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quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

Último Passo


Leomir sentou-se à mesa da ceia de ano-novo com a família suando frio.
Todos ao redor conversando animadamente, tentando ignorar o barulho da Ivete Sangalo cantando na TV, e ele ali, quieto feito guri cagado. Quando falavam com ele, respondia de maneira vaga. Quase monossilábica, como quem não quer perder a concentração. Havia comido o peixe, o porco, a lentilha, todas as comidas de réveillon obrigatórias, além de algumas outras opcionais, bebera refrigerante e fizera o brinde com espumante (que ele sabia que champanhe é só a espumante produzida na região de Champagne, no nordeste da França) desejando feliz ano-novo a todos os familiares que estavam junto, mas agora aproximava-se o momento da verdade. O teste de fogo no qual Leomir não queria falhar.
Era a hora da sobremesa.
E a sobremesa tornara-se um teste tão importante para Leomir por conta de um padrão que ele notara na semana anterior à virada.
Começara com uma coisa simples. Na sexta-feira, na academia, ao se despedir dos colegas com quem conversava mais frequentemente durante suas mirradas sessões de musculação, Leomir trocou votos de feliz ano-novo com um conhecido e concluiu os cumprimentos com um:
-Juízo no final de ano que academia de novo, só ano que vem!
E caiu na risada.
Assim que seu colega saiu, dando-lhe um amigável tapinha no ombro ele percebeu a qualidade duvidosa da piada que acabara de fazer. De onde saíra aquilo? Foi enquanto concluía sua série de exercícios que percebera que aquela piada ruim era apenas um elemento em um padrão de mudanças de comportamento e aparência...
Àquela altura da vida, Leomir não conseguia ficar sem óculos. Não era apenas para ler, trabalhar e assistir TV ou ir ao cinema. Não. Leomir não reconhecia pessoas na rua sem óculos. Não conseguia fazer as coisas em casa sem óculos. Habituara-se tanto ao aro sobre o nariz que, vez que outra, quando estava voltando para casa após a academia sem óculos, instintivamente levava o dedo ao nariz entre os olhos num gesto instintivo de posicionar as lentes de volta no lugar.
Não tinha mais paciência com pessoas. Praticamente todo o ser-humano que fosse remotamente chato ou desagradável era imediatamente excluído de seu convívio, e andava de um jeito que todos os seres-humanos lhe soavam chatos e desagradáveis.
Tornara-se condescendente. Não levava as outras pessoas em consideração o suficiente para sustentar uma argumentação. Mesmo sabendo que estava longe de ser um luminar da sapiência, não tinha mais vontade de trocar ideias com ninguém, pois tinha a impressão de que sairia da troca no prejuízo.
Levantou-se da tábua de supino e aproximou-se do espelho. A barba estava embranquecendo no queixo. A quantidade de fios brancos só não era mais evidente por conta das falhas na barba de fios espetados que não tinha mais interesse em aparar. Alguns fios eram do comprimento de seu dedo médio. Tinha fios brancos no bigode. Na cabeça, então, só estavam camuflados pela grande quantidade de cabelo sempre presa em um rabo de cavalo. Olhou o próprio físico. Seu sonho de frequentar a academia e ficar com físico de ator de Hollywood tornara-se realidade: Parecia Joaquin Phoenix em Você Nunca Esteve Realmente Aqui. A figura de um autêntico nêgo véio Riograndense.
Não pôde evitar um choque ao dar-se conta da metamorfose que sofrera. Não se tornara, da noite para o dia, um inseto, como Gregor Samsa, mas, ao longo de alguns anos, tornara-se um tiozão.
Desenvolvera o físico, o comportamento e o senso de humor de um tiozão autêntico. Pançudo, rabugento e fazendo eventuais piadas bestas, tinha até uma sobrinha para carimbar-lhe a credencial. O ciclo, já diria o imperador Palpatine, no tempo em que Star Wars ainda era bom (outro "tiozãoísmo"), estava quase completo. Faltava apenas um passo para que a transformação fosse irreversível, e a prova de fogo viria após a ceia da virada dali alguns dias...
Sentado na mesa da sala tentando pescar uma nesga de ar fresco do ventilador insuficiente para a sala da casa da mãe, Leomir suava tanto de calor quanto antevendo a hora da verdade. Sua irmã e sua tia terminaram de recolher os pratos da ceia e voltaram com o elemento derradeiro da transformação de Leomir:
A sobremesa.
Quando o prato refratário embrulhado em papel alumínio foi colocado no centro da mesa, Leomir quase tremia, mas assim que a cobertura foi removida revelando o conteúdo do prato, ele teve um torpor de alívio. Era um doce de abacaxi.
Leomir nem sequer gostava de doce de abacaxi, o seu alívio era porque aquela iguaria não era um pavê. Ao menos por mais um ano, Leomir conseguiria adiar o último passo de sua metamorfose.

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