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quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Ciência


-Meu amor por ti - Ele disse, sem hesitar, ostentando a galhardia dos grandes bardos -É tipo a força do Hulk. Não tem limite.
Uma mulher comum teria achado risível, no mau sentido. Uma mulher comum poderia até sentir-se ofendida.
Mas ela não era uma mulher comum. Ela era especial. Ela é A Guria. Assim, com tudo no maiúsculo, e entre todo os predicados que a tornavam A Guria, estava uma conexão tão ímpar que chegava a ser risível, no bom sentido, tamanha a afinidade que partilhavam.
E ela riu, não de desconforto ou por ter tomado a declaração como se fora galhofa.
Não.
Riu um riso gostoso de quem entende e sabe quantificar.
Uma risada que iluminava o rosto delicado dela e iluminava as noites dele.
-Eu te amo, tonto. - Disse, na esteira da risada.
"Tonto", ele pensou. Usado como usavam os dubladores do Chaves.
Ninguém usava "tonto" como ela usava.
Ninguém jamais o chamara de tonto.
Ele não sabia que reação teria se fosse chamado assim por outrem, mas por ela... Por ela aquecia-lhe o peito. Fazia-o desejar abraçá-la. Beijá-la. Tê-la no colo para mimar e acalentar e dizer eu te amo por vezes sem conta...
Porque era verdade o que dissera.
O amor que sentia por ela era como a força do Hulk. Era como o universo. Era como a misericórdia e a ira do Deus cristão (vá entender...). Absolutamente infinito. Toda a vez que ele supunha ter encontrado um limite, ela o surpreendia com alguma coisa que o fazia rever seus conceitos. O que ele sentia por ela não era estático como uma escritura imutável e entalhado na pedra, era dinâmico feito ciência... Era livro didático, sempre prestes a ser revisto e ampliado.
Pensou em dizer isso. Chegou a tomar fôlego, mas deteve-se.
Não por ter percebido de antemão a pieguice da própria declaração, ou por ter dado-se conta de quão simplório era o símile, mas por ter dado-se conta que o limite geográfico estava ali. Entre os dois.
A distância que não podiam vencer.
Ainda.
Furtou-se de fazer sua declaração, mas não desistiu dela. A diria em outra ocasião.
Quando a tivesse nos braços, e pudesse dar seguimento à ela com uma demonstração.
Como pede o empirismo científico.

Resenha Série: O Justiceiro, temporada 2, episódio 4: Scar Tissue


No primeiro episódio sem uma grande cena de ação dessa segunda temporada, O Justiceiro empurrou seu protagonista pro banco do carona conforme Frank e "Rachel" chegaram a Nova York para se abrigar no apartamento de Madani, e centrar sua atenção no antagonista:
Billy Russo ganhou a ribalta ao longo de toda a duração de Scar Tissue e, deixe-me tirar logo isso do caminho, há muito pouco tecido cicatricial no personagem se considerarmos tanto o visual de Retalho nos quadrinhos quanto o de Dominic West no papel na adaptação de 2008. Chega a ser risível quando as pessoas reagem a Billy se ele fosse uma aberração ou dizem que ele "não é mais tão bonito".
Mano... Ainda é a cara do príncipe Dastan, só com umas cicatrizes espalhadas aqui e ali. Há mulheres que provavelmente o achariam mais bonito com as cicatrizes... Mas enfim, não vem ao caso.
Fica claro que o rosto desfigurado é menos importante para essa versão do personagem do que uma psique fragmentada. Desde a primeira temporada nós sabíamos que Billy era um sobrevivente, um sujeito que comeu o pão que o diabo amassou em uma infância desgraçada marcada pelo abandono e parcialmente passada num orfanato onde precisou aprender a se defender de abusos por ser um menino bonito, até finalmente se unir aos fuzileiros e encontrar propósito e irmandade.
Billy não é um mafioso histriônico com uma cara medonha, mas uma pessoa com um passado conturbado o suficiente para garantir que nós sejamos capazes de simpatizar com ele à revelia das coisas horríveis que ele tenha cometido e porventura volte a cometer.
Palmas para o showrunner Steve Lightfoot e a equipe de roteiristas que resolveram manter essa abordagem mais ambígua para Billy, e para Ben Barnes que come suas cenas com gosto retratando Billy como se fosse uma fera acuada, tão digno de pena quanto de temor, um retrato que coloca Frank e Madani em posições muito delicadas.
Madani por estar completamente errada (novidade...) em sua visão de Russo, a quem considera um sociopata frio e calculista fingindo uma doença apenas esperando o momento de atacar quando todas as evidências às quais nós, da audiência, temos acesso mostram que não é o caso; Frank por ter, em sua ânsia de punir Russo por suas transgressões, tornado-o alheio a elas. Mais do que isso, Frank armou uma bomba relógio em potencial, já que Billy pode recuperar a memória e começar a se vingar de todos aqueles que cruzaram seu caminho no passado conforme Curtis (Jason R. Moore, retornando) assinala em um lembrete ao Justiceiro de que não é saudável tomar meias medidas.
Em meio a todos os desdobramentos da fuga de Billy do hospital, ainda houve tempo para termos mais de uma interação do sargento Mahoney com Madani, deixando bem claro que ela não podia mais estar na rua, seja porque seus instintos são todos errados, seja porque ela simplesmente é uma agente da lei incompetente, Billy revisitando partes sombrias de seu passado, e, finalmente, "Rachel" tirando um dos pés da posição de segunda personagem mais irritante da série.
A cena onde a pentelha se esconde embaixo da cama para dormir foi uma bem-vinda demonstração de fragilidade. Além disso, tivemos um vislumbre do momento em que seu passado se cruzou com o de John Pilgrim pela primeira vez, e descobrimos que o nome dela é Amy, afinal de contas.
Claro, isso ainda é pouco para justificar a presença da personagem na série. Até o momento ela é pouco mais que um recurso narrativo, uma razão para Frank voltar a se embrenhar no mundo do vigilantismo, vamos ver como isso se paga quando o culto de John Pilgrim voltar à linha de frente.
Scar Tissue só não é um episódio melhor por conta da falta de uma boa sequência de ação como as que tivemos nos capítulos anteriores, mas o desenvolvimento dos personagens ajudou a manter as coisas equilibradas.
À essa altura do campeonato nós podemos ver que as coisas parecem estabelecidas para garantir que a tensão entre Frank e Billy vá aumentando paulatinamente enquanto o Justiceiro precisa lidar com os perseguidores de Amy, se mantiver a boa média de seus episódios e conseguir fazer por Amy e John Pilgrim metade do que fez com Billy, a temporada tem tudo para manter a posição de destaque de Justiceiro nesse universo.

"Ás vezes, garota, você tem que lutar."

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Tudo


Ela, com as pernas no colo dele, que tinha a mão direita no joelho esquerdo dela, e a mão esquerda na coxa direita dela, os dois aninhados um no outro no sofá da sala escura, iluminada apenas pela tela da TV, ligada em um noticiário noturno qualquer. Ele estava em silêncio. Um meio sorriso estampado na cara barbada. Olhava o televisor sem absorver nada do que os âncoras, repórteres e comentaristas falavam. Estava inebriado pelo cheiro que se desprendia dela. O cheiro doce que aprendera a amar.
Foi ela quem quebrou o silêncio:
-Como vão ser as coisas, agora? - Perguntou erguendo os olhos, que, pareceu-lhe quando a encarou, estavam fechados há algum tempo.
Ele olhou pra ela com um sorriso de quem não entendeu exatamente, mas estava feliz demais pra perguntar "o quê?".
Ela sorriu e disse:
-As coisa tudo... Que tu tá acostumado. As tuas coisas... A gente vai ter que dividir. Tu tá preparado pra dividir tudo?
-Contigo? - Ele perguntou numa bravata. -Tu realmente tem alguma dúvida?
Ela sorriu e encostou o queixo no peito dele para encará-lo, envolvendo-lhe as costelas com os braços tanto quanto conseguia.
-A preferência pra jogar com o controle vermelho...?
Antes que ele pudesse responder ela completou, rápida:
-Com as mãos limpas!
-É tua. - Ele respondeu, sorrindo.
-A última lata de Coca-Cola de baunilha da geladeira...? - Ela desafiou.
-É tua. - Ele respondeu, fazendo uma careta de sofrimento, mas sorrindo em seguida.
-O último salgado de presunto com palmito do Armelin na bandeja...? - Ela quis saber, chegando a se inclinar pra frente.
-É teu. - Ele respondeu, sem pestanejar.
-O último Alpino da caixa de especialidades Nestlé...? - Ela inquiriu.
-É teu. - Ele retorquiu, beijando-a na ponta do nariz.
Ela pareceu satisfeita, aninhou-se nele de novo.
Mentalmente, ele continuou:
Minha cama... Minha casa... Meus sorriso... Meus pensamentos... Meu tesão... Meu presente... Meu futuro... Minha vida... Meu amor... Minha saudade... Minhas catarses e minhas epifanias...
Tudo teu.



Resenha Série: O Justiceiro, temporada 2, episódio 3: Trouble the Water


Atenção! Spoilers leves abaixo:
O terceiro episódio da segunda temporada de O Justiceiro tem a maior cara de Assalto à 13º D.P., com Frank e "Rachel" presos após o tiroteio no motel no final de Fight or Flight, os assassinos no encalço da pentelha sabem exatamente onde encontrar os dois, e é apenas questão de tempo até que o escritório do xerife de Larkville seja o alvo primário de John Pilgrim e seus comparsas.
John Pilgrim, por sinal, finalmente ganha alguma profundidade. Na abertura do episódio temos um vislumbre do culto religioso ao qual ele serve, encabeçado por um casal de coroas simpáticos (Annette O'Toole e Corbin Bernsen) que o colocam na estrada com sua missão, assim como de uma esposa sofrendo de uma doença grave, dois filhos e um passado envolvido com supremacia branca, considerando-se o formato das tatuagens que ele apagou de seu corpo. Ainda há que se descobrir como John Pilgrim foi de nacionalista racista escroto a matador de um culto religioso, mas esse primeiro mergulho no personagem começa a mostrá-lo como um sujeito metódico e deliberado, todo frieza e eficiência, o que promete ser um contraponto maneiro para Frank Castle, que em diversas ocasiões é inteiro ódio e brutalidade.
Falando em ódio e brutalidade, Billy Russo deu sua demonstração de ambos numa boa sequência que culminou com sua fuga do hospital onde estava internado.
Billy continua sendo um personagem ambíguo nesse momento da série. Não sabemos quanto dos problemas do personagem são verdadeiros à essa altura, quão amnésico ele realmente está, quanto de seus pesadelos são pesadelos e quanto disso pode ser tanto fingimento quanto alguma espécie de indução criada pela doutora Dumont. A personagem segue sendo flagrantemente mal-intencionada e é difícil não ter certeza absoluta de que ela está envolvida de forma escusa na situação de Billy até o momento. Será uma reviravolta se ela se provar apenas uma médica dedicada que escolheu a terapia errada para o paciente errado no final das contas.
O episódio se equilibra bem em seus frontes oferecendo até um momento para "Rachel" (que descobrimos ter meias dúzia de nomes falsos...) mostrar que não é um ser humanos total e absolutamente desprezível, e culmina, novamente, em uma grande sequência de ação quando o xerife e os delegados de Larkville se vêem até o pescoço de capangas obstinados em matar Frank e Rachel nem que precisem exterminar todos os policiais do condado no processo. A violência do ataque de Pilgrim e seus homens é tanta que xerife Harding (Tom Holt) não tem alternativa, senão confiar em seu mais ilustre prisioneiro e deixar que Frank tome parte na defesa da delegacia num movimento desesperado que culmina em mais uma demonstração de como Frank Castle é perigoso, seja usando equipamento de ponta, seja carregando apenas um rifle semi-automático.
Pra fechar a coisa toda, ainda tivemos Madani descobrindo a fuga de Billy, uma ponta do sargento Mahoney (Royce Johnson), o maior especialista em super-heróis da polícia de Nova York da Netflix (lamento, Misty Knight), e os pontos mais afastados da trama até o momento finalmente convergindo.
Em apenas três episódios a segunda temporada de O Justiceiro já teve mais ação e pancadaria do que toda a primeira, sim, a química de Bernthal e Moss-Bachrach faz falta à série e Madani me incomoda sempre que aparece em cena (em grande parte pelo desserviço que o roteiro prestou à personagem na primeira temporada), mas até aqui o andamento da série é sólido e competente. Vários personagens precisam de aprofundamento, e a organização à qual Pilgrim serve precisa ser explicada, mas com dez episódios pela frente há tempo para fazê-lo e fazê-lo direito, vamos esperar que aconteça, a amostragem até aqui mantém O Justiceiro como a melhor série do moribundo universo Marvel/Netflix, ligeiramente atrás de Demolidor.

"-Já viu o faroeste em que o cara chega a cidade e ele é a morte, o diabo ou algo assim?"

terça-feira, 29 de janeiro de 2019

Última a Morrer


Sentado na sua mesa, trabalhando. Notas fiscais indo para o estoque após conferência de material.
Tudo muito chato. Realizado quase em modo piloto-automático. Aqueles momentos onde a mente está operando em modo de baixo consumo de energia.
Item após item...
Da folha de papel para a tabela de Excel... De novo e de novo.
Quase que anestesiado pela monotonia.
Foi memória olfativa que o despertou do torpor.
Um cheiro doce, agradável quase cruzando a fronteira do enjoativo alcançou-lhe as narinas.
A associação foi imediata. Do nariz para o sistema límbico... Do córtex olfativo pro hipocampo. Sem intermediários.
Aquele cheiro era o cheiro dela...
Cheiro de bala... De baunilha... De doce...
Aromas que ele aprendera a associar com ela, e que ao associar com ela, se tornaram sinônimo de felicidade e completude.
"É tu?" Ele se perguntou, erguendo os olhos da folha de papel diante de si e encarando a porta do escritório como o cachorro que farejou o esquilo.
Por uma fração de segundo nutriu a esperança de vê-la surgir na porta, meio corpo oculto atrás do batente, inclinando a cabeça para o lado com um sorriso.
Mas ela não apareceu.
Ele se levantou, chaves em punho, cruzou o escritório chegando à porta, abriu e andou célere pelo corredor até alcançar a rua.
Olhou para a direita e para a esquerda.
Não havia nem sinal dela. Resignado, suspirou e retornou para o escritório, a escrivaninha e a tarefa.
Retomou tudo e lentamente voltou ao seu torpor semi-automático.
Continuaria assim, até sentir um cheiro gostoso de novo.
Quando sentisse, seria tomado de esperança e repetiria o processo.
A esperança, afinal, era a última a morrer.

Resenha Série: O Justiceiro, temporada 2, episódio 2: Fight or Flight


Justiceiro começou lenta, mas meteu o pé com força no acelerador no seu terço final. O segundo episódio, Fight or Flight segue mais ou menos pelo mesmo caminho, mas é menos lento em seu período de preparação.
Após o tiroteio do primeiro capítulo, Frank e sua protegida dirigem a noite toda para acabar em um motel de beira de estrada esperando pela chegada do inimigo.
Há que se louvar o fato de que, nessa segunda temporada, a série pareça mais disposta a manter uma sequência de ação na manga para cada episódio (foram apenas dois, eu sei, mas Demolidor fez isso em seu terceiro ano e o resultado foi espetaculoso). Se é bom ver o pau (e as balas, e as facas) cantar em um programa baseado em quadrinhos, também é importante ressaltar que, até aqui, os vilões da história são pouco mais do que bucha de canhão.
Não temos nem a mais remota ideia de quem são esses capangas todos e nem por que eles querem a cabeça de Amy, que na verdade diz se chamar Rachel. Rachel, aliás, é um dos elos mais fracos desse começo de série. Por mais que sejamos capazes de entender por que Frank a protege (ela representa os meios para um fim, Frank protegeria qualquer pessoa para ter uma desculpa para voltar ao vigilantismo) é simplesmente impossível criar qualquer empatia com a pentelha antipática, petulante e irritante que tem como primeiro reflexo mentir a respeito de tudo e eu me flagrei desejando, no final do episódio, que a bandidagem sucedesse em seu intento. É muito bom que, no futuro imediato, a série dê um jeito de tornar Rachel menos insuportável, seja lhe dando um background e explicando suas motivações, seja apenas atenuando a ranhetice de adolescente que pesa sobre a personagem.
Ao menos nem tudo que envolveu Rachel foi totalmente chato, houve uma sequência engraçada onde ela precisou extrair uma bala da bunda de Frank, e toda a sequência de ação no motel, com o Justiceiro usando estratégia e esperteza para equilibrar suas chances estando em flagrante desvantagem numérica foi um ponto bem alto do episódio.
Houve, também, mais espaço para Billy Russo e Madani. A agente do FBI está totalmente obcecada com Russo, a quem faz desagradáveis visitas diárias. Madani não acredita que os problemas neurológicos de Billy sejam reais, e mantém vigilância total sobre o ex-fuzileiro. Madani segue sendo uma personagem muito chata, mas ao menos ganhou função narrativa (ainda que meio esfarrapada), juntar as linhas narrativas de Frank e de Billy.
Russo, por sua vez, se mantém ambíguo.
É difícil saber se ele realmente está sofrendo com perda de memória ou se está fingindo, mas cabe dizer que, para alguém que está impossibilitado de usar a cara para atuar, Ben Barnes faz um ótimo trabalho apenas com voz e gestual para compôr esse novo e atormentado momento de Russo mantendo a ambiguidade que moldou o personagem na temporada anterior.
Falando em ambiguidade, a psiquiatra de Russo, Krista Dumont (Floriana Lima), não tem nenhuma. Ela é tão obviamente mal-intencionada que é a responsável pelo surgimento do termo "quebra-cabeça" (Jigsaw, nome do vilão em inglês, significa "quebra-cabeça", e não "Retalho", como foi traduzido), e encoraja Billy a deixar o monstro sair da jaula... A exemplo de Rachel e do vilão vivido por Josh Stewart, a doutora Dumont também poderia se valer de mais profundidade. Esperemos que seja entregue...
O segundo capítulo de Justiceiro foi mais curto que o anterior em termos de história na ponta narrativa de Frank, mas compensou isso com uma boa dose de ação na sequência do motel e com um olhar um pouco mais alongado sobre Billy Russo. Os novos personagens realmente precisam ser melhor trabalhados, há tempo para isso com treze capítulos na temporada e antes seria melhor do que depois, especialmente para Rachel, a insuportável sidekick de Frank que, até o momento, não justifica a trabalheira do vigilante para protegê-la.

"-Isso é normal pra você? Ser baleado?
-Não na bunda. Essa é a primeira vez."

Resenha Série: O Justiceiro, temporada 2, episódio 1: Roadhouse Blues


É difícil pra mim, enquanto fã de quadrinhos e de boas adaptações de quadrinhos não dar uma brochada com o fim do MCU da Netflix. Não que todas as séries fossem um primor, longe disso. Se analisarmos friamente (despidos de quaisquer arroubos ideológicos), as únicas séries realmente excelentes da iniciativa foram Demolidor e Justiceiro. Luke Cage teve uma boa primeira temporada e deu uma escorregada na segunda, Jessica Jones fez o caminho inverso, primeira temporada muito aborrecida, eventualmente salva por Kilgrave, e segunda temporada boa, mesmo caminho seguido por Punho de Ferro, e a união dos heróis em Os Defensores foi um tanto quanto decepcionante, apesar de alguns bons momentos.
Seja como for, quem assiste a segunda temporada de Justiceiro sabe que, quase certamente, está vendo a última temporada do programa, assim como quem for corajoso o suficiente para ver a terceira temporada de Jessica Jones, agendada para Março, terá a mesma certeza.
Esse universo compartilhado acabou e nós estamos perdendo, no mínimo, duas séries excepcionais.
Talvez por essa tristeza da morte anunciada eu tenha demorado tanto para começar a ver a segunda temporada de Justiceiro, que está disponível na Netflix desde 18 de janeiro e eu só me cocei pra começar a ver no último sábado.
A segunda temporada começa com um Justiceiro que os fãs de quadrinhos jamais viram:
Um Justiceiro que encontrou um final feliz.
A encarnação adaptada da Netflix de Frank Castle não moveu uma guerra pessoal contra todo e qualquer crime. Ele sabia quem eram seus alvos e por mais extensa que fosse sua missão, ela terminou com os objetivos cumpridos. Os militares que mataram Maria e as crianças foram devidamente punidos, e Frank Castle acabou a primeira temporada claramente estendendo as mãos para obter seu quinhão de paz após o fim de sua guerra de um homem só.
Quando o reencontramos nesse episódio, Frank (o excelente Jon Bernthal) está evando uma vida tão normal quanto possível. Ele é um andarilho que deixou Nova York para trás e viaja pelas cidades pequenas dos EUA vivendo um dia de cada vez.
Ouvindo uma banda country em um bar de beira de estrada, Frank encontra um par romântico, a mãe solteira Beth (a bonitona Alexa Davalos) e nos mostra que Frank Castle é mais do que rosnados, gritos e punição, com uma bela coleção de cenas que mostram um lado mais gentil e empático do carrasco com a caveira no peito.
Mas Roadhouse Blues não é apenas um passeio pela faceta mais amigável de Frank. A despeito de dois atos bastante deliberados em seu andamento, aproveitando todo o tempo do mundo para nos mostrar quem Frank pode ser, não tarda para que o caminho do ex-fuzileiro se cruze com o de Amy (Giorgia Whingham), uma menina que se envolveu com os tipos errados e se torna alvo de uma tentativa de assassinato.
Se Frank Castle precisava de uma desculpa para deixar o Justiceiro voltar à cena, ele consegue.
E, por mais que não haja em Justiceiro (pra ser franco, em nenhuma outra série...) nada que se perfile ao espetáculo de combates mano a mano de Demolidor, é impossível negar que as sequências de pancadaria em curtíssima distância dentro do banheiro do bar são empolgantes como poucas coisas na primeira temporada haviam sido, e ajudam a equilibrar as coisas com o início arrastado.
Entrementes ainda houve espaço para revermos Billy Russo (Ben Barnes) e Dinah Madani (Amber Rose Revah), e se eu entendo perfeitamente que o Retalho precisasse retornar, eu não consigo entender a volta da agente do FBI. A personagem foi a parte abaloada da narrativa da série na primeira temporada, se a primeira temporada de Justiceiro tivesse sido exatamente igual, mas sem Madani, a série provavelmente teria sido um pouco mais curta e muito melhor. Resta torcer para que ela tenha uma função nesse segundo ano, nem que seja ser assassinada ali pelo sétimo episódio.
Não há necessidade de apontar que o primeiro episódio da segunda temporada de Justiceiro teve um ritmo lento. Esse, afinal, parece ser o padrão das séries Marvel/Netflix, e já vimos isso dar muito errado (Punho de Ferro... Jessica Jones...), mas também vimos dar muito certo (Demolidor, Justiceiro...), vamos esperar para ver o desenrolar dos próximos episódios. Como amostragem Justiceiro parece manter o bom nível do primeiro ano.

"-Vai haver mais deles?
-Espero que sim."

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Resenha Cinema: Green Book: O Guia


Ontem comecei, tardiamente, minha temporada de cinema para 2019, e resolvi começar com um dos filmes multi-indicados/premiados em cartaz, esse Green Book: O Guia.
Um raro esforço diretorial solo de Peter Farrelly, que geralmente trabalha em parceria com seu irmão Bobby na construção de comédias pastelão que, quando funcionam, são algumas das melhores fitas de humor grosseiro que alguém poderia querer assistir (Débi & Lóide, Eu, Eu Mesmo e Irene, Kingpin: Estes Loucos Reis do Boliche...), e que quando não funcionam são simplesmente ruins demais pra sequer ver uma segunda vez (Ligado em Você, As Aventuras de Osmose Jones, Os Três Patetas...).
No longa corre o ano de 1962, e Tony "Bocudo" Vallelonga (Viggo Mortensen) tem um emprego no tradicional night club novaiorquino Copacabana como porteiro. Um sujeito durão e afável, Tony luta para sustentar sua família através de seu trabalho, mantendo suas conexões com os "wise guys" ítalo-americanos da vizinhança restritas ao campo social, sem jamais trabalhar para eles.
As coisas se complicam para Tony quando o Copa fecha suas portas para reformas. Desempregado por dois meses, Tony precisa dar um jeito de manter o aluguel pago e comida na mesa da esposa Dolores (Linda Cardellini, adorável) e dos dois filhos. Com o dinheiro minguando, ele vê a chance de ficar financeiramente confortável pelo período de reformas do Copacabana quando seu caminho se cruza com o do doutor Don Shirley (Mahershala Ali), um pianista clássico de imenso prestígio que está prestes a embarcar em uma turnê pelo sul dos Estados Unidos apresentando-se em teatros, clubes e até residências privadas por oito semanas de viagens.
Don Shirley é tudo o que Tony não é: Elegante, eloquente, metódico e negro.
Habituado à sofisticação de Nova York, Shirley entende que pode necessitar das qualidades de um sujeito como Tony, mesmo que, pessoalmente, não esteja impressionado com o carcamano. E a recíproca é verdadeira. Tony nutre sua cota de restrições contra afrodescendentes, e não vê com grande entusiasmo o trabalho de ser chofer para um "preto", ainda assim, os dois caem na estrada munidos com o Livro Verde do Motorista Negro que dá nome ao filme, um guia mostrando localidades onde negros eram bem-vindos no amplamente segregado sul norte-americano dos anos 60.
Juntos, o esnobe pianista clássico virtuoso e o simplório porteiro brucutu precisam aprender a se suportar fazendo uma jornada através de injustiças e preconceitos enquanto mudam um ao outro, aprendem um com o outro e descobrem que, apesar de tudo, não são tão diferentes.
Eu sei que, colocada assim, essa sinopse grita "fórmula básica do road movie" aos quatro ventos. Por Stan Lee, parece até um remake de Conduzindo Miss Daisy onde a cor de motorista e passageiro foram invertidas.
Mas se Green Book: O Guia abusa do formato do road movie com parceiros que não combinam entre si, acerta a mão ao fazê-lo sob o prisma das relações raciais em uma época extremamente retrógrada da história dos EUA, e apoiando sua história, baseada em fatos reais, nos ombros de dois atores fenomenais.
Viggo Mortensen desaparece sob o corpo quadrado de tiozão de Tony Vallelonga. O ator tem trejeitos, expressões faciais, sotaque e pança de coroa italiano, um cigarro perenemente colado no lábio e apetite de misturador de cimento e ainda assim, não é uma mera caricatura. Os trejeitos e a aparência física são apenas uma parte do personagem, que apesar de todos os seus pequenos desvios de caráter, ainda tem noção de certo e errado o suficiente tanto para não se tornar um criminoso quanto para rever seus próprios conceitos quando exposto à uma realidade que ignorava.
Mahershala Ali, vencedor do Globo de Ouro com o papel, é outro animal, adicionando uma admirável quantidade de matizes à um personagem que poderia facilmente se tornar unidimensional nas mãos de um intérprete menor. O ator enche Don Shirley de elegância, mas deixa claro o quanto daquela atitude superior e condescendente é uma fachada para proteger um homem repleto de atribulações pessoais, que prefere se distanciar das pessoas do que expôr a própria vulnerabilidade.
Peter Farrelly espertamente explora o trabalho dos dois atores e a excelente química que os dois partilham em cena movimentando a história inteiramente através da dupla, com isso, ele edifica um filme à moda antiga, que tem temas complexos como seu pano de fundo, mas os aborda quase sempre com leveza, para garantir que a experiência de assistir ao longa seja sempre agradável, mas jamais inócua e nem totalmente livre de momentos de revirar o estômago.
Ainda que seja convencional em seus temas, abordagem edificante, em até em seus defeitos (O longa foi amplamente acusado de simplificar e diluir o peso do racismo nos EUA), é difícil não gostar de Green Book: O Guia, seja pela enorme quantidade de talento em cena, seja pelo inegável (e talvez descabido) otimismo no script de Brian Currie, Nick Vallelonga e do próprio Farrelly.
Uma agradabilíssima sessão de cinema para começar 2019 na sala escura com o pé direito.
Certamente vale o ingresso.

"O mundo está cheio de pessoas solitárias esperando pra tomar a iniciativa."

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Rapidinhas do Capita


"Tu escorre em minhas veias", ele escreveu. Releu... Pensou... Apagou o texto.
"Minha mente te orbita", digitou. Novamente parou, avaliou o que escrevera, e cutucou o botão de deletar vinte e uma vezes, apagando as palavras.
"Eu te respiro", "Me inebrias", "te quero a cada minuto do dia", "Tu és a Roma das minhas afeições, todos os caminhos levam a ti"... Escrevia e deletava, escrevia e deletava. Inclinou-se pra frente, apoiou o cotovelo na escrivaninha e o queixo sobre o punho. Olhava a tela branca, o cursor em forma de travessão vertical piscando no canto superior esquerdo do ecrã o julgando desafiadoramente.
Pousou os dedos sobre o teclado olhando a tela... Tentou procurar em sua mente como colocar em palavras como estava se sentindo, mas não conseguia elucubrar nada que não estivesse na ordem da pieguice em seu estado mais puro, a fina flor da cafonice.
São os males, pensou, de se estar perdidamente apaixonado:
A única forma de expressar honestamente o que se sente é com os mais melosos e constrangedores clichês.

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Sabe aquelas histórias que povoam a literatura de fantasia em doses cavalares, aqueles vídeos que volta e meia pululam pelas redes sociais, a quintessência do não julgar pelas aparências, de que não se declara vitória antes do embate, o proverbial Davi contra Golias, onde alguém muito pequeno enfrentando um antagonista muito grande contra todas as chances sai triunfante do embate?
Claro que sabe.
Não há mídia que já não tenha esgotado essa premissa.
O ponto é que nunca (digamos quase nunca, já que eu não consumi todo o conteúdo que se vale de tais parâmetros narrativos) nos mostram o ponto de vista do Golias. Do império derrubado pelos rebeldes. Do gigante derrotado pelo nanico.
E, sendo um sujeito grande, esse sempre foi o ponto de vista que mais me preocupou. Não porque não haja ninguém maior do que eu, eu não sou nenhum jogador da NBA, mas se alguém maior do que eu me desse uma surra, não haveria vergonha, apenas lógica, enquanto ser subjugado por alguém de menor estatura e volume, sempre me pareceu a mais completa e definitiva das humilhações. Uma bobagem, eu sei... Bruce Lee era um anão e certamente poderia limpar chão com dez caras do meu tamanho. Ainda assim, sempre houve essa questão do orgulho pra mim. Eu pensava nos sentimentos de Tong-Po, de Ivan Drago, Karl, e de Fezzik, porque era capaz de me colocar no lugar deles e imaginar o quão devastador seria ter sido derrotado por pessoas menores.
E a prova cabal de que o destino é o gozador definitivo, é que uma pessoa de pouco mais de metro e meio surgiu na minha vida me fazendo de gato e sapato.

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Pessoal pensou que estava elegendo o capitão nascimento, mas na verdade era o major Rocha...

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Ambição


O Leco era um rapaz humilde...
Próximo de completar vinte anos Leco não estudara além da sétima série, que abandonara após a segunda reprovação. Com o pai tendo abandonado a família lhe parecia efêmero continuar estudando quando a irmã pequena necessitava de sustento e a mãe de auxílio financeiro para manter a casa modesta de um dormitório em que a família vivia.
Leco flertou com a ideia de tentar seguir uma carreira no exército quando se apresentou para o serviço militar obrigatório, mas acabou dispensado e viu essa possibilidade de trabalho ser riscada de seu minguado rol de empregos em potencial. Com pernas finas, mas fortes, resolveu abraçar a primeira oportunidade de trabalho que surgisse, e calhou de ser entregador de água para uma distribuidora do Centro de Porto Alegre.
Leco morava no Campo da Tuca, uma região complicada da cidade em termos de desenvolvimento humano e segurança. Vira amigos e vizinhos serem cooptados pelo crime e testemunhou sua cota de tragédias, mas ele próprio jamais sentiu nenhuma vontade de entrar na vida errada. Fosse pela fibra moral da mãe, uma mulher tão honesta quanto alguém poderia ser, fosse pelo senso de preservação de alguém que fora enxovalhado demais pela vida para gostar de confrontações de qualquer espécie, Leco não via no dinheiro fácil uma motivação para aceitar os riscos de se perfilar à uma facção criminosa.
Não...
Ele não era ambicioso, ficaria com os rendimentos modestos de um salário mínimo mais vale-refeição e vale-transporte com o eventual bônus por excelência que o seu Tadeu pagava aos entregadores de água em bicicletas que trabalhavam na distribuidora.
Leco podia não ser excelente em muitas coisas na vida, mas sabia pedalar em uma bicicleta, sabia ser solícito e mesmo não sendo prodigiosamente forte, desenvolvera uma técnica infalível para colocar o galão de água mineral no bebedouro sem desperdiçar nem uma gota, o que agradava sobremaneira diversas clientes, em especial as velhinhas que prezavam pela limpeza impecável da cozinha e desenvolviam urticária ante a simples ideia de ter respingos na parede e chão atrás do bebedouro. Esse cuidado tornara Leco pródigo em receber gorjetas das senhoras venerandas que abriam sorrisos amarelados ante a gentileza bem ensaiada e a eficiência de Leco, que conseguia engordar seus módicos rendimentos graças aos pequenos trocados que recebia como agradecimento pelo serviço bem-feito aos clientes e pelos bônus do seu Tadeu, que oferecia duzentos reais à guisa de incentivo ao ciclista que fizesse mais entregas no mês, uma honraria que Leco não obtivera em apenas três meses dos quase três anos que trabalhava na distribuidora.
Leco não era gastador ou tinha qualquer desejo extravagante. O dinheiro extra não era usado em roupas de marca, rolês da hora ou qualquer variedade de auto-indulgência descartável, mas para a manutenção da casa onde vivia. Conseguira comprar um refrigerador com freezer, um televisor digital e, talvez seu maior orgulho, pagara pelo acabamento da casa onde vivia, antes de tijolos à vista, mas agora devidamente forrada com reboco e pintada de pêssego, cor que lhe cativara no Tumeleiro...
Leco seguia com sua vida simples, focado em ser um provedor para mãe e irmã, jogando seu futebolzinho nos finais de semana e, vez que outra, indo até o bar da dona Rose nas noites de roda de samba para tomar uma cervejinha e confraternizar com os vizinhos sem almejar muito mais do que isso numa vida que ele mais levava do que vivia.
Trabalhando das oito às cinco e precisando pegar dois ônibus para ir para o trabalho e outros dois para voltar pra casa após um dia de intensa demanda física Leco não tinha tempo ou energia para namoros, de modo que vivia assim, preenchendo todas as lacunas de sua vida com trabalho que pra ele começava ao acordar, cinco e meia da madrugada, e só terminava às oito da noite, quando ele saía do banho mal sentindo as pernas finas.
As coisas mudaram para Leco quando o seu Tadeu pediu que ele fizesse uma entrega...
Aquilo não era novidade, era dever de ofício ao qual Leco acostumara-se ainda na primeira semana de trabalho... A novidade é que era na mesma quadra da distribuidora. Coisa de quarenta metros de distância, se tanto. Pior:
Endereço comercial.
Leco sabia que endereços comerciais não davam gorjeta nunca, era, literalmente, um desperdício de seus talentos de encantador de velhinhas e de seu prodígio físico de pedalar por quilômetros carregando galões d'água. Mas, seu Tadeu era o chefe. Um bom chefe. E não convinha a Leco questionar ordens perfeitamente razoáveis de modo que ele colocou o galão na bicicleta e pedalou pela frente de uma estética, uma farmácia, dois prédios residenciais, uma academia de ginástica e estava diante da escola de inglês que pedira a água.
Apanhou o galão de vinte litros usando os pegadores em forma de X e adentrou o recinto deparando-se com a mesa da recepção.
A moça sentada atrás da mesa era linda.
O cabelo castanho avermelhado escorria da cabeça feito uma cascata deitando-se sobre os ombros, os olhos escuros eram vivos e brilhantes. As sobrancelhas arqueadas denotavam vivacidade, o nariz era simétrico e levemente arrebitado e os lábios cor de rosa convidativos.
Leco olhou pra moça por alguns instantes, instantes longos demais para aquela situação, só falou quando a moça ergueu as sobrancelhas encarando-o:
-Hã... Água... - Disse.
Ela fez cara de quem sabia, levantou-se de trás da mesa e levou Leco até o bebedouro, onde o rapaz exibiu toda a categoria, habilidade e destreza que desenvolvera na lida com as bombonas. Com o garrafão devidamente instalado, Leco voltou com a moça até o balcão da recepção onde recebeu a paga que lhe era devida.
A moça lhe entregou o dinheiro, recebeu o troco, e agradeceu com um "Obrigada...?" que Leco levou, novamente, uma fração de segundo mais do que deveria para responder sobressaltado com o próprio nome, ao que ela retribuiu com sua graça:
Milene.
Nos dias subsequentes Leco flagrou-se espichando o olhar para dentro da escola de inglês ao passar chegando ou indo embora do trabalho. Vez que outra o olhar de Milene encontrava o dele, e ela acenava ou maneava a cabeça ao vê-lo, ao que ele retribuía inseguro.
Conhecia o zelador do prédio onde a escola estava instalada, um tipo morbidamente obeso que não pagava imposto para largar qualquer serviço que estivesse fazendo para trocar dois dedos de prosa com quem fosse a quem todos chamavam, apropriadamente, de Gordão.
Foi através de Gordão que Leco descobrira que Milene era estudante universitária de letras em inglês, que trabalhava para pagar os estudos e que não devia ter namorado já que ninguém nunca ia deixá-la ou pegá-la no serviço.
Leco não nutriu grandes esperanças a respeito de ser correspondido por Milene, tinha para si que aquele amor súbito pela jovem era algo fadado a permanecer na esfera do platônico até que se dissolvesse igual um Sonrisal, como muitos dos seus sonhos haviam feito nos últimos anos.
O problema é que aquele Sonrisal não se dissolvia.
Leco não conseguia parar de pensar em Milene, e se era um jovem realista, que sabia que alguém como ele pouco tinha a oferecer a alguém como ela, também sabia que não encontraria paz em tentar digerir os próprios sentimentos. Se fosse pra tentar conquistar a jovem de cabelos avermelhados, Leco precisaria investir em si mesmo. Melhorar. Deixar de ser um mero sobrevivente e se tornar uma pessoa com algum objetivo, alguma direção. Julgava-se capaz de fazê-lo, se tivesse a motivação correta, e àquela altura, apenas uma motivação lhe interessava.
Resolveu fazer uma aposta arriscada. Passou alguns dias atento à escala de entregas, e assim que viu a chegada do pedido de uma bombona na escola de inglês, o pegou.
Levou muito, muito mais tempo do que deveria para cumprir o pequeno trajeto entre a distribuidora e a escola de inglês, reunindo toda a coragem que tinha em si a cada volta do pedal da bicicleta para vencer aqueles breves metros.
Parou diante da vitrine, apanhou a bombona e andou a passos hesitantes até a mesa de Milene. Sorriu meio sem graça e disparou:
-Ai góte uássãr.
Por uma fração de segundo sentiu o calor da vergonha subir-lhe pela face, mas foi rápido. Milene sorriu um sorriso aberto como ele ainda não havia visto e respondeu:
-Thank you, Leco.
Leco sentiu seu sorriso se alargar espontaneamente. Aquele aceno de esperança era toda a motivação de que ele precisava para, ao menos, ambicionar um pouco mais.


quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Abra Aqui


Meio-dia escaldante. Muito, muito escaldante. Os termômetros marcavam 33 graus mas o abafamento causado pela tempestade da madrugada sugeria 63. Deu o passo até a janela do food truck, e sorriu brevemente para o atendente que, àquela altura, já o conhecia o suficiente para apenas piscar e erguer o polegar fazendo cara de "confirma?", que demandava apenas um outro polegar erguido para garantir que a comunicação funcionara e que sim, era o de sempre. Uma salsicha, sem tempero-verde nem batata-palha, prensado.
Enquanto a cozinheira montava o lanche o atendente do balcão apanhou um saco plástico cheio de sachês de condimentos, e jogou alguns dentro de uma sacola plástica branca.
O cliente apanhou um deles, olhou por um segundo e comentou, casual:
-Lembra do filme plástico em volta das embalagens de CD?
-Nossa, mano. Tu é velho... - Riu o balconista.
-Elas eram um parto de abrir. Eu acho que nunca consegui abrir uma sem esfregar nos dentes ou enfiar uma faca...
-...
-Depois apareceram umas que tinham aquela abinha pra puxar uma fita vermelha e cortar o plástico. Que nem tem em maço de cigarro, chocolate, bolacha recheada...
-Caixinha de chiclete...
-Nunca consegui usar aquilo direito. Acho que sou tosco demais e aquele treco demanda alguma delicadeza, saca?
-Hã...
-Eu geralmente acabo com algumas bolachas esmagadas e a embalagem parcialmente destroçada e a tal da fita vermelha inteirinha do lado de dentro do bagulho. Acho que é meio que um retrato da minha vida...
-Bolacha esmagada?
-Não... Bom, também. Coisas destruídas porque eu não fui delicado o suficiente para manejar.
-Hmmm...
-Há coisas que inevitavelmente demandam um nível maior de paciência. Que devem ser mais cultivadas...
-Cultivar bolacha?
-É... Mais ou menos. É que é importante ser mais delicado com determinadas coisas. Mais paciente. Mais... Gentil. Chegar metendo o pé em tudo é... É a receita da tragédia.
-Sei...
-E ás vezes nós achamos que estamos sendo delicados o suficiente... Gentis o suficiente, e não estamos. E só descobrimos quando o embrulho rasgou, as bolachas esfarelaram e a fita vermelha está lá exposta... A única coisa que permanece intacta em meio ao caos e à destruição.
-Arram...
-Aquela fita vermelha é igual o meu amor por ela.
-Hã?
-A fita vermelha. É que nem o meu amor por ela. Eu não sei usar como deveria. Mas sei que funciona. Porque, não importa o que aconteça, não importa o tamanho do estrago ao redor, ele permanece intacto.
-Tá pronto. Fanta pra acompanhar?
-Hoje, não. Hoje me dá uma Coca.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

O Teaser de Homem-Aranha: Longe de Casa

Conforme alardeado por Tom Holland e Jake Gylenhaal ontem, o novo filme do Homem-Aranha no MCU ganhou sua primeira prévia hoje, pouco antes do meio-dia. O teaser de pouco mais de dois minutos e meio mostra tia May confortável com a vida heroica do sobrinho e flertando com Happy Hogan, Peter e Michelle numa constrangida troca de elogios, Nick Fury hackeando as férias de Peter na Europa e Mysterio:



Novamente dirigido por Jon Watts e trazendo de volta Tom Holland, Marisa Tomei, Jon Favreau, Zendaya e companhia Homem-Aranha: Longe de Casa será lançado em cinco de julho, dois meses após Vingadores:Ultimato.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

Mel do Mundo



Os dias são cheios de preocupações. Responsabilidades. Desgostos...
O fel do mundo.
É assim que é ser um adulto.
Trabalhamos, cumprimos nossas obrigações e encaramos todos os problemas de ter que cuidar da própria vida.
Alguns dias são difíceis, outros, muito difíceis. Não existe almoço grátis, precisamos correr atrás da máquina enquanto estamos vivos e todos os adágios populares que se aplicam à existência em um mundo que tira muito mais do que dá.
Do nascer ao pôr do sol, a rotina cobra seu preço, e nós o pagamos em suor, sangue lágrimas e quaisquer outros fluidos físicos que sejam requeridos para garantir um mínimo de conforto, um mínimo de estabilidade, enfim, um mínimo..
Podemos e devemos almejar mais, mas descobrimos, com o passar dos anos, que, ao querer mais, precisamos oferecer muito mais. Muito mais nos é cobrado. A menos que se esteja em uma posição de privilégio, a progressão entre o que se almeja e o preço que devemos pagar para obter isso é geométrica.
E é assim que o mundo gira. É assim que as coisas são. Não há com quem contar, então mata esse tijolo no peito e se vira tentando arredondá-lo porque a taxa de exigência só aumenta e paciência se tu não concordou com as regras antes de ser convocado pro jogo, mala suerte, amigo.
A única coisa a fazer é tentar encontrar um porto seguro. Um bálsamo. Alguma forma de se reconfortar, recarregar as baterias e tentar manter a sanidade dentro e a tristeza que a compreensão carrega consigo sob controle.
Uma forma de olhar o mundo sob uma ótica menos pragmática e cruel.
Um ponto de foco que mostre que vale a pena continuar fazendo parte dessa carnificina toda.
Que o mundo é uma festa horrorosa a maior parte do tempo, mas que vale a pena frequentar.
Pra mim, ultimamente, são as noites.
Os momentos em que leio a tua voz.
Vejo os teus pensamentos.
Suponho teus sorrisos.
São as breves horas em que a vida é menos amarga. O riso não é responsabilidade, mas reflexo natural. E o calor no peito não é fruto do abafamento do verão, mas da tua presença.
Com ela, as noites são cheias de diversão. Promessa. Acalento...
O mel do mundo.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Quites



De modo geral, uma e meia da madrugada era sua hora de dormir entre segunda e quinta. Era um horário de se recolher que o deixava com cerca de sete horas de sono, o que ele considerava mais que o suficiente. De modo geral, era capaz de funcionar com seis horas de sono diárias. Eventualmente até menos. Mas sete... Sete era a margem de segurança ideal.
Como fazia todos os dias, jogou um pouco de videogame e quando viu que era uma e vinte, foi ao banheiro, escovou os dentes, foi à cozinha, bebeu um montão de água com gás no gargalo da garrafa (na esperança de acordar de madrugada pra ir ao banheiro, um de seus maiores prazeres simples era acordar por volta de quatro, cinco da manhã para ir ao banheiro sabendo que poderia voltar pra cama e dormir mais um bom tempo). Foi ao quarto e tirou a camiseta regata preta que vestia. Estava calor e ele resolveu não dormir com o pijama improvisado, composto de uma regata preta e cuecas boxer de algodão da mesma cor.
Só usando cuecas, voltou à sala. Posicionou o ventilador de frente pro próprio rosto, e ligou a TV no canal de notícias, ajustando o timer, não para desligar, mas para caçar noticiários durante toda a madrugada.
Deitou-se no sofá (ainda não dormira em sua cama desde a mudança), e preparou-se para o último passo de seu ritual pré-sono:
Apanhou o celular e pesquisou o nome dela no Google.
Ao ver os resultados se materializarem na tela branca de sete polegadas, e cutucou o primeiro da lista com o dedo indicador.
Duas novas postagens.
Sorriu. Sempre sentia um calor no peito ao saber dela.
Viu a primeira postagem rindo. Sentindo-se ao mesmo tempo acalentado e melancólico. Devia ser a música...
Estava com o coração tranquilo quando visitou a segunda postagem...
Pôde vê-la falando.
Ouvir a voz dela.
Escutá-la.
Viu o vídeo três vezes. Depois mais uma. O tempo todo, o coração ribombava dentro do peito. Lembrou-se de uma coisa que sempre amara quando a abraçava...
O coração dela. Audível quando os corpos se colavam. Feito um tambor.
Às duas e meia da manhã ainda não havia conseguido pegar no sono. E sentia os próprios batimentos cardíacos. Sorriu olhando pro teto enquanto amaciava o travesseiro:
"Estamos quites, meu amoR."

sábado, 5 de janeiro de 2019

Questão de Fé


Não é fácil, pra mim, compreender a mente de um religioso. Não de um clérigo ou ministro de nenhuma estirpe, esses eu até consigo entender.
Dever de ofício não é algo que fuja da minha compreensão.
É a mente do fiel que me intriga.
A da pessoa que compra o objeto de crença de olhos fechados, sem questionar ou, tão ruim quanto, apesar de questionar.
É difícil pra mim acreditar em qualquer coisa sem uma boa dose de desconfiança e um período de convencimento que, pra ser bem franco, jamais termina totalmente.
Eu preciso ser constantemente re-convencido das coisas em que acredito, de preferência de forma tão empírica e ancorada na realidade quanto possível sem jamais aceitar cegamente nada.
Mesmo coisas nas quais acredito, eu aceito com o proverbial grão de sal, sem abraçar cegamente, seja porque não tenho todas as informações necessárias, seja porque não estou equipado para testar de forma empírica.
É um sistema funcional e que me parece mais seguro e honesto, me mantendo ao largo da credulidade que renego com toda a minha força.
Fé, afinal de contas, é a desculpa que as pessoas dão para acreditar em algo sem um bom motivo, e eu me recuso a fazê-lo. Venho me recusando desde que sou capaz de pensar a respeito, e por isso eu não consigo entender as pessoas que têm fé.
Porque elas aceitam cegamente. Sem poder testar. Sem poder comprovar.
Elas fazem uma aposta definitiva seja por medo, conveniência ou conforto. Elas acreditam porque sim, e nada me revolta mais do que "porque sim".
Talvez por isso meus debates e conversas a respeito de fé sejam acalorados.
Talvez por isso eu tenha, certa feita, afugentado um representante da igreja adventista da minha porta, não por não querer falar com ele, mas por querer falar demais.
E esse, talvez, seja o principal motivo para minha aversão à fé.
É um, digamos "dom", assim mesmo, entre aspas... Um "dom" que demanda crença inconteste, uma habilidade de interpretação da realidade quase deformadora que eu não sou capaz de oferecer.
Exceto contigo.
Me dei conta de que sou, contigo, como qualquer religioso é com seu deus.
Contigo eu ofereço qualquer crença cega.
Faço qualquer Aposta de Pascal.
Dou qualquer salto da Cabeça do Leão.
Vejo qualquer sinal como milagre e qualquer acaso como evidência.
É o que eu tenho feito desde que te conheço, e seguirei fazendo enquanto viver.
Abraço a Analogia da Poça d'água de Douglas Adams, e faço de conta que todos esses sorrisos pescados ao acaso são pra mim.
São meus.
E assim, encontro esperança pra seguir andando.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Rapidinhas do Capita


O calor nos últimos dias de dezembro e nos primeiros dias de janeiro estava impossível.
Os termômetros alcançaram 38 graus, mas a sensação térmica esteve acima dos quarenta e cinco em certas áreas de Porto Alegre.
Emergências ficaram lotadas de pessoas com crises de pressão baixa e casos de desidratação, e uma quase epidemia de gastroenterites acometeu os moradores da região metropolitana.
Em nenhum momento, porém, vi nenhum paladino da boa vontade falar mal das pessoas que gostam de calor por sua insensibilidade para com aqueles que não tem como se proteger das mazelas do verão. Não vi nenhum filantropo de botequim afirmar acusadoramente que enquanto os amantes do tempo quente se divertiam na praia havia gente desmaiando de desidratação nas ruas da cidade, o que confirmou minha suspeita de que os fracotes que tem medinho de frio não estão preocupados com as pessoas que passam necessidades durante os dias de inverno, apenas as usam como argumento pra justificar a própria frescura.

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As primeiras características marcantes do novo governo federal, além de um Mercado louco de faceiro, é uma preocupação muito, muito grande com cores.
Ontem mesmo, segundo noticiou-se, as cadeiras do Palácio da Alvorada foram substituídas. Eram vermelhas, agora são azuis. Mas aí, ficou a dúvida:
Por que azuis? Onde as meninas irão sentar? No chão? Ou ficarão de pé?
Porque, também foi noticiado ontem, a ministra das Mulheres Família e Direitos Humanos Damares Alves estava comemorando uma "nova era" em que meninas usam rosa e meninos usam azul... E ninguém deu notícia sobre algumas cadeiras cor-de-rosa para a mulherada poder sentar sem avacalhar as regras da Nova Era...
Aliás, fica mais uma pergunta de como a Nova Era da ministra pastora evangélica fica em relação à preferência do novo presidente, que é louco por verde-amarelo, e odeia vermelho, conforme deixou claro em seu discurso de posse, mas que não se manifestou com relação a azul e a rosa.
Mas tudo isso é secundário. Estamos no Brasil, e precisamos referir as questões mais importantes atingidas por essa celeuma das cores:
E o futebol?
O ódio do presidente e de seus seguidores por vermelho significa que Inter, Flamengo, Sport e outras equipes que tem a cor em seus uniformes sofrerão uma grande seca pelos próximos (idealmente) quatro anos?
E como ficam as torcedoras de Grêmio, Cruzeiro, Paysandu e outros times que vestem azul? Poderão usar o fardamento de seus clubes do coração ou estarão cometendo algum tipo de descalabro?
Considerando esses últimos três dias há apenas uma certeza:
Todas essas perguntas serão respondidas.

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A reapresentação do Internacional para a temporada 2019 ontem foi uma das mais melancólicas de que me lembro em anos recentes, ficando atrás, apenas da reapresentação para a temporada da segunda divisão em 2017. Nenhum reforço que se possa levar em consideração para um grupo que se mostrou insuficiente em 2018 e que perdeu força com a saída de Leandro Damião, e a promessa de refazer tudo o que foi feito no ano passado, ou seja:
Não ganhar nada.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Festinha


-...Tu sabe quando a mulher tá gozando?
A pergunta realmente o pegou desprevenido. Ele sentiu o calor subir-lhe pela face fazendo-o enrubescer quase que instantaneamente, e teve certeza de que ir àquela festa havia sido uma ideia idiota.
Não era um amante de festas. Jamais fora. Odiava ter que gritar acima da música quando tentava conversar. Odiava gente entorpecida se balançando ritmadamente ao som de techno (As pessoas ainda ouviam techno?)... Claro. Aquela não era uma dessas festas.
Era o aniversário de seu cunhado, e não havia ninguém dançando, a música que tocava não era techno, mas um apanhado de algumas das piores coisas gravadas nos últimos treze anos, mas estava em um volume bastante razoável. Havia comida em uma mesa e as pessoas se serviam em pratos de plástico branco e comiam escoradas em paredes quando não eram capazes de encontrar uma das cadeiras, que eram superadas em números de 3 para um pelos convidados.
Ele, espertamente, chegara sentando-se.
Fora um movimento pusilânime, ele sabia. Chegar adonando-se de uma cadeira, uma das mais confortáveis, por sinal. E não se levantar nem para se servir dos quitutes de festa disponíveis.
Conhecia sua irmã.
Ela se prontificava, sem pedido, a municiá-lo com guloseimas e bebida de tempo em tempo. Era tanto uma coisa de personalidade dela, mesmo mais nova sentir-se um pouco mãe dos irmãos, quanto um sinal de gratidão. Um aceno de "Eu sei que tu não queria vir. Obrigada pelo esforço."
Ele não queria, mesmo, ir. Nunca queria.
Achava irônico como tantos dos castigos da infância haviam se tornado seus hobbies de adulto. Não sair de casa... Ficar trancado no quarto... Não poder comparecer à festa de aniversário de um amigo... Coisas com as quais ele era ameaçado quando era pequeno, hoje, eram sua ideia de um final de semana perfeito.
Mas não... Sua irmã, apavorada com a ideia de ter a casa repleta de amigos do marido dos quais não gostava ou aos quais não conhecia o suficiente, o convenceu a comparecer ao evento e "ficar só um pouco" para que ela não ficasse sozinha. O cunhado, afinal de contas era amigo dele antes de ser marido dela, de modo que, em teoria, ele não devia se sentir particularmente deslocado atendendo à celebração.
Em teoria.
Na prática, sua irmã estava alegremente indo da cozinha pra sala e da sala pra cozinha, e da cozinha para o pátio com mais salgadinhos e doces e bebidas, enquanto ele estava sentado sozinho na sala, entre dois desconhecidos que conversavam um com o outro mas de vez em quando olhavam pra ele esperando algum aparte que, francamente, ele não prestara atenção o suficiente à conversa para oferecer.
Sabia que levantar daquela cadeira era um movimento arriscado.
Provavelmente não encontraria outra. Mas aí se deu conta de que, sem ter onde sentar, teria a desculpa perfeita para uma retirada estratégica digna. Se saísse agora, chegaria em casa a tempo de ver Liga da Justiça na HBO antes de jogar videogame até o amanhecer de domingo e então dormir até meio-dia.
Levantou-se, deixando os dois chatos conversando entre si, e saiu. Andou até a mesa, apanhou um salgadinho de palmito com presunto e mordeu com gosto. Serviu-se em um copo plástico com Pepsi, e andou com o copo e meio salgadinho até o pátio, decorado com luzes de natal nas plantas.
Olhou em volta, não conhecia ninguém, mas viu duas cadeiras vazias, num canto obscuro do pequeno pátio, perto das folhagens junto do muro. Sentou-se esperando poder manter-se ali, longe dos olhos de todos por alguns minutos antes de sua retirada estratégica.
Colocou seu copo na cadeira ao lado para desencorajar potenciais intrusos, e puxou o celular do bolso. Mal havia aberto o browser quando percebeu uma figura assomando.
Era uma mulher.
Cabelos castanhos presos atrás da cabeça, vestido preto, tênis all-star dourado. Era bonita.
A mulher olhou com um sorriso, e apontou seu copo na cadeira vazia com o queixo.
Ele entendeu o sinal, sorriu a contragosto e apanhou o próprio copo, dando um gole.
A mulher sentou.
-Calorão, né?
Disse, abanando-se com um prato plástico vazio.
Ele concordou com um aceno de cabeça, já que acabara de colocar a metade restante de seu salgadinho na boca.
-Amigo do noivo ou da noiva? - Ela perguntou, com um meio sorriso.
Ele riu.
-Do noivo. Sou irmão da noiva. - Respondeu.
Ela fez uma careta de surpresa, como quem diz, sem palavras, "mas vocês não se parecem em nada", ou ao menos foi a impressão que ele teve.
Ela estendeu a mão:
-Rita.
Ele a cumprimentou, dizendo o próprio nome de maneira lacônica. Olhou para o celular, prestes a fazer cara de "já?" e pedir licença, mas Rita começou a falar.
E falar...
E falar...
Falou muito... Sobre muita coisa... Durante muito tempo.
Falou sobre seu trabalho, sobre como conhecera o cunhado dele na faculdade e mantinha contato desde então por acreditar piamente que o futuro do empreendedorismo estava no networking.
Falou sobre o ex-namorado-quase-marido que a traíra com uma colega de faculdade e que se tornara o pivô de sua decisão de jamais se relacionar novamente com homens mais novos.
Falou sobre seu trabalho como promoter e suas ideias para montar uma academia.
Falou sobre astrologia...
Sobre política...
Sobre fatos da vida.
Falou sobre cinema e sobre música sem jamais deixar espaço para uma réplica completa pois toda a vez que ele começava a tentar responder alguma coisa ela pescava algo no meio de sua primeira frase e tecia uma tese. À certa altura começou a sobre como as aparências enganam, e disse que, olhando pra ele, não iria imaginar que ele fosse alguém tão fácil de conversar.
Ele pensou em responder que aquilo não era uma conversa, mas uma palestra com breves apartes da plateia de um homem só, mas refreou-se. Apenas concordou que as aparências enganam, repetindo o adágio com o qual nem sequer concordava totalmente apenas esperando que ela dissesse "isso me lembra de", para interrompê-la e pedir licença pra ir embora.
Mas, ela disse:
-Verdade... Tu sabe quando a mulher tá gozando?
Ele demorou a concatenar. Ficou, conforme já foi dito, inflamado de vergonha, e sentia o rosto aquecendo-se. Pensou se, ali, à meia-luz do pátio seria possível discernir-lhe o vermelhão. Nem entendeu, ao certo, o que ela quisera dizer. Respondeu:
-Hã...?
Na verdade esperando que ela fosse continuar, como em "Sabe tal coisa? Então...". Mas ela não emendou outra tese. Repetiu a pergunta:
-Tu sabe? Reconhecer quando a mulher goza?
Ele olhou em volta, brevemente, para ver se alguém ouvira aquilo. Não se considerava um puritano, mas não achava que falar em gozo com estranhos fosse de bom tom, especialmente após menos de meia hora de conversa.
-Se eu sei quando uma mulher está gozando? - Ele repetiu, tentando obter confirmação.
-É. - Ela confirmou, casual.
Ele raciocinou tão rápido quanto pôde. Tinha alguma base, alguns indícios. Mas não podia afirmar que sempre sabia. Não podia afirmar, com certeza, que soubesse a qualquer tempo, na verdade... Resolveu ser honesto.
-Não... Não sei.
Ela riu.
-Não sabe?
Ele se sentiu enrubescer novamente:
-Não com certeza...
Ela riu, como quem faz pouco-caso.
-Bom... Existem alguns indícios...
-Espero que tu não esteja falando de gemidos e respiração ofegante.
Ele não disse nada. Os gemidos, ele geralmente ignorava, mas a respiração ofegante ele levava em conta, sim...
Ela riu, sarcástica:
-Tá te lembrando de quantas vezes tu achou que estivesse abafando por causa de um gemido estridente?
Ele se sentiu desconfortável. Respondeu algo ríspido:
-Não. Eu nunca na vida achei que estivesse "abafando"... De qualquer forma, não tem nenhum sinal evidente como tem com nós, homens.
-É sempre a desculpa dos homens. Mulher é diferente...
-É - Ele concordou. -É a razão pela qual eu gosto delas.
Ela olhou pra ele como quem não entende. Ele explicou:
-Eu gosto de mulher exatamente por elas... Vocês, serem diferentes dos homens.
-Ah - Ela entendeu. -Mas mesmo gostando tu não entende... - Ela acusou.
Ele se sentiu um pouco ofendido. Se defendeu:
-"Entender" é um termo amplo. O que significa pra ti?
Ela se endireitou na cadeira, um sinal, ele aprendera na última meia hora, de que ia começar uma tese, mas eis que, sem aviso, sua irmã surgiu:
-Tu sumiu lá de dentro. Achei que tinha ido embora sem se despedir. - Disse, pousando a mão sobre o ombro de Rita.
Ele olhou pro relógio, já havia perdido treze minutos de Liga da Justiça, mas se saísse agora, chegaria em casa a tempo de tomar um banho e ver o arranca-rabo da Liga contra o Superman redivivo e a luta final contra o Lobo da Estepe. Levantou-se:
-Não ia ir embora sem me despedir, mas preciso ir agora. Bom te conhecer, Rita.
Deu uma piscadela para a irmã, um tapinha no ombro do cunhado, de passagem ao cruzar a sala, e ganhou a rua para andar as três quadras que o separavam de casa.
Quando começou a caminhar, deu-se conta que acabara perdendo, além de duas horas e pouco de sua vida, a chance de entender as mulheres, ou ao menos de ouvir o conselho de uma especialista para identificar um orgasmo feminino. Deu de ombros ao lembrar-se, ligeiro, que havia apenas uma mulher que queria entender, e que ela, poderia lhe dizer, algum dia, exatamente o que queria que ele fizesse para agradá-la.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Último Passo


Leomir sentou-se à mesa da ceia de ano-novo com a família suando frio.
Todos ao redor conversando animadamente, tentando ignorar o barulho da Ivete Sangalo cantando na TV, e ele ali, quieto feito guri cagado. Quando falavam com ele, respondia de maneira vaga. Quase monossilábica, como quem não quer perder a concentração. Havia comido o peixe, o porco, a lentilha, todas as comidas de réveillon obrigatórias, além de algumas outras opcionais, bebera refrigerante e fizera o brinde com espumante (que ele sabia que champanhe é só a espumante produzida na região de Champagne, no nordeste da França) desejando feliz ano-novo a todos os familiares que estavam junto, mas agora aproximava-se o momento da verdade. O teste de fogo no qual Leomir não queria falhar.
Era a hora da sobremesa.
E a sobremesa tornara-se um teste tão importante para Leomir por conta de um padrão que ele notara na semana anterior à virada.
Começara com uma coisa simples. Na sexta-feira, na academia, ao se despedir dos colegas com quem conversava mais frequentemente durante suas mirradas sessões de musculação, Leomir trocou votos de feliz ano-novo com um conhecido e concluiu os cumprimentos com um:
-Juízo no final de ano que academia de novo, só ano que vem!
E caiu na risada.
Assim que seu colega saiu, dando-lhe um amigável tapinha no ombro ele percebeu a qualidade duvidosa da piada que acabara de fazer. De onde saíra aquilo? Foi enquanto concluía sua série de exercícios que percebera que aquela piada ruim era apenas um elemento em um padrão de mudanças de comportamento e aparência...
Àquela altura da vida, Leomir não conseguia ficar sem óculos. Não era apenas para ler, trabalhar e assistir TV ou ir ao cinema. Não. Leomir não reconhecia pessoas na rua sem óculos. Não conseguia fazer as coisas em casa sem óculos. Habituara-se tanto ao aro sobre o nariz que, vez que outra, quando estava voltando para casa após a academia sem óculos, instintivamente levava o dedo ao nariz entre os olhos num gesto instintivo de posicionar as lentes de volta no lugar.
Não tinha mais paciência com pessoas. Praticamente todo o ser-humano que fosse remotamente chato ou desagradável era imediatamente excluído de seu convívio, e andava de um jeito que todos os seres-humanos lhe soavam chatos e desagradáveis.
Tornara-se condescendente. Não levava as outras pessoas em consideração o suficiente para sustentar uma argumentação. Mesmo sabendo que estava longe de ser um luminar da sapiência, não tinha mais vontade de trocar ideias com ninguém, pois tinha a impressão de que sairia da troca no prejuízo.
Levantou-se da tábua de supino e aproximou-se do espelho. A barba estava embranquecendo no queixo. A quantidade de fios brancos só não era mais evidente por conta das falhas na barba de fios espetados que não tinha mais interesse em aparar. Alguns fios eram do comprimento de seu dedo médio. Tinha fios brancos no bigode. Na cabeça, então, só estavam camuflados pela grande quantidade de cabelo sempre presa em um rabo de cavalo. Olhou o próprio físico. Seu sonho de frequentar a academia e ficar com físico de ator de Hollywood tornara-se realidade: Parecia Joaquin Phoenix em Você Nunca Esteve Realmente Aqui. A figura de um autêntico nêgo véio Riograndense.
Não pôde evitar um choque ao dar-se conta da metamorfose que sofrera. Não se tornara, da noite para o dia, um inseto, como Gregor Samsa, mas, ao longo de alguns anos, tornara-se um tiozão.
Desenvolvera o físico, o comportamento e o senso de humor de um tiozão autêntico. Pançudo, rabugento e fazendo eventuais piadas bestas, tinha até uma sobrinha para carimbar-lhe a credencial. O ciclo, já diria o imperador Palpatine, no tempo em que Star Wars ainda era bom (outro "tiozãoísmo"), estava quase completo. Faltava apenas um passo para que a transformação fosse irreversível, e a prova de fogo viria após a ceia da virada dali alguns dias...
Sentado na mesa da sala tentando pescar uma nesga de ar fresco do ventilador insuficiente para a sala da casa da mãe, Leomir suava tanto de calor quanto antevendo a hora da verdade. Sua irmã e sua tia terminaram de recolher os pratos da ceia e voltaram com o elemento derradeiro da transformação de Leomir:
A sobremesa.
Quando o prato refratário embrulhado em papel alumínio foi colocado no centro da mesa, Leomir quase tremia, mas assim que a cobertura foi removida revelando o conteúdo do prato, ele teve um torpor de alívio. Era um doce de abacaxi.
Leomir nem sequer gostava de doce de abacaxi, o seu alívio era porque aquela iguaria não era um pavê. Ao menos por mais um ano, Leomir conseguiria adiar o último passo de sua metamorfose.