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segunda-feira, 17 de março de 2014

A Bisca


A Jurema, depois de trinta e cinco anos de casamento, encasquetou que o Gumercindo tinha arrumado uma "namorada".
E ela dizia assim, mesmo:
Namorada.
A Jurema achava que o Gumercindo, tosco como era, não era homem de ter amante, que amante era coisa de grã-fino, que mantinha relacionamento extra-conjugal, vulgo safadeza, com a secretária, moça de vinte e poucos anos que nem era bonita, mas era novinha e deixava o velho fazer nojeiras como gozar na boca, em troca de um apartamento bem montado num bairro boêmio perto do centro enquanto o calhorda mantinha a família numa casa de três andares com quarenta e três cômodos na Zona Sul, garantindo que a empregada e a cozinheira estivessem com os salários em dia, assim como o pagamento da faculdade da filha mais velha e a psicóloga do filho mais novo.
O Gumercindo não fazia nada disso.
Como é que o Gumercindo, pé rapado, com cinquenta e quatro anos, trabalhando de porteiro, ia ter secretária? É nunca.
O Gumercindo não pagava nada nem pra Jurema, que tinha que acumular as funções de empregada e cozinheira da casa simples de dois dormitórios no Guajuviras, comprada com muito suor, dele e dela, também, que não só acumulava as funções de empregada e cozinheira em casa, como também o fazia pra fora, trabalhando como diarista, pelo menos até o ciático reclamar, e fazendo pastel pra Valdirene vender na faculdade, que diga-se de passagem, era a própria quem pagava com muito suor, trabalhando de telemarketing.
O Gumercindo também não pagava a psicóloga do Gum Júnior, que aos dezesseis anos, se precisava de algum tratamento pra cabeça, era um que fosse aplicado com porrete, porque, que Deus perdoe a dona Jurema, mas ela acha que só dando na cabeça do Gum Júnior até ele desmaiar pra resolver os problemas daquele menino, que, francamente, só queria saber de ouvir funk e não era ajuizado nem pra preencher o boné com a cabeça, imagine pra dar jeito na vida e conseguir um trabalho igual a irmã mais velha, aquela sim, um primor, embora também tivesse tido uma fase tinhosa na adolescência.
Mas enfim, a Jurema resolveu que o Gumercindo tinha uma amante, e não era porque ele, de repente, tinha começado a comprar loção pós-barba no mercado, nem porque ele resolveu que a Jurema precisava usar alvejante na camisa dele, não, não foi por isso, que isso ela teria interpretado como um sinal tardio de que o Gumercindo estava tentando trabalhar mais apresentável. Também não foi aquele fio de cabelo loiro, quase branco, que ela achou na lapela do blazer do uniforme dele. E nem foi o suspeitosíssimo telefonema que ela pegou ele fazendo pra, imagine só, um salão de beleza...
O que convenceu a Jurema que o Gumercindo tinha uma amante, digo, namorada, foi o fato de que um dia de noite ela foi encostar o pé dela no dele por baixo das cobertas, e ele refugou.
Tirou o pé, na maior cara de pau. Sem a menor cerimônia.
Simplesmente afastou o pé na hora em que a Jurema encostrou o pé no dele. Ora, francamente, se a Jurema conquistara alguma coisa naqueles trinta e cinco anos, fora o direito de esquentar o pé dela no pé do Gumercindo, que mesmo sendo magro igual um fiapo, tava sempre com o pé quentinho.
Ela cozinhara, limpara, lavara e criara os filhos daquele ingrato, o mínimo que ele devia fazer, era ter a decência de reconhecer que tinha a obrigação moral, de aquecer os pés dela, já que não ganhava dinheiro suficiente pra dar bons presentes nem pra mimá-la um pouquinho com um pacote do Big Brother na TV a cabo que, diga-se, ela tivera que quase implorar pra ele instalar, e mesmo assim ele só concordou depois que a Valdirene disse que precisava ter internet em casa, porque o computador que ela comprara não ia servir pra faculdade sem a tal da internet.
Agora esse calhorda, esse biltre, esse safado, cretino, salafrário, arrumava uma namorada, e não queria mais esquentar o pé da Jurema debaixo das cobertas. O que seria? Ela o repelia fisicamente? Será que a cabeleireira, manicure, ou fosse lá o cacete que fosse a cretina que tava mimando aquele safado por fora era tão mais bonita? Tão mais atraente?
O Gumercindo achava que era fácil, ser atraente quando se acorda todo dia seis da manhã pra fazer café pra esperar o desavergonhado do marido chegar em casa?
Acha que é fácil ser feminina quando se mata um leão por dia esfregando, varrendo, ensaboando, e esfregando de novo?
Que é fácil ser cheirosinha que nem aquela bisca bebedora de porra quando se está quatro vezes por dia com os braços até o cotovelo na farinha, na banha, no cheiro-verde, na cebola e na carne moída fazendo pastel?
Ah, mas o Gumercindo ia pagar ela.
Se ele quisesse ficar colocando aquele pinto velho e murcho dele nos quartos de alguma Messalina por aí, ele que colocasse, mas ela não ia ser a empregada dele pra ele estar bem apresentável e bem alimentado pras safadezas dele, ah, mas não ia, mesmo.
O Gumercindo que se preparasse pra quando chegasse em casa. Ele ia ver só uma coisa.

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Enquanto isso, o Gumercindo passou o posto pro porteiro do dia no prédio onde trabalhava bem a tempo de ganhar um abraço apertado da Lavínia, um amor de menina, loirinha de sete anos de idade que ficara eternamente grata a ele por ter encontrado o Eleocádio Rom-Rom, o gato fujão dela no mês passado.
Quando começou a andar, tomando o rumo de volta pra casa, o Gumercindo, alheio à tempestade que assomava em seu horizonte doméstico, fazia umas contas e pensava se naquele mês ia sobrar o dinheirinho pra ele ir ver uma podóloga ou uma pedicure, porque aquela unha encravada tava matando ele de dor. De noite, quando a Jurema ia aquecer os pés dela nos dele debaixo das cobertas, e chegava se encostando, ligeira, batendo no dedão quente de tão inflamado dele, o Gumercindo quase gritava de dor.

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