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sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Ambição


O Leco era um rapaz humilde...
Próximo de completar vinte anos Leco não estudara além da sétima série, que abandonara após a segunda reprovação. Com o pai tendo abandonado a família lhe parecia efêmero continuar estudando quando a irmã pequena necessitava de sustento e a mãe de auxílio financeiro para manter a casa modesta de um dormitório em que a família vivia.
Leco flertou com a ideia de tentar seguir uma carreira no exército quando se apresentou para o serviço militar obrigatório, mas acabou dispensado e viu essa possibilidade de trabalho ser riscada de seu minguado rol de empregos em potencial. Com pernas finas, mas fortes, resolveu abraçar a primeira oportunidade de trabalho que surgisse, e calhou de ser entregador de água para uma distribuidora do Centro de Porto Alegre.
Leco morava no Campo da Tuca, uma região complicada da cidade em termos de desenvolvimento humano e segurança. Vira amigos e vizinhos serem cooptados pelo crime e testemunhou sua cota de tragédias, mas ele próprio jamais sentiu nenhuma vontade de entrar na vida errada. Fosse pela fibra moral da mãe, uma mulher tão honesta quanto alguém poderia ser, fosse pelo senso de preservação de alguém que fora enxovalhado demais pela vida para gostar de confrontações de qualquer espécie, Leco não via no dinheiro fácil uma motivação para aceitar os riscos de se perfilar à uma facção criminosa.
Não...
Ele não era ambicioso, ficaria com os rendimentos modestos de um salário mínimo mais vale-refeição e vale-transporte com o eventual bônus por excelência que o seu Tadeu pagava aos entregadores de água em bicicletas que trabalhavam na distribuidora.
Leco podia não ser excelente em muitas coisas na vida, mas sabia pedalar em uma bicicleta, sabia ser solícito e mesmo não sendo prodigiosamente forte, desenvolvera uma técnica infalível para colocar o galão de água mineral no bebedouro sem desperdiçar nem uma gota, o que agradava sobremaneira diversas clientes, em especial as velhinhas que prezavam pela limpeza impecável da cozinha e desenvolviam urticária ante a simples ideia de ter respingos na parede e chão atrás do bebedouro. Esse cuidado tornara Leco pródigo em receber gorjetas das senhoras venerandas que abriam sorrisos amarelados ante a gentileza bem ensaiada e a eficiência de Leco, que conseguia engordar seus módicos rendimentos graças aos pequenos trocados que recebia como agradecimento pelo serviço bem-feito aos clientes e pelos bônus do seu Tadeu, que oferecia duzentos reais à guisa de incentivo ao ciclista que fizesse mais entregas no mês, uma honraria que Leco não obtivera em apenas três meses dos quase três anos que trabalhava na distribuidora.
Leco não era gastador ou tinha qualquer desejo extravagante. O dinheiro extra não era usado em roupas de marca, rolês da hora ou qualquer variedade de auto-indulgência descartável, mas para a manutenção da casa onde vivia. Conseguira comprar um refrigerador com freezer, um televisor digital e, talvez seu maior orgulho, pagara pelo acabamento da casa onde vivia, antes de tijolos à vista, mas agora devidamente forrada com reboco e pintada de pêssego, cor que lhe cativara no Tumeleiro...
Leco seguia com sua vida simples, focado em ser um provedor para mãe e irmã, jogando seu futebolzinho nos finais de semana e, vez que outra, indo até o bar da dona Rose nas noites de roda de samba para tomar uma cervejinha e confraternizar com os vizinhos sem almejar muito mais do que isso numa vida que ele mais levava do que vivia.
Trabalhando das oito às cinco e precisando pegar dois ônibus para ir para o trabalho e outros dois para voltar pra casa após um dia de intensa demanda física Leco não tinha tempo ou energia para namoros, de modo que vivia assim, preenchendo todas as lacunas de sua vida com trabalho que pra ele começava ao acordar, cinco e meia da madrugada, e só terminava às oito da noite, quando ele saía do banho mal sentindo as pernas finas.
As coisas mudaram para Leco quando o seu Tadeu pediu que ele fizesse uma entrega...
Aquilo não era novidade, era dever de ofício ao qual Leco acostumara-se ainda na primeira semana de trabalho... A novidade é que era na mesma quadra da distribuidora. Coisa de quarenta metros de distância, se tanto. Pior:
Endereço comercial.
Leco sabia que endereços comerciais não davam gorjeta nunca, era, literalmente, um desperdício de seus talentos de encantador de velhinhas e de seu prodígio físico de pedalar por quilômetros carregando galões d'água. Mas, seu Tadeu era o chefe. Um bom chefe. E não convinha a Leco questionar ordens perfeitamente razoáveis de modo que ele colocou o galão na bicicleta e pedalou pela frente de uma estética, uma farmácia, dois prédios residenciais, uma academia de ginástica e estava diante da escola de inglês que pedira a água.
Apanhou o galão de vinte litros usando os pegadores em forma de X e adentrou o recinto deparando-se com a mesa da recepção.
A moça sentada atrás da mesa era linda.
O cabelo castanho avermelhado escorria da cabeça feito uma cascata deitando-se sobre os ombros, os olhos escuros eram vivos e brilhantes. As sobrancelhas arqueadas denotavam vivacidade, o nariz era simétrico e levemente arrebitado e os lábios cor de rosa convidativos.
Leco olhou pra moça por alguns instantes, instantes longos demais para aquela situação, só falou quando a moça ergueu as sobrancelhas encarando-o:
-Hã... Água... - Disse.
Ela fez cara de quem sabia, levantou-se de trás da mesa e levou Leco até o bebedouro, onde o rapaz exibiu toda a categoria, habilidade e destreza que desenvolvera na lida com as bombonas. Com o garrafão devidamente instalado, Leco voltou com a moça até o balcão da recepção onde recebeu a paga que lhe era devida.
A moça lhe entregou o dinheiro, recebeu o troco, e agradeceu com um "Obrigada...?" que Leco levou, novamente, uma fração de segundo mais do que deveria para responder sobressaltado com o próprio nome, ao que ela retribuiu com sua graça:
Milene.
Nos dias subsequentes Leco flagrou-se espichando o olhar para dentro da escola de inglês ao passar chegando ou indo embora do trabalho. Vez que outra o olhar de Milene encontrava o dele, e ela acenava ou maneava a cabeça ao vê-lo, ao que ele retribuía inseguro.
Conhecia o zelador do prédio onde a escola estava instalada, um tipo morbidamente obeso que não pagava imposto para largar qualquer serviço que estivesse fazendo para trocar dois dedos de prosa com quem fosse a quem todos chamavam, apropriadamente, de Gordão.
Foi através de Gordão que Leco descobrira que Milene era estudante universitária de letras em inglês, que trabalhava para pagar os estudos e que não devia ter namorado já que ninguém nunca ia deixá-la ou pegá-la no serviço.
Leco não nutriu grandes esperanças a respeito de ser correspondido por Milene, tinha para si que aquele amor súbito pela jovem era algo fadado a permanecer na esfera do platônico até que se dissolvesse igual um Sonrisal, como muitos dos seus sonhos haviam feito nos últimos anos.
O problema é que aquele Sonrisal não se dissolvia.
Leco não conseguia parar de pensar em Milene, e se era um jovem realista, que sabia que alguém como ele pouco tinha a oferecer a alguém como ela, também sabia que não encontraria paz em tentar digerir os próprios sentimentos. Se fosse pra tentar conquistar a jovem de cabelos avermelhados, Leco precisaria investir em si mesmo. Melhorar. Deixar de ser um mero sobrevivente e se tornar uma pessoa com algum objetivo, alguma direção. Julgava-se capaz de fazê-lo, se tivesse a motivação correta, e àquela altura, apenas uma motivação lhe interessava.
Resolveu fazer uma aposta arriscada. Passou alguns dias atento à escala de entregas, e assim que viu a chegada do pedido de uma bombona na escola de inglês, o pegou.
Levou muito, muito mais tempo do que deveria para cumprir o pequeno trajeto entre a distribuidora e a escola de inglês, reunindo toda a coragem que tinha em si a cada volta do pedal da bicicleta para vencer aqueles breves metros.
Parou diante da vitrine, apanhou a bombona e andou a passos hesitantes até a mesa de Milene. Sorriu meio sem graça e disparou:
-Ai góte uássãr.
Por uma fração de segundo sentiu o calor da vergonha subir-lhe pela face, mas foi rápido. Milene sorriu um sorriso aberto como ele ainda não havia visto e respondeu:
-Thank you, Leco.
Leco sentiu seu sorriso se alargar espontaneamente. Aquele aceno de esperança era toda a motivação de que ele precisava para, ao menos, ambicionar um pouco mais.


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