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sábado, 10 de setembro de 2016

A Carona


Quinta-Feira, sete e meia, quinze pras oito da manhã.
A Renata parou o carro no sinal e começou a mexer no celular. Estava na perimetral, mais ou menos próxima à José do Patrocínio, no horário do pico matinal. Sabia que levaria alguns minutos pra voltar a se mover, e foi conferir os e-mails.
Mal tinha aberto a tela de e-mail, lenta pela falta de um wi-fi confiável, quando a porta do carro se abriu.
Assomou a figura avantajada de um homem dos seus trinta e poucos, barbudo, cabelos desalinhados, expressão indefinida no rosto, que foi sentando no banco do carona.
A Renata ficou uma fração de segundo pensando no que é que estava acontecendo. Era assalto. Certo que era assalto. O sujeito queria o carro.
Não.
Naquele trânsito ele ia levar o carro de que jeito?
Era um ladrão que ia querer o dinheiro dela. Ia limpar a Renata... Mas a Renata só tinha vinte e dois reais na carteira. Vinte e dois reais e umas moedinhas.
Será que isso bastaria?
Dava pra comprar uma quantidade razoável de crack com vinte e dois reais ou ele ia ficar possesso e matar ela?
Ia querer o celular. Mas ainda faltavam duas parcelas pra terminar de pagar...
Mas se ela estivesse morta, também, que diferença faria?
Será que cobrariam as duas parcelas pendentes da mãe dela?
Que horror... Francamente, Casas Bahia... Não esperava isso...
Mas espera... Ela estava se desviando do assunto.
O que o meliante que acabara de entrar no carro queria.
Será que era um estuprador em série?
A Renata era bonita. Achava que podia emagrecer dois quilos, mas era bonita.
Um estuprador em série parecia um perigo palpável. O que ela devia fazer?
Aproveitar que ele ainda não sacara a arma e fazer um sinal de socorro pro cara no carro ao lado?
O idiota estava conversando animadamente no celular pelo viva-voz... Isso não era infração igual usar o telefone junto à orelha?
Ai, meu Deus! O homem se ajeitou sentado, trazendo uma mochila no colo!
É uma bomba!
É um terrorista!
Um talibã do Estado Islâmico!
-Oi, me dá uma carona até a João Pessoa? - Ele perguntou.
A Renata não entendeu.
-Não entendi... - Assumiu.
-Tu vai entrar antes? - Ele perguntou. Parecia calmo.
-Entrar onde?
-Na José ou na Lima?
A Renata não ia entrar... Ia seguir até a Osvaldo Aranha.
-Não... Eu entro na Osvaldo...
-Ah, que bom. Obrigado. - Agradeceu ele, se ajeitando no assento.
A Renata não entendeu. Estava tensa. As mãos crispadas no volante olhando pra frente evitando olhar para seu captor.
O que faria? O que faria? Tinha seu celular ainda na mão. Podia discar nove, um, um e pedir socorro... Não... Não era nove, um, um... Nove, um, um era no programa do cara do Carro Comando... Era um, nove, zero que se ligava no Brasil.
Olhou de esguelha para o tarado... Ele olhava pra frente com cara de pensativo. Olhou pra ela, que olhou pra frente de novo, rápida.
Ele tomou fôlego:
-Deixa eu te perguntar uma coisa...
Ele não estava pedindo licença. Ia perguntar de qualquer jeito. Renata crispou as mãos no volante.
O assassino continuou:
-É leviandade? Dizer pra mais de uma pessoa que ela é o amor da tua vida?
-Quê? - A Renata não esperava aquela. Nem entendeu, na verdade.
-Eu queria saber o que tu acha... Se tu não acha que dizer pra mais de uma pessoa que ela é o amor da tua vida é meio leviano... Meio hipócrita... Quantos amores da vida uma pessoa pode ter? Não era pra ser um só? - Conjecturou o larápio.
-Olha... - A Renata realmente não se sentia em posição de responder aquela pergunta sob a mira de uma arma.
Não que o sujeito estivesse lhe apontando uma arma. Mas havia uma arma metafísica ali, a Renata tinha certeza.
-Não, não... Porque... Sabe... Eu acho que a gente só tem um amor da vida. Por isso a gente diz "o amor da minha vida", e não "um amor da minha vida". - Continuou o bandido.
-Hã... - A Renata não estava conseguindo concatenar nada. O pior é que o craqueiro não parava de falar:
-Ou eu tô louco? Tô exigindo demais das pessoas? Tô fazendo demandas impossíveis ao cobrar um mínimo de coerência, ao menos no discurso?
A Renata jamais havia sido vítima de um crime. Não conseguia se concentrar no que o sequestrador dizia. Resolveu ser franca:
-Olha... Eu não... Não tô conseguindo pensar, eu nunca-
Mas o sujeito a interrompeu, apontando pra frente:
-Ó. Tá andando...
A Renata resolveu obedecer, foi guiando. Passou a José do Patrocínio, mas logo adiante, contíguo ao claustro das freiras carmelitas, o trânsito estava novamente parado.
O criminoso suspirou:
-Já te aconteceu?
-Não, nunca. - A Renata estava falando de ser raptada. Não sabia se era do que o assassino estava falando.
-Pois é... Nunca tinha acontecido comigo. E eu pensei muito antes de dizer "tu é o amor da minha vida". Só falei quando eu soube que era verdade...
Mas do que é que aquele marginal estava falando. Será que ele ia cometer suicídio e queria levar a Renata consigo? Era, não um criminoso de carreira, mas um assassino eventual, transformado em criminoso por causa de um coração partido e por não ter coragem de se matar sozinho ia fazer a Renata dirigir até a ponte do Guaíba, virar o carro pra mureta e pisar no pé dela em cima do acelerador gritando?
-Eu não sei... Talvez seja só neura minha... Eu devia deixar pra lá, mas... Sabe... Essa sensação de que... Alguém em quem tu depositou todos os teus sentimentos... Eu não sei como tu é, mas eu não sou dessas pessoas que se apaixonam loucamente toda a hora, então, talvez, todos os meus sentimentos sejam pouco. Uma coisa meio autista, sei lá... Tu é dessas pessoas que se apaixonam loucamente?
-Não... - A Renata não era assim, também. Não se apaixonava à toa. Estava curtindo uma relação meio sem futuro com Dagoberto, um saxofonista. Era brega, ela sabia. O cara tocava sax em shopping... Em clube noturno... Mas isso não era motivo pra um terrorista aparecer e explodir ela.
-E tu já disse que alguém era o amor da tua vida? - Ele perguntou.
-Não... - Assumiu Renata. Realmente jamais dissera. Meu Deus! Ia morrer sem ter tido o amor da sua vida! Ai que horror!
-Bom... Em algum momento tu... Olha... Tá andando.
Renata começou a sentir vontade de chorar, mas se conteve. Seguiu dirigindo, durinha, as duas mãos no volante, ultrapassou a Lima e Silva. Nova parada.
-Sabe... O pior é que eu realmente tô feliz por ela. Tô mesmo. Ela merece ficar com alguém que... Enfim... Mereça o amor e a dedicação dela. Merece, mesmo. Eu não sei de onde saiu essa amargura toda. Tu já teve isso? Estar bem mas não estar?
-Sim... - Confessou Renata. Naquele exato instante, inclusive. Estava fisicamente bem, mas psicologicamente em pandarecos. Estava sedo abduzida... Abduzida servia pra sequestro ou era só quando os alienígenas te levavam? Enfim, estava sendo sequestrada por um maníaco, um lunático, um louco perigoso e não sabia como tudo terminaria.
-Pois é... Eu... Eu volta e meia experimento isso. É um pé no saco. Eu tinha me conformado. Seguido em frente. Aceitado as coisas. Não sei porque eu voltei pro poço... Acho que foi a compreensão súbita de que era mentira. Eu não era o amor da vida dela. Mas ela foi o da minha. Isso que me quebrou... Ó! Andou.
O trânsito voltara a andar... A Renata seguiu o fluxo, passando a Sarmento Leite e quando cruzou a esquina o psicopata falou:
-Tu pode me deixar aqui na frente do Edel?
A Renata reduziu e parou em frente ao chafariz. O assassino tirou o cinto de segurança:
-Valeu, hein. Obrigado... Pela carona e pelo ouvido.
Abriu a porta e saltou.
Simples assim.
Saiu andando. Sem enfiar uma faca serrilhada nas entranhas da Renata. Sem abrir as calças e mostrar o tico. Sem puxar uma arma e exigir o celular e o dinheiro dela ou empurrá-la pra fora do carro e assumir o volante empreendendo fuga em alta velocidade pela cidade afora.
Só saiu.
Renata respirou fundo.
Começava a absorver tudo o que o sujeito falara. Compreender a situação toda. Ia travar as portas. Precisava perder a mania de andar com as portas destravadas. Quando a figura avantajada assomou novamente, enfiando a mão por dentro do casaco abriu a porta!
Ia encher ela de azeitona!
Era isso, né? Que os criminosos diziam quando iam crivar uma vítima de balas.
Mas o sujeito não sacou uma pistola prateada com cabo de madrepérola, mas sim uma carteira de couro preto:
-Eu te devo alguma coisa...? Dinheiro pra ajudar com a gasolina...? - Perguntou, incerto.
A Renata franziu o cenho:
-Não... Não precisa. Eu ia vir por aqui, mesmo. - Respondeu.
O ex-sequestrador deu uma piscadela e ergueu o polegar em sinal de positivo. Quando ia fechar a porta do carro, Renata o deteve:
-Espera...
Ele se inclinou de volta pra dentro.
-Talvez ela não tenha mentido. Talvez ela realmente achasse que tu era "o cara", na época... E só percebeu que não era depois. Talvez tu vá perceber a mesma coisa em algum momento, e nem por isso o que tu falou vá se tornar mentira... Entende?
O sujeito olhou pra ela brevemente com uma expressão indefinida. Então deu um sorriso pro lado:
-Faz sentido. Obrigado.
Fechou a porta do carro e foi embora.
Renata suspirou e travou as portas do carro. Se o Dagoberto ligasse ela não ia atender. Subitamente pareceu errado desperdiçar o tempo dele e o próprio em uma relação sem amor verdadeiro.

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