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sexta-feira, 14 de março de 2014

Solidariedade



Estavam ela e ele na delegacia, sentados na frente da delegada com mais um policial na sala, parado, com os braços cruzados ameaçadoramente atrás dele.
Ele, o Afrânio, magro, estatura mediana, aparência mediana, cabelos castanho-claros, óculos de grau, camiseta dos Smiths, calça jeans e tênis.
Ela, a Glorinha. Baixinha, bonita, cabelos castanho-escuros pela altura dos ombros, vestido tubinho preto e salto alto.
O policial era grande, bem grande. Era meio barrigudo, mas forte, tinha de braço o que o Afrânio tinha de coxa, e de coxa o que o Afrânio tinha de cintura. Parecia uma fortaleza silente, erigida às costas do Afrânio para oprimi-lo sob a ameaça silenciosa de um bofetão inesperado. Ele usava calça jeans, sapato preto, uma camisa branca de manga curta e o colete da polícia civil por cima. Tinha o óculos de aviador Ray-ban preso no colarinho aberto da camisa, e mascava um palito de dentes. Usasse bigode e seria a epítome do policial civil da ficção.
A delegada era bem diferente do que ele esperaria, porém. Loira, jovem, relativamente bonita, vestia uma jaqueta branca imitando couro, brincos de argola grandes como rodas de bicicleta, uma blusa de lurex cinza por baixo da jaqueta, várias pulseiras e anéis... Era ela quem o repreendia verbalmente.
-Pois então, seu Afrânio... O senhor não sabia que agredir uma mulher é crime? E crime sério. O senhor não está ciente da Lei Maria da Penha? - Ela perguntava, ora olhando os papéis diante de si, ora olhando pro Afrânio.
Ele não disse nada. Continuava olhando pra delegada, mas de vez em quando olhava o policial parado atrás de si, temendo levar um cascudo. Nunca estivera naquela situação. Não sabia se rolaria a rotina de filme americano do good cop/bad cop. Se fosse, estava preocupado, até o momento a delegada só o esculhambara, e o sujeito parado atrás dele não dera um pio, se ele fosse o policial bom, não estava bem no papel se fosse o malvado, o acertaria com um tabefe a qualquer instante, perigando nocauteá-lo, e isso na melhor das hipóteses, na pior, arrancaria-lhe a cabeça com um golpe bem aplicado.
A delegada continuou.
-Um homem do seu tamanho, seu Afrânio, batendo em uma mulher... Em uma mulher miudinha, ainda por cima... Mesmo se o senhor não conhece a lei Maria da Penha, mesmo se o senhor é completamente ignorante a todo o nosso código penal, o senhor não tem um pingo de educação? De polimento? De decência? O senhor não teve mãe? Não teve uma pessoa na sua vida pra lhe dizer que o senhor não deveria agredir uma mulher? Que uma mulher, especialmente uma pequenininha que nem essa moça aí do seu lado, é pra ser bem tratada. Protegida. Guardada... Ninguém lhe ensinou nada disso, seu Afrânio?
O Afrânio não disse nada. Olhou pra delegada, pensando que estava, de fato arrependido pelo que ocorrera, e não apenas pela iminência de ser surrado com uma lista telefônica por aquele mamute que estava ancorado atrás dele feito um transatlântico assassino.
A delegada continuou:
-Ficar mudo não vai adiantar nada, seu Afrânio. Agora o mal já foi feito. O senhor aprontou uma boa, seu Afrânio. Aprontou, mesmo. E vai ter que pagar por isso conforme os trâmites da lei.
Ela ergueu os olhos de modo que ficou claro pro Afrânio que ela estava olhando pro policial tamanho litrão que ficara parado atrás dele. O Afrânio chegou a fechar um olho bem apertado achando que levaria uma tapona no ouvido, mas a delegada apenas disse:
-É ou não é, Oliveira?
E o policial atrás do Afrânio gemeu um "é" grave igual um apito de navio.
A delegada continuou:
-Eu ainda estou tentando convencer essa moça bonita a prestar queixa contra o senhor, seu Afrânio. Ela não quer. Certamente tem medo, já que existem muitos "Afrânios" pelo Brasil afora, e a polícia infelizmente não tem condições de garantir a salvaguarda de todas as moças que estão sob a ameaça de um covarde capaz de bater em uma mulher!
A voz da delegada saiu de tom pela primeira vez. O Afrânio percebeu que ela estava brava. De novo, com a visão periférica, ficou esperando o Oliveira lhe dar um cola-brinco, mas ele não se mexeu.
A delegada se recompôs, passou a mão no cabelo, pigarreou:
-Bom... Se tudo correr bem, seu Afrânio, o senhor pode esperar um processo judicial. Pode esperar prisão. Pode esperar medida cautelar... Tudo isso. Tudo pra garantir que o senhor não levante nunca mais a sua mão pra uma mulher. Eu só preciso convencer essa moça adorável, de que ela está certa, e o senhor, seu Afrânio, é que é o errado.
A moça ao lado do Afrânio, bonita, pequenininha, mesmo, com uma expressão fechada, olhou de esguelha para a delegada, depois pro Afrânio.
A delegada se levantou, andou até a moça e amparou-a fazendo com que levantasse, e as duas saíram da sala, deixando o Afrânio sozinho com o Oliveira, que parecia muito maior que uma oliveira.
O Afrânio ficou ali sentado, em silêncio, com o Oliveira atrás de si um minuto, dois, dez, vinte...
A respiração do policial, no silêncio da sala, começou a tomar proporções de terremoto na falha de San Andreas. Cada conjunto de inspiração e expiração faziam a cadeira do Afrânio vibrar sob seu corpo.
A tensão foi ficando insuportável pro Afrânio, que, em pânico, temendo uma surra homérica, acabou desatando a falar, falar alto, colando uma frase na outra achando que, se fosse capaz de se explicar, não apanharia:
-Sabe o que é, seu Oliveira? A Glória e eu, Glória é a moça que tava aqui, a que eu agredi, bom, agredi, não. Quer dizer, agredi, mas não do jeito que a delegada disse. A Glória e eu, a gente trabalha junto, sabe? Já tem um tempo, tipo uns quatro meses, quase cinco. A Glória sempre me tratou bem, desde a primeira vez que a gente conversou. A gente tava falando de uns desenhos animados lá da década de oitenta, que ela via e eu também. A gente nem se falava direito nem nada, só estávamos no mesmo lugar, na mesma roda de amigos depois do expediente, happy hour, sabe? E então eu corrigi um lance que ela falou e tal, e a gente meio que começou a se falar dali em diante, saca?
O Oliveira não disse nada. O Afrânio percebeu que ele também não se mexera, mas continuava respirando pesadamente. Em pânico, não conseguiu conter a diarreia verbal, e seguiu:
-Enfim, ela e eu nos tornamos amigos, sabe? Bons amigos. Quer dizer, eu sempre achei que tinha mais entre nós. Uma sugestão de flerte, manja? Nós ficamos íntimos, ela me contava coisas, falava das preferências sexuais dela, imagine? Me contou do ex-crápula que magoou ela e que era mega conservador , me dizia que tinha se tornado mais aventureira, que queria experimentar coisas novas. Eu, claro, acabava falando das minhas intimidades, também, preferências e tal. Nada explícito, sabe? Só pra manter o quid pro quo, e pra sustentar o interesse dela aceso, porque ela parecia interessada, eu não tava imaginando coisas, entende? No meu lugar tu faria a mesma coisa-
Deteve-se. Havia comparado o Oliveira a si próprio, um notório réprobo social. Esse era o momento do safanão. Encolheu-se, mas nada aconteceu. Esperou, encolhido pela raquetada que o derrubaria da cadeira, ou o soco na nuca que faria sua cara se desprender da cabeça, mas nada acontecia. O pavor crescia, sem saber o que mais fazer, seguiu falando sem controle:
-Mas então, ela continuou me provocando, sabe? Me falando coisas, se abrindo, dizendo como eu era perfeito. Até presente de dia dos namorados ela me deu, Oliveira! Imagina uma coisa dessas? O que que eu ia pensar? Claro que eu ia pensar em besteira!
O Oliveira nada. Continuava parado, ameaçadoramente silencioso atrás do Afrânio feito um Colosso de Rodes prestes a esmagar um barco incauto que ousasse passar entre suas pernas colossais.
O Afrânio, já suando de tão assustado, seguiu:
A gente saía juntos. Cinema, teatro, barzinho, tudo bem, eu admito, não tomei uma atitude, mas é que os sinais dela, embora fossem claros, não eram definitivos, Oliveira, eram óbvios, mas não eram um sinal verde. E eu, que sou tímido, fui levando as coisas em banho maria sem partir pro ataque. Aí, ontem ela me liga, diz que queria sair comigo depois do expediente hoje, que precisava falar comigo. Uma coisa muito séria. Eu fui. Tomei banho antes de sair pro trabalho, me lavei de perfume, me preparei pra quê? Pra ela me dizer que gostava de mim e perguntar se eu sentia o mesmo, né, Oliveira? E eu ia dizer que sim. Que gostava. Que na verdade, esse nosso relacionamento semi-platônico, inclusive tinha me dado uma outra percepção das relações homem/mulher, que eu tinha amadurecido e me tornado um homem melhor, mais apto a encarar os percalços de uma relação por causa dela. Aí, na saída do trabalho, fui pegar ela, a gente saiu, ela toda sorridente, meio misteriosa, quase tímida. Eu, felizão, cheguei a ensaiar de pegar na mão dela enquanto a gente andava. Chegamos no bar, o mesmo barzinho onde a gente foi quando saímos juntos a primeira vez. Ela, sorrindo, me olha e diz que precisa me contar uma coisa, que não podia mais guardar aquilo, eu, transbordando de excitação, nervoso, antevendo o beijo que eu ia dar nela, o que é que ela me diz, Oliveira? O que é que ela me diz?
Afrânio se remexeu na cadeira, virando o torso superior e encarando o Oliveira de baixo pra cima, sem levantar. O Oliveira olhou vagamente pra baixo, ainda mascando o palito, sem dizer nada. A expressão dura, o rosto anguloso talhado em pedra. Sem expressão, exceto alguma coisa nos olhos pequenos e fundos em duas cavernas cavadas ao redor do topo do nariz curto. Talvez fosse ódio, o Afrânio não sabia, mas fosse o que fosse, fez o Afrânio conter a verborragia. Ele respirou fundo, ficou em silêncio por algum tempo. Mas suspirou e falou, em tom bem mais baixo e infinitamente mais pausado:
-Ela me disse que tava namorando, Oliveira. Disse que tinha conhecido um cara ótimo. E que eu tinha ajudado ela a romper um mundo de barreiras... Que sem a minha presença na vida dela, ela jamais teria tomado coragem pra convidar o tal do cara pra sair.
Afrânio segurou o rosto entre as mãos.
-Perdi as estribeiras, mesmo. Dei um pedala nela. Mas foi no topo da cabeça. Um tapa, um cascudo. Coisa que se faz em irmão mais novo. Ela até riu na hora, mas um cara viu, tomou as dores, deu discussão, chamaram a polícia... Enfim, eu acabei aqui. De coração partido e prestes a ter minha vida demolida por uma reação intempestiva, toneladas de timidez e um mal-entendido.
Ficou parado, olhando pra frente. Percebeu o Oliveira se mexer, não se encolheu, achou que, se aquela era a hora do bofetão, a merecia. Mas a mão do Oliveira, do tamanho e peso de um cacho de bananas, pousou em seu ombro, silenciosa.
O Oliveira, como todos os tímidos do mundo, mesmo sem aprovar a reação do Afrânio, sabia como ele se sentia.

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