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terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Resenha Cinema: O Escândalo


Bem antes de o movimento Me Too surgir na esteira de dezenas de acusações de mulheres contra atores, diretores e produtores de Hollywood, a mídia norte-americana já havia experimentado um pouco de exposição negativa por conta de diversas denúncias que chacoalharam as estruturas de poder de uma das maiores instituições da imprensa dos EUA, a Fox News.
O braço de notícias da Fox, então propriedade do magnata australiano Rupert Murdoch revolucionou a TV a cabo ao se esforçar para suprir uma lacuna que todas as demais emissoras grandes pareciam temer: Ser o canal dos ultra conservadores.
Sob a liderança de Murdoch e do gigante midiático Roger Ailes, a Fox News se transformou num oásis para uma imensa parcela da população americana composta por evangélicos ultra-religiosos machistas que morrem de medo de imigrantes e de socialistas e que só largarão seus rifles semi-automáticos depois de mortos (obviamente é um exagero, mas não está terrivelmente longe da verdade.).
Foi essa emissora que, no meio de 2016, foi assolada por denúncias de assédio sexual levadas a público por diversas apresentadoras e funcionárias da empresa.
O Escândalo começa um pouco antes disso, durante as primárias eleitorais republicanas quando a apresentadora Megyn Kelly (uma irreconhecível Charlize Theron) é abertamente hostilizada por Donald Trump e seus apoiadores após ter questionado a maneira como o então candidato se referia às mulheres.
Após pedir guarida a seu chefe, Roger Ailes (um também irreconhecível John Lithgow), Megyn ouve que deve ter paciência e esperar que a opinião pública esqueça o que passou já que ninguém acredita que Trump será o presidente, mas conforme o magnata imobiliário se torna não apenas o candidato republicano, mas também o candidato republicano que assiste Fox News dia e noite, Kelly começa a sentir os efeitos mais negativos da confrontação dentro e fora da empresa.
Assim como Gretchen Carlson (Nicole Kidman).
Quando a encontramos, a ex-apresentadora do campeão de audiência Fox & Friends já sabe que sua batata está assando na emissora. Ela deixou um dos programas mais assistidos do canal e foi atirada para o horário do almoço, quando ninguém assiste TV, por ser "difícil de lidar" e "não se dar bem com os rapazes". Ainda assim, a ambiciosa apresentadora conseguiu aumentar a audiência do horário em que foi colocada, mas é observada de perto por Ailes, que não perde nenhuma oportunidade de esculhambar as decisões de Gretchen, seja a de organizar uma pesquisa a respeito da restrição à venda de armas semi-automáticas, seja a decisão de apresentar o programa sem maquiagem em um ato de afirmação feminina.
O terceiro elemento nesse tripé é justamente uma produtora do programa de Gretchen Carlson, a jovem e ingênua Kayla Pospisil (Margot Robbie, brincando de ser linda). Kayla é a única personagem central do filme que não tem uma contraparte real, uma "millenial cristã", que cresceu em uma casa onde não se ouve "música secular" no seio de uma família que tem o logo da Fox News queimado na tela da TV porque jamais trocam de canal.
Ela é uma conservadora uma geração mais jovem que Kelly e Carlson, mas igualmente ambiciosa, e almeja um espaço diante das câmeras onde se imagina como uma "influenciadora no espaço de Jesus", e que terá sua ambição testada no escritório privado de Roger Ailes, onde descobre que a ascensão profissional na Fox News tem um preço, ao menos para mulheres bonitas...
O Escândalo realmente engrena quando Carlson é demitida da Fox News e processa Ailes por assédio sexual. Seus advogados acham que a luta será difícil, mas Gretchen tem certeza de que outras mulheres darão um passo à frente, corroborando suas alegações, o grande problema é que a própria estrutura da Fox News desencoraja tal comportamento de cima abaixo. Nem mesmo a linha telefônica para queixas sobre comportamento inapropriado da companhia é anônima e pode ser gravada, garantindo que a vida de uma funcionária que apresente uma queixa contra um superior possa se tornar muito, muito difícil.
Enquanto Gretchen espera que mais vozes se juntem à sua, Megyn Kelly precisa decidir em que lado da querela irá ficar.
Ela é uma apresentadora top de linha na empresa e acabara de passar por uma dose maciça de escrutínio e misoginia após ousar questionar o tratamento que o candidato republicano dispensava à mulheres, e subitamente vê a possibilidade de um levante feminino tomar corpo nos corredores da empresa onde trabalha, mas ela estará disposta a arriscar sua carreira para tomar partido?
O Escândalo é um filme muito mais leve do que a premissa sugere.
Não chega a ser surpreendente. O diretor, Jay Roach é egresso de diversas comédias que incluem a trilogia Austin Powers e os dois primeiros Entrando Numa Fria, além de Um Jantar para Idiotas e Os Candidatos, mas ao mesmo tempo é um sujeito que não é estranho à política e nem a casos escandalosos, já que também foi o responsável por Recontagem, Virada no Jogo e Trumbo: Lista Negra.
Acompanhando Roach está o roteirista Charles Randolph, responsável pelo script do ótimo A Grande Virada (fato aleatório: Ele também escreveu um dos meus preferidos pessoais, A Vida de David Gale), outro longa que foi capaz de tratar um evento muito sério, no caso o estouro da bolha imobiliária que estremeceu a economia dos EUA, de maneira didática e divertida.
A combinação dos esforços de Roach e Randolph dá uma pegada menos dramática a O Escândalo, sem permitir que o filme se dispa de toda a gravidade do caso que retrata, muito disso se deve à maneira como a Megyn Kelly de Theron por vezes quebra a quarta parede e se dirige diretamente à audiência explicando os pormenores do funcionamento da Fox News. A maneira quase conspiratória como ela explica quais são as principais peças no tabuleiro e o que uma pessoa tem que fazer para prosperar na rede de notícias conservadora ajuda a situar o espectador que não está familiarizado com a Fox News ao mesmo tempo em que suaviza a Megyn Kelly de verdade, uma apresentadora que não é reconhecida por seu carisma.
Ela equilibra as coisas quando o longa claudica ao não conseguir se decidir ao certo sobre seu tom ou estilo visual. Vez e outra o filme transcorre quase como um documentário, com a câmera na mão e whip zoom pra lá e pra cá, em outras insere seus atores em imagens reais de arquivo e ao não se decidir sobre qual estética prefere adotar, já que outros segmentos são filmados de maneira tradicional, a falta de consistência pode se tornar um pouco incômoda à certa altura, embora nada que estrague a experiência.
O elenco, no final das contas, é o grande trunfo de O Escândalo.
Theron está realmente fenomenal, assim como Nicole Kidman, que se vira muito bem com um papel relativamente menor, e Robbie que vai de crente ingênua a delatora desiludida em um arco que, apesar de rápido não é forçado. Um pilar do filme que foi solenemente ignorado na temporada de premiações, porém, foi Lithgow.
Embaixo de um rio de maquiagem o ator se banqueteia ao viver o desagradável gordão Ailes com requintes de espírito predador corporativo e paranoia. Ele não ter sido lembrado para nenhum prêmio é realmente um crime, pois seu personagem abjeto é a gosma que une as histórias das três protagonistas.
Mas nem só de Theron, Lithgow, Robbie e Kidman se faz O Escândalo. Kate McKinnon tem um divertido papel como uma lésbica no armário que trabalha como produtora no programa de Bill O'Reilly, Malcom McDowell aparece como Rupert Murdoch em pessoa, e ainda há Allison Janney, Rob Dellaney, Mark Duplass, Connie Britton, Nazanin Boniadi, Richard Kind, Alice Eve e P.J. Byrne todos competentes seja em papéis de apoio ou pontas.
Com um excelente trabalho de maquiagem, mais notadamente as quase máscaras que Theron e Lithgow usam para se tornarem Megyn Kelly e Roger Ailes (embora haja cabelo, nariz e queixo falsos em Nicole Kidman, também), figurinos precisos e edição ligeirinha, O Escândalo é um bom filme baseado em uma história real muito importante.
É um longa a respeito das provações pelas quais mulheres passam ao seguir suas ambições e da objetificação à qual muitas delas se sujeitam na busca de seus sonhos profissionais. Talvez, essa história e essa mensagem merecessem um filme melhor, mas ao não se furtar de tomar partido e apresentar seu ponto de vista de maneira incisiva e literal, ele se torna digno de audiência, embora ele vá ser melhor aproveitado por pessoas que gostam de política e que tem algum conhecimento sobre o que é a Fox News...

"-Você tem que adotar a mentalidade de um policial de rua irlandês: O mundo é um lugar ruim, as pessoas são idiotas preguiçosas, minorias são criminosos, sexo é nojento, mas interessante. Pergunte a si própria, 'o que iria assustar minha vó e irritar meu avô?' e isso é uma notícia da Fox."

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