. Renata crispou as mãos no volante.
O assassino continuou:
-É leviandade? Dizer pra mais de uma pessoa que ela é o amor da tua vida?
-Quê? - A Renata não esperava aquela. Nem entendeu, na verdade.
-Eu queria saber o que tu acha... Se tu não acha que dizer pra mais de uma pessoa que ela é o amor da tua vida é meio leviano... Meio hipócrita... Quantos amores da vida uma pessoa pode ter? Não era pra ser um só? - Conjecturou o larápio.
-Olha... - A Renata realmente não se sentia em posição de responder aquela pergunta sob a mira de uma arma.
Não que o sujeito estivesse lhe apontando uma arma. Mas havia uma arma metafísica ali, a Renata tinha certeza.
-Não, não... Porque... Sabe... Eu acho que a gente só tem um amor da vida. Por isso a gente diz "o amor da minha vida", e não "um amor da minha vida". - Continuou o bandido.
-Hã... - A Renata não estava conseguindo concatenar nada. O pior é que o craqueiro não parava de falar:
-Ou eu tô louco? Tô exigindo demais das pessoas? Tô fazendo demandas impossíveis ao cobrar um mínimo de coerência, ao menos no discurso?
A Renata jamais havia sido vítima de um crime. Não conseguia se concentrar no que o sequestrador dizia. Resolveu ser franca:
-Olha... Eu não... Não tô conseguindo pensar, eu nunca-
Mas o sujeito a interrompeu, apontando pra frente:
-Ó. Tá andando...
A Renata resolveu obedecer, foi guiando. Passou a José do Patrocínio, mas logo adiante, contíguo ao claustro das freiras carmelitas, o trânsito estava novamente parado.
O criminoso suspirou:
-Já te aconteceu?
-Não, nunca. - A Renata estava falando de ser raptada. Não sabia se era do que o assassino estava falando.
-Pois é... Nunca tinha acontecido comigo. E eu pensei muito antes de dizer "tu é o amor da minha vida". Só falei quando eu soube que era verdade...
Mas do que é que aquele marginal estava falando. Será que ele ia cometer suicídio e queria levar a Renata consigo? Era, não um criminoso de carreira, mas um assassino eventual, transformado em criminoso por causa de um coração partido e por não ter coragem de se matar sozinho ia fazer a Renata dirigir até a ponte do Guaíba, virar o carro pra mureta e pisar no pé dela em cima do acelerador gritando?
-Eu não sei... Talvez seja só neura minha... Eu devia deixar pra lá, mas... Sabe... Essa sensação de que... Alguém em quem tu depositou todos os teus sentimentos... Eu não sei como tu é, mas eu não sou dessas pessoas que se apaixonam loucamente toda a hora, então, talvez, todos os meus sentimentos sejam pouco. Uma coisa meio autista, sei lá... Tu é dessas pessoas que se apaixonam loucamente?
-Não... - A Renata não era assim, também. Não se apaixonava à toa. Estava curtindo uma relação meio sem futuro com Dagoberto, um saxofonista. Era brega, ela sabia. O cara tocava sax em shopping... Em clube noturno... Mas isso não era motivo pra um terrorista aparecer e explodir ela.
-E tu já disse que alguém era o amor da tua vida? - Ele perguntou.
-Não... - Assumiu Renata. Realmente jamais dissera. Meu Deus! Ia morrer sem ter tido o amor da sua vida! Ai que horror!
-Bom... Em algum momento tu... Olha... Tá andando.
Renata começou a sentir vontade de chorar, mas se conteve. Seguiu dirigindo, durinha, as duas mãos no volante, ultrapassou a Lima e Silva. Nova parada.
-Sabe... O pior é que eu realmente tô feliz por ela. Tô mesmo. Ela merece ficar com alguém que... Enfim... Mereça o amor e a dedicação dela. Merece, mesmo. Eu não sei de onde saiu essa amargura toda. Tu já teve isso? Estar bem mas não estar?
-Sim... - Confessou Renata. Naquele exato instante, inclusive. Estava fisicamente bem, mas psicologicamente em pandarecos. Estava sedo abduzida... Abduzida servia pra sequestro ou era só quando os alienígenas te levavam? Enfim, estava sendo sequestrada por um maníaco, um lunático, um louco perigoso e não sabia como tudo terminaria.
-Pois é... Eu... Eu volta e meia experimento isso. É um pé no saco. Eu tinha me conformado. Seguido em frente. Aceitado as coisas. Não sei porque eu voltei pro poço... Acho que foi a compreensão súbita de que era mentira. Eu não era o amor da vida dela. Mas ela foi o da minha. Isso que me quebrou... Ó! Andou.
O trânsito voltara a andar... A Renata seguiu o fluxo, passando a Sarmento Leite e quando cruzou a esquina o psicopata falou:
-Tu pode me deixar aqui na frente do Edel?
A Renata reduziu e parou em frente ao chafariz. O assassino tirou o cinto de segurança:
-Valeu, hein. Obrigado... Pela carona e pelo ouvido.
Abriu a porta e saltou.
Simples assim.
Saiu andando. Sem enfiar uma faca serrilhada nas entranhas da Renata. Sem abrir as calças e mostrar o tico. Sem puxar uma arma e exigir o celular e o dinheiro dela ou empurrá-la pra fora do carro e assumir o volante empreendendo fuga em alta velocidade pela cidade afora.
Só saiu.
Renata respirou fundo.
Começava a absorver tudo o que o sujeito falara. Compreender a situação toda. Ia travar as portas. Precisava perder a mania de andar com as portas destravadas. Quando a figura avantajada assomou novamente, enfiando a mão por dentro do casaco abriu a porta!
Ia encher ela de azeitona!
Era isso, né? Que os criminosos diziam quando iam crivar uma vítima de balas.
Mas o sujeito não sacou uma pistola prateada com cabo de madrepérola, mas sim uma carteira de couro preto:
-Eu te devo alguma coisa...? Dinheiro pra ajudar com a gasolina...? - Perguntou, incerto.
A Renata franziu o cenho:
-Não... Não precisa. Eu ia vir por aqui, mesmo. - Respondeu.
O ex-sequestrador deu uma piscadela e ergueu o polegar em sinal de positivo. Quando ia fechar a porta do carro, Renata o deteve:
-Espera...
Ele se inclinou de volta pra dentro.
-Talvez ela não tenha mentido. Talvez ela realmente achasse que tu era "o cara", na época... E só percebeu que não era depois. Talvez tu vá perceber a mesma coisa em algum momento, e nem por isso o que tu falou vá se tornar mentira... Entende?
O sujeito olhou pra ela brevemente com uma expressão indefinida. Então deu um sorriso pro lado:
-Faz sentido. Obrigado.
Fechou a porta do carro e foi embora.
Renata suspirou e travou as portas do carro. Se o Dagoberto ligasse ela não ia atender. Subitamente pareceu errado desperdiçar o tempo dele e o próprio em uma relação sem amor verdadeiro.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Quindim


E tem a história da Fátima e do Miguel.
A Fátima queria encontrar seu homem ideal.
O homem ideal, pra Fátima, era polido, educado, um autêntico cavalheiro. Se tinha coisa da qual a Fátima não abria mão, era educação. Era que abrissem a porta do carro pra mulher entrar, e oferecessem a mão para ajudá-la a sair.
Seu homem ideal era aquele tipo que deixa que ela passe na frente, sempre e se levanta quando ela sai da mesa... O homem ideal da Fátima jamais ergueria a voz, jamais diria uma grosseria, não riria gargalhando, e nem beberia água no gargalo.
A primeira coisa que ela ouviria dele todos os dias seria "bom dia" e a última "boa noite", e ele jamais a encontraria sem saudá-la.
A Fátima jamais veria seu home ideal cortando as unhas, nem das mãos, que diria-se dos pés. Mas ainda assim, as unhas dele estariam sempre limpas, bem aparadas e lixadas. Quiçá com uma demão de base incolor...? Não... Muito gay.
Os pelos... O homem ideal da Fátima seria depilado no peito, nas costas e nas axilas. Ele teria pelos nos antebraços e nas canelas, apenas. Talvez no púbis, mas teria que ser como a barba... Ele não teria barba, mas se resolvesse cultivar uma de maneira extravagante por algumas semanas, ela estaria sempre limpa e bem aparada.
O homem ideal da Fátima passaria óleos e hidratantes para que sua barba jamais a pinicasse de maneira desconfortável e abrasiva. Ele escovaria os dentes sete vezes por dia, mais, se comesse algo fora de hora, mas ele nunca comeria fora de hora... E seu hálito não teria cheiro de menta, que é artificialmente criado com pasta dental ou pastilhas, mas de baunilha, que é igualmente artificial, vá lá, mas ele saberia que ela prefere.
O homem ideal da Fátima usaria "com licença", "por favor" e "obrigado" em profusão, e teria uma condescendência paternal por quem achava que isso o fazia parecer efeminado.
Ele seria um amante gentil e abnegado, capaz de fazer horas de sexo oral se achasse que isso satisfaria a Fátima, e jamais faria grosserias como puxar-lhe o cabelo ou aplicar-lhe um tapa na bunda durante o coito.
Ele usaria essa palavra: Coito.
E não riria.
Ele também não faria nojeiras como ejacular em algum lugar inapropriado da Fátima. Como os seios, o rosto, ou as nádegas. Credo. Não.
O homem ideal da Fátima saberia que o sêmen tem só dois lugarzinhos, onde ele surge e pra onde tem que ir, e jamais o colocaria num outro lugar que não fossem aqueles.
Ele correria pra atender a todos os desejos dela, a valorizaria acima de qualquer outra coisa e moveria céus e terras pela felicidade dela, que não era mulher de exigir mimos, mas não se importaria de ser mimada por ele, que seria bonito, charmoso e bom pai, ainda por cima.
Claro... A Fátima não era burra. E sabia que a idealização não existia... Ela jamais encontraria esse homem exatamente como ela sonhava. Por isso estava disposta a abrir mão de um par de predicados da lista.
Só tinha que decidir quais.
E o Miguel?
O Miguel queria encontrar sua mulher ideal.
A mulher ideal, pro Miguel, era companheira, divertida e fiel. Se fosse gostosa, melhor. Podia curtir esportes e era importante, pro Miguel, que ela gostasse de quindim.
Mas não do quindim todo. Só da parte do coco queimado, embaixo, que ele não gostava. Sua mulher ideal gostaria do coco queimado, mas não gostaria do ovo. E eles dividiriam os quindins irmãmente, cada um ficando com a parte de que gostava mais.
Claro... O Miguel não era burro. E sabia que a idealização não existia... Ele jamais encontraria essa mulher exatamente como ele sonhava. Por isso estava disposto a abrir mão de um par de predicados da lista.
Sabia até qual.
Mas não era o lance do quindim.
Cada um a seu modo, a Fátima e o Miguel desejavam o impossível. E iriam morrer sozinhos.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

Dia do Sexo


Ele saiu do serviço ainda faltavam cinco minutos para o meio-dia. Andou a passos largos até a esquina da Fernando Machado com a André da Rocha e lá estava ela, radiante como o sol que voltava a aparecer em Porto Alegre após quase uma semana de folga.
Vestia calças jeans verde-musgo, uma blusa branca e um casaco de lã marrom, e, ao vê-lo, abriu um sorriso largo.
Ele andou até ela rindo e a abraçou apertado:
-Saudades, alemoa.
Ela correspondeu ao abraço e lhe estalou um beijo no rosto. Ele segurou a mão dela por alguns instantes e começaram a andar.
Ela fez cara de quem lembra:
-Ah! Tenho um presente pra ti!
Mexeu na bolsa e tirou um pequeno embrulho. Ele apanhou agradecendo e se pôs a abrir. Era um chaveiro do Homem-Aranha.
Era uma coisa recorrente na sua vida, ganhar coisas do Homem-Aranha, ela mesma já lhe dera memorabília com motivos do cabeça de teia.
Ele sorriu.
-Eu me lembrei que tu tava sem chaveiro num dos zíperes da tua mochila, e que tu tem do Batman, do Super-homem e do Capitão-América, mas nenhum do Homem-Aranha, que é teu preferido. - Ela explicou.
-Obrigado, gentil donzela. - Ele agradeceu fazendo um maneirismo. -Mas não precisava... Onde tu comprou isso?
-Na Nerdz. - Ela respondeu, enrolando a pronúncia para soar como "nãRdz".
-E o que tu foi fazer na Nerdz? - Ele perguntou, imitando a pronúncia dela.
-Te comprar isso, ué... - Ela respondeu com naturalidade.
Ele sentiu-se ruborizar. Não se sentia confortável recebendo presentes espontâneos. Ela percebeu e disse:
-Presente de dia do sexo.
Ele ruborizou mais. Tanto que ergueu os olhos do chaveiro e a encarou com a expressão retorcida de divertido choque e vergonha pura.
Ela riu tanto que ele começou a rir, também.
-Como assim? - Perguntou, sem entender.
-Dia do sexo... - Ela respondeu. -É hoje, seis de setembro.
Ele guardou o chaveiro no bolso e sorriu:
-Bom... Sexo é, mesmo uma dessas coisas que merecem uma efeméride...
-É... Depende... - Ela disse, fazendo uma careta.
-Depende? - Ele perguntou, surpreso.
-Claro que depende. Sexo, só sexo, qualquer sexo, não... Mas sexo bom, bem feito, aí beleza, merece data mundial, e tudo...
-Na verdade a de hoje é nacional, só, mas concordo contigo.
-Só nacional? - Ela perguntou desapontada.
-Sim. Só no brasil que seis de setembro é o dia do sexo... Provavelmente dos estados unidos é nove de junho, por causa da forma como eles leem as datas... - Ele riu.
-Por que nove de junho? Qual a relação? - Ela perguntou fazendo uma expressão confusa que lhe formava uma rugo bem pronunciada no cenho.
-Porque lá eles leem o mês antes do dia. então, seis de setembro, pra eles, é nove, seis e não seis nove. Seis nove seria nove de junho.
-Aaaaaaaaaaaaaaah... - Ela fez, dando-se conta da obviedade. -É por isso que é seis de setembro. Meia nove.
-Aaaaaaaah - Ele repetiu, caçoando e levando um soco no braço.
Andaram mais um pouco, alguns passos em silêncio.
-Eu não sei se gosto. - Ela disse, de repente.
-De quê? - Ele perguntou.
-Meia nove. - Ela respondeu com naturalidade.
-Hmmm... Tu não sabe se gosta... Tu já fez? - Ele argumentou.
-Não... - Ela confessou. -Tu já fez?
-Menos do que eu gostaria. Mas já. Já fiz.
-E tu gosta? - Ela perguntou.
-Bom... Tem coisas muito interessantes acontecendo no ato... Ao menos duas das quais eu acho que todo mundo gosta.
Ela riu:
-É mas... Sei lá...
-O que? - Ele quis saber.
-Deve ser difícil se concentrar... - Ela concluiu.
Ele sorriu sem dizer nada.
-Que foi? - Ela quis saber.
-Nada... - Ele respondeu nostálgico. -Só já... Já ouvi isso antes.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Resenha DVD: Vizinhos 2


Eu escrevi após assistir Vizinhos, dois anos atrás, que o filme era engraçado e que era "virtualmente impossível assistir um filme de uma hora e meia com Seth Rogen sem rir um pouco", ora veja... Nos últimos dois anos isso parece ter mudado.
Ontem aluguei esse Vizinhos 2, sequência do gigantesco sucesso de bilheteria de 2014 que com um orçamento de meros 18 milhões de dólares faturou mais de 270 milhões pelo mundo afora o que, claro, tornaria quase obrigatório que o longa tivesse uma sequência.
A sequência em questão é esse Vizinhos 2, que reúne praticamente toda a equipe do primeiro longa, do diretor Nicholas Stoller e os roteiristas Andrew Jay Cohen e Brendan O'Brien até praticamente todo o elenco.
No longa, Mac e Kelly Radner (novamente Seth Rogen e Rose Byrne) estão pensando em se mudar.
O casal está esperando uma irmãzinha para Stella (novamente as pitôcas Elize e Zoey Vargas) e planejam se mudar para uma casa maior nos subúrbios.
Mas não são apenas Mac e Kelly que têm mudanças em seu horizonte.
Enquanto a garotada da Delta Psy cresceu na vida, com Scoony (Christopher Mintz-Plasse), Garf (Jarrod Carmichael) e Pete (Dave Franco) crescendo profissional pessoalmente, Teddy Sanders (Zac Efron) continua trabalhando como modelo na frente da Abercrombie & Fitch sem nenhuma noção do que fazer de sua vida.
Quando ele descobre que Pete vai se casar com seu parceiro e o casal gostaria que ele se mudasse, seu mundo desmorona por completo.
Surge Shelby (Chloë Grace Moretz).
A garota é caloura na faculdade e anseia desesperadamente por novas amizades, experimentação e tudo mais. É, então, com desgosto que ela descobre que as fraternidades femininas não podem organizar eventos, sendo restritas às festas das fraternidades masculinas, todas praticamente abatedouros de jovens bêbadas.
É quando Shelby e suas amigas Beth (Kiersey Clemons) e Nora (Beanie Feldstein) têm a ideia de criar sua própria fraternidade independente, fora do campus da universidade, e fazer festas de meninas para meninas.
Quando Mac e Kelly finalmente vendem a casa e se preparam, satisfeitos, para os trinta dias de caução, o impensável acontece:
As Kappa Nu de Shelby e companhia resolvem alugar a casa ao lado para a sede da sua fraternidade.
O pior de tudo?
Elas têm um consultor extremamente experiente no assunto as ensinando tudo a respeito de como gerir uma fraternidade e pregar as peças mais doentias nos vizinhos:
Teddy.
A questão é que Teddy é um estranho no ninho tão evidente quanto os Radner para as meninas da Kappa Nu, e não tarda para que ele esteja juntando forças com seus antigos inimigos para ajudá-los a acabar com a fraternidade e garantir que o casal consiga se mudar sem o perigo da falência sobre suas cabeças.
Conforme eu disse:
Não é engraçado.
Apesar de manter algumas das melhores características, como a bo química entre Rogen e Rose Byrne e abusar da piada de gostosão burro com Efron, Vizinhos 2 é tão incoerente que torna simplesmente impossível rir.
Ou um filme é politicamente incorreto, ou não é. Não se pode ter ambos.
Infelizmente Vizinhos 2 parece não entender isso, e gasta quase metade de sua projeção estabelecendo a fundação das Kappa Nu como a única alternativa para umas gurias legais poderem fazer suas festas sem o constante assédio dos apedeutas das "frats".
Logo, as meninas são legais e querem dar festas de jeans e moletom, bebendo cerveja e assistindo A Culpa é das Estrelas comendo sorvete sem nenhum otário querendo comer elas.
OK, isso até, subitamente, Shelby ir de guria descolada e divertida à patricinha malvada e declarar guerra aos vizinhos por que... Por que... Porque o roteiro precisa, oras.
Essa necessidade de ser politicamente correto para com feministas e gays vai totalmente na contramão das piadas com absorventes usados, racismo, pirocas de fora e bebês brincando com vibradores.
Essa bipolaridade aliada à edição confusa e ao roteiro desconexo escrito por CINCO roteiristas (além de Cohen e O'Brien do original, Seth Rogen e seu colaborador Evan Goldberg e mais o diretor Nicholas Stoller meteram a mão no script) colaboram para tornar Vizinhos 2 não apenas um filme ruim, mas uma comédia preguiçosa, chata e, o pior de tudo, sem risos.
Assista apenas se a alternativa for ter vidro moído colocado entre os olhos e as pálpebras, outrossim, poupe-se de desperdiçar 92 minutos de sua vida.

"-A verdade é que aquelas garotas são adoráveis.
-É, garotas super legais.
-Bem, não não achamos que sejam porque literalmente as vimos roubando a sua casa. "