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segunda-feira, 16 de abril de 2018

Resenha DVD: Assassinato no Expresso do Oriente


Eu fui, e ainda sou, um fã dos livros de Agatha Christie em geral, e das histórias estreladas por Hercule Poirot em particular. O detetive belga de bigode impecável e poderosas pequenas células cinzentas encontrou seu caminho até um lugar especial na minha imaginação quando, entre os oito e os dez anos devorei dezenas de livros da escritora britânica retirados na Biblioteca do SESI, onde minha avó me levava semanalmente para apanhar livros.
Me lembro de entrar na biblioteca, no sexto andar de um prédio na Travessa Leonardo Truda, no Centro de Porto Alegre, e, a despeito da bela vista que as janelas amplas ofereciam do Guaíba, correr direto para a prateleira dos livros de mistério e suspense, e escolher um volume qualquer de Christie com o qual passaria uma semana de voraz leitura.
O mais célebre livro de Christie, Assassinato no Expresso do Oriente, não era meu favorito (essa honraria fica com Os Crimes ABC), mas entendo porque Expresso é o favorito de tanta gente. A história sobre o misterioso crime dentro do luxuoso trem que cortava a Europa de leste a oeste é um competente "quem matou" repleto com todas as características que tornaram Poirot célebre (exceto pelo capitão Hastings, cuja falta se fez notar por mim quando li o livro e já era afeito ao militar reformado que fazia as vezes de Watson para Poirot).
O Expresso, inclusive, já havia sido adaptado em mais de uma ocasião, a mais célebre sendo a versão de 1974, dirigida por Sidney Lumet e estrelada por Albert Finney encabeçando um grande elenco. Poirot por sinal, não um personagem novo nas adaptações. Tendo sido vivido por atores como Finney, Alfred Molina, David Suchet, Tony Randall e Peter Ustinov, o que me deixou bastante curioso quando descobri que haveria mais uma adaptação da obra e que Kenneth Brannagh seria o responsável por trazer o excêntrico detetive bigodudo à vida.
Acabei não indo ao cinema assistir ao filme em novembro passado, mas ao me deparar com ele na locadora, não pestanejei antes de apanhá-lo e levá-lo pra casa.
Ontem à tarde me escorei no sofá e assisti ao longa que abre com Hercule Poirot (Kenneth Brannagh) enlouquecendo o staff de um hotel na cidade de Jerusalém. O caprichoso detetive exige ovos cozidos precisamente por quatro minutos e se recusa a comê-los se não forem perfeitamente iguais. Não é a função de fiscal de ovos que levou Poirot à Cidade Santa, porém, mas a resolução de um crime. Um roubo que tem como suspeitos um rabino, um padre e um imã. Após se recusar a comer seus ovos desiguais e pisar propositadamente em um monte de bosta com o pé esquerdo após ter pisado acidentalmente com o direito (O problema não é a bosta em si, ele explica, mas o desequilíbrio), Poirot vai para junto do Muro das Lamentações onde, ao melhor estilo showman, resolve o caso, usando nada além de suas pequenas células cinzentas (e não "massa cinzenta", conforme a legenda insiste) e sua bengala.
Após essa breve apresentação fica claro que o roteiro de Michael Green quer fazer por Poirot o que Guy Ritchie e companhia fizeram por Sherlock Holmes em 2009, e fica evidente que é capaz de funcionar.
Após resolver o crime e garantir a prisão do culpado Poirot resolve passar um período de lazer na Turquia, onde logo após encontrar seu amigo Bouc (Tom Bateman) recebe um telegrama solicitando seus serviços em Londres para a resolução de um caso em aberto. Precisando chegar à Inglaterra o quanto antes, Poirot pede ajuda a Bouc, diretor do luxuoso Expresso do Oriente, que poderá levá-lo de Istambul até Calais, na França, de onde ele poderá pegar um navio para a Londres permitindo-lhe descansar por três dias desfrutando dos paparicos do famoso trem aproveitando o tempo livre para ler seus livros de Dickens.
Infelizmente, sossego não é o que Poirot encontra em sua viagem, mas sim uma miríade de viajantes tão variados quanto o conde húngaro Rudolph Andrenyi (Sergei Polunin) e sua esposa condessa Elena (Lucy Bointon) e o empresário Biniamino Marquez (Manuel Garcia-Rulfo), a governanta Mary Debenham (Rose Ridley) e o professor austríaco Gerhard Hardman (Willem Dafoe), a víuva caçadora de maridos Caroline Hubbard (Michelle Pfeiffer) e o jovem médico Arbuthnot (Leslie Odom Jr.), o negociador de arte com pinta de gângster Hatchett (Johnny Depp) e seu antourage, com o contador Hector McQueen (Josh Gad) e o mordomo Masterman (Dereck Jacobi), e a princesa russa Natalia Dragomiroff (Judy Dench) e sua fiel criada Hildegarde (Olivia Colman) ou a modesta e deprimida missionária Pilar Estravados (Penélope Cruz), que lotam o vagão da primeira classe.
A viagem compartilhada por pessoas tão diversas carregaria sua cota de tensão naturalmente, mas as coisas se complicam quando uma avalanche impede o avanço do trem, e, na manhã seguinte, um dos passageiros é encontrado morto em sua cabine, esfaqueado uma dúzia de vezes.
Com o trem parado em um local de difícil acesso, há apenas duas certezas:
O assassino continua a bordo, e a única pessoa capaz de desvendar o mistério é Hercule Poirot.
Tendo lido o livro, simplesmente não há suspense em O Assassinato no Expresso do Oriente, de modo que, ao menos pra mim, o grande barato do filme era ver como Green e Brannagh, que além de protagonista é também diretor do filme, iriam brincar com a pulverização de pistas e trazer esses personagens tão particulares à vida através de um numeroso e talentoso elenco.
Infelizmente, o mistério fica bastante escanteado, suponho, mesmo para quem não conheceu a obra literária, com a investigação se restringindo a pequenos interrogatórios individuais conduzidos por Poirot nos vagões do trem.
Mesmo as breves tentativas de acrescentar um pouco de tensão à mistura, com uma sequência de perseguição que eu francamente não lembro se existe no livro, se tornam forçadas em meio ao marasmo, e com menos de duas horas de filme, tantos personagens acabam sendo pouco mais que figurinhas obrigatórias num álbum ao invés de pessoas.
Brannagh ainda escorrega ao escolher o foco das atenções da história, Michelle Pfeiffer faz o que pode com sua caça-maridos, da mesma forma que Gad e Jacoby se seguram com seus personagens da maneira que podem enquanto estão em cena. Outros, como Dafoe e Colman, mal e mal fazem figuração de luxo, enquanto o talento de Judi Dench é francamente desperdiçado, enquanto isso, Rose Ridley ganha mais tempo de tela, mas consegue a proeza de ser mais irritante aqui do que em Os Últimos Jedi.
À certa altura, a impressão que temos é que o diretor estava mais preocupado em juntar uma platéia de pares acima da média para vê-lo atuar do que em aprofundar seus coadjuvantes. O resultado seria consideravelmente pior se Brannagh não fosse tão bom ator e não estivesse se divertindo tanto em dar vida ao bigodudo detetive. A bigodeira, por sinal, é um capítulo à parte.
Eu nunca achei que os outros intérpretes de Poirot tivessem pelos faciais que fizessem justiça à obsessão que Poirot nutre por seu bigode na literatura (me lembro de uma história onde ele elimina um sujeito da lista de suspeitos de um crime por conta de um bigode indigno), Brannagh remediou isso colocando quase um pequeno mamífero em cima dos lábios.
Tivessem Brannagh e Green mantido em todo o filme a mesma disposição divertida do bigodão de Poirot e de sua veia obsessiva-compulsiva algo cômica do primeiro ato do filme, talvez o longa terminasse melhor. Memorável, até. Como esse não é o caso, com a resolução do crime envolta com uma aura excessivamente dramática e cheia de tomadas de efeito meio bregas, Assassinato no Expresso do Oriente se encerra como um bom passatempo para o domingo de tarde, e pouco além disso.
Com sorte, na vindoura sequência que deve adaptar Morte no Nilo, Brannagh se aproxime mais do equilíbrio que seu personagem tanto alardeia, e entregue o que os fãs de Poirot e Agatha Christie esperam.

"-Eu só consigo ver o mundo como ele deveria ser. Isso faz com que uma imperfeição se destaque como o nariz em seu rosto."

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