Pesquisar este blog

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Resenha Cinema: Ford vs Ferrari


Anda difícil, nos dias de hoje, assistir a um filme que não esteja interessado em começar uma franquia, empurrar uma agenda ideológica, ou as duas coisas ao mesmo tempo. O cinema se tornou um campo de batalha financeiro, com os estúdios se esmurrando para ser que nem a Marvel, e um campo de batalha político onde os espectros tentam desesperadamente empurrar suas ideias goela abaixo da audiência (os liberais com muito mais frequência do que os conservadores, devemos admitir) e esse uso da mídia cobra seu preço.
Há uma debandada de cineastas mais autorais das salas de cinema (Scorsese foi buscar guarida na Netflix e vislumbra aposentadoria, Woody Allen fez o mesmo na Amazon, antes de seu acordo com o estúdio do serviço de streaming ser desfeito por escândalos de assédio sexual), e uma raridade de longas interessados em apenas contar uma história, em especial de bons longas interessados em apenas contar uma história. Por estranho que possa parecer, esse tipo de filme se tornou um risco para os estúdios, que hesitam em financiar projetos que podem não gerar lucro, ou sequer cobrir o custo de produção.
Então é de se imaginar que quando James Mangold foi à Fox com Ford vs Ferrari, os executivos tenham ficado bastante ressabiados com o potencial do longa que narra a história da rivalidade entre as duas montadoras do título nas pistas de corrida na década de 1960.
O longa abre com Carroll Shelby (Matt Damon), um ex-piloto que precisou abandonar as pistas por conta da hipertensão. É a narração de Shelby que nos explica o que acontece com o piloto ao alcançar 7000 RPMs, estabelecendo em suas primeira linhas o porquê de um piloto arriscar tanto para conseguir ir um pouco mais rápido a cada volta.
Após pendurar o capacete, Shelby se torna um vendedor de carros modificados e gerente de pequenas equipes de automobilismo locais que tem entre seus pilotos o britânico briguento de 45 anos Ken Miles (Christian Bale). Os dois homens estão perto de seus piores momentos quando os encontramos.
Shelby está contando histórias de corrida a homens em crise de meia-idade que querem um carro esportivo, e Miles não encontra nenhuma grande equipe que queira bancá-lo como piloto e, pra piorar, viu sua oficina mecânica ser fechada pela receita federal por atraso no pagamento de impostos.
Enquanto os dois estão amargando seus respectivos fundos do poço, em Detroit um evento não-relacionado pode mudar a vida dos dois.
Henry Ford II (Tracy Letts) está emputecido com o modo como as coisas estão acontecendo na fábrica fundada por seu avô.
Em 1963 a Ford não é mais o que costumava ser, e Henry quer novas ideias que levem a empresa de volta ao que ele considera seu lugar de direito. Ele não chega a ficar particularmente interessado na ideia que o executivo Lee Iacocca (Jon Bernthal) lhe propõe:
Para Iacocca, a Ford perdeu espaço porque não é uma marca sexy. James Bond não dirige um Ford. Sophia Loren não dirige um Ford. A empresa não fala com os jovens. Não tem estilo. Não é a Ferrari, que encontrou a perfeição em forma de chassi, carroceria, pneus e motor.
Mas a Ford está montada na grana enquanto a Ferrari foi à bancarrota em busca de dita perfeição.
O plano do executivo é comprar a Ferrari, e eventualmente Henry aceita, o plano, porém, naufraga quando um insultado Enzo Ferrari (Remo Girone) não apenas nega a proposta, mas esculhamba a montadora americana, sua fábrica, seus carros e até seu presidente.
É a deixa para que Henry Ford II ordene a Iacocca que faça o que for necessário para que a Ford tenha uma equipe de corrida. Não qualquer equipe de corrida, mas uma equipe de corrida capaz de vencer a Ferrari nas 24 Horas de Le Mans, a corrida jamais vencida por um automóvel americano e na qual a escuderia italiana vem construindo uma extensa hegemonia.
Para isso, Iacocca vai atrás de Shelby, para convencer o engenheiro a construir um automóvel capaz de bater os azougues escarlates, e quando o ex-piloto aceita a empreitada, ele sabe que há apenas um homem que ele quer atrás do volante: Miles.
Juntos, os dois começam uma incansável luta contra o tempo, contra as leis da física e até mesmo contra a truculência de Ford e seu segundo-em-comando, Leo Beebe (Josh Lucas), para chegar em Le Mans com chance de destronar a Ferrari.
Que bom que a Fox resolveu arriscar.
O longa de James Mangold é um tipo de filme que não se faz mais nos dias de hoje. É entretenimento com cérebro e coração, interessado apenas em contar a sua história honrando seus personagens sem nenhuma preocupação colateral. Palmas para os roteiristas Jason Kelly, Jez e John-Henry Butterworth, que não se furtam de mergulhar de cabeça no que realmente importa para a trama sem deixar de temperar o cerne de Ford vs Ferrari com personagens secundários que jamais parecem excessivos ou acessórios. Do executivo irritante de Lucas ao braço-direito de Shelby, Phil Remignton (Ray McKinnon), passando pela esposa de Miles, Molly (Caitriona Balfe), que em uma ótima sacada do filme não se opõe às aspirações automobilísticas do marido, mas as apóia, e o filho do casal, Peter (Noah Jupe), que idolatra o pai de maneira incondicional, todos estão ali para melhorar o longa, e não apenas para inchá-lo.
Eles orbitam dois protagonistas que turbinam o longa com atuações muito acima da média. Damon está excelente como Carroll Shelby, um sujeito dividido entre suas obrigações profissionais e seu amor pelo automobilismo que precisa fincar o pé para honrar seus contratantes ao mesmo tempo em que tenta fazer o que sabe ser o certo mesmo que isso custe sua reputação e seu ganha-pão.
Christian Bale, por sua vez, mete o pé como de costume e se transforma em outra pessoa para dar vida a Miles, um desses personagens de quem não podemos evitar de gostar. O sujeito anti-social que não sabe lidar com as pessoas, mas que tem uma habilidade quase sobrenatural para fazer uma coisa e uma coisa, apenas, mas também é um marido dedicado e um pai amoroso.
Com grandes diálogos, excelentes atuações, sequências de corrida bem filmadas e com pouquíssimo uso de computação gráfica Ford vs Ferrari provavelmente foi a estupenda sessão de cinema que eu mais me arrependo de não ter assistido no ano passado, merecedora de todos os elogios que recebeu e láureas às quais foi indicado, e certamente vale a locação.
Assista, é, fácil, um dos melhores filmes de 2019.

"-Você vai construir um carro para vencer a Ferrari com... A Ford?
-Correto.
-E quanto tempo você disse a eles que levaria? Duzentos... Trezentos anos?
-Noventa dias."

Nenhum comentário:

Postar um comentário