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sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Romeu e Julietta.


Romeu pisou em uma enorme pilha de excremento de cachorro. O que disse, foi precisamente o nome do que acabara de pisar:
-Merda!
Queria cortar caminho, estava atrasado para o trabalho, e pensou em economizar uns minutos de caminhada atalhando pelo parque. Esquecera, porém, das velhinhas e velhinhos aparentemente inocentes que levam seus medonhos cães poodle, Yorkshire e Chihuaua e Pequinês para passear na grama das praças e parques sem, no entanto, recolher os dejetos dos bichos conforme reza a lei.
Era pensando nisso que Romeu percebia que o estrago fora ainda maior do que ele imaginava. Havia placas daquela gosma amarelada até nos cadarços de seu tênis branco e azul. Romeu correu até um banco, descalçou o sapato imundo e o esfregou na grama com vigor. O resultado não foi dos melhores. Espalhou a sujeira pela lateral do corpo do tênis e acentuou o mau-cheiro. Acentuou muito.
Romeu saltou num pé só até um bebedouro próximo, onde, ignorando a insalubridade do que fazia para futuros usuários do aparato, lavou o tênis de forma algo rudimentar.
Agora, se estava com um pé de tênis molhado e com uma mancha esverdeada suspeita na lateral, pelo menos não fedia, nem carregava consigo evidências muito vívidas do relaxamento de outrem.
Andou mais rápido, tentando ser veloz o suficiente para recuperar os minutos perdidos, mas não tanto á ponto de suar.
Romeu suava demais. Ele suava muito, mesmo, suava á ponto de escorrer suor de sua testa, se acumular em suas espessas sombrancelhas e respingar em seus olhos quando ele menos esperava fazendo-os lacrimejar por conta da ardência.
E, á despeito do esforço dele, era o que ocorria naquele momento. Romeu andava rápido para cobrir no menor tempo possível as duas quadras que o separavam do local onde trabalhava. Uma empresa de consultoria empresarial. E, enquanto corria para evitar um novo atraso, suava abundantemente, em especial nas costas, na testa e nas axilas.
Quando entrou no prédio da empresa consultou o relógio e ficoi aliviado ao constatar que ainda faltavam quinze minutos para as oito da noite, horário em que se iniciaria seu plantão.
Cumprimentou o porteiro, Waldir, cumprimentou a telefonista Vanessa, e se acomodou em sua cadeira, diante de dois monitores onde, durante a madrugada assistiria filmes, leria e-mails, veria episódios baixados ilegalmente de séries que gostava, e, se fosse o caso, atenderia á algum cliente que passasse por dificuldades técnicas.
Romeu gostava dos plantões. Eram doze horas de trabalho que rendiam três dias de folga, e raramente havia trabalho de verdade á fazer. Geralmente seu trabalho se limitava á orientar o imbecil do outro lado da linha á reiniciar o computador, ou reconfigurar os firewalls, ridiculamente simples.
Além disso, rendiam doze horas de privacidade no escritório, onde a conexão á intenet era mais rápida que em sua casa, onde havia café á vontade, ao lado de duas lanchonetes de boa qualidade, ali ele ouviria música de seu MP-3 e esperaria um eventual contato de Vanessa, a telefonista.
As primeiras quatro horas seguiram sem problemas, até que, perto das onze da noite, Vanessa ligou avisando que tinha uma chamada.
Romeu vestiu os fones, tirou o volume da música e deu pause no video pornô que assistia no rebtube, pigarreou:
-Suporte técnico, Romeu, boa noite?
A voz do outro lado da linha era macia. Uma mulher, ela parecia ansiosa, não se apresentou, mal respondeu ao boa-noite de Romeu, e foi logo despejando os problemas técnicos pelos quais passava. Não parecia nada de muito complicado, ela tinha problemas para obter conexão com a internet, precisava enviar cinco relatórios ainda naquela noite ou teria problemas.
Romeu começou com o básico, sugeriu que ela reiniciase o computador, o que ela fez meio á contra-gosto e entre resmungos. Foi rápido, ela disse que funcionara e agradeceu desligando.
Romeu gostou da voz da mulher. Era uma bela voz.
"Certo que é uma gordona." pensou ele.
Retomou as atividades, não terminou de assistir o video, a pornografia não estava lhe agradando, muito gráfica. Achou que um filminho erótico com história seria mais legal. Pensou em Os Sonhadores, mas desistiu, muito gay. Tocou Transformers 2 no PC e assistiu sem desgrudar os olhos da tela nem para ir ao banheiro.
Duas horas depois, desceu até a rua, conversou rapidamente com Waldir, o porteiro, correu do outro lado da rua, comprou um chesse coração, dois bom-bons e uma fanta dois litros, voltou para o escritório, e, ainda nem tinha sentado quando o telefone tocou, Vanessa e outra ligação.
-Suporte técnico, Romeu, boa noite?
Era, de novo, a mulher de antes. Ela respondeu a saudação de Romeu, e disse que a internet funcionava mas ela não conseguia acessar seu e-mail. Precisava dele para trabalhar, tinha muito o que fazer... Estava exasperada, mas não foi grossa, sorte dela, quando os clientes eram grosseiros Romeu pedia-lhes que aguardassem um minuto e ia fazer alguma coisa. Ia ao banheiro, lia uma revista, assistia um pouco de um filme, ou ouvia música. Dava um tempo ao grosseiro, ou grosseira para que se acalmasse. Ali, porém, não faria isso. Pediu algumas informações, avaliou as alternativas e sugeriu que ela mexesse nas configurações da internet. A orientou, ela seguiu suas instruções e, ao final, logrou sucesso.
Ela agradeceu novamente e desligou.
Romeu ouvira mais da voz dela nessa ligação... Mais que isso, ouvira respiração dela enquanto seguia suas instruções sem dizer nada. Suspiros, inspiraçoes e expirações intercalados por "E agora?", "Apareceu uma caixa de texto.", "é assim?". Romeu gostou. Fora quase... Ele pensou "erótico", mas se corrigiu para "romântico" antes de pensar em toda a sentença. Romeu corrigia os próprios pensamentos como se fossem monitorados, era um de seus hábitos.
Ele seguiu com sua rotina, comeu o lanche e bebeu muito refrigerante enquanto assistia em sequência dois episódios de Smallville, mijou feito um cavalo quando finalmente foi ao banheiro.
Logo depois, Vanessa ligou, nova chamada. Por um instante ele desejou que fosse a sua interlocutora das últimas duas vezes, mas não era, era um sujeito com problemas para abrir arquivos recebidos por e-mail, Romeu solucionou o problema rapidamente.
Ás três e meia, quando se decidia se veria outro video pornô ou Máquina Mortífera 4 outra ligação, ele respirou fundo e disparou:
-Suporte técnico, Romeu, boa noite?
Era a mulher de antes. Parecia mais aliviada, menos tensa. Perguntou do outro lado da linha se era o mesmo rapaz com quem ela falara antes, Romeu sentiu um pouco de desapontamento, ela sequer lembrava de seu nome ou voz? Mas se resignou rapidamente. Ele era um sujeito pouco notável mesmo ao vivo. Estatura mediana, cabelos e olhos castanhos, rosto comum, pés tamanho 41... Romeu não era alguém que se destacasse na multidão.
Ele confirmou que sim, era o mesmo técnico das vezes anteriores.
A mulher do outro lado da linha agradeceu com sua voz agradável, mais agradável agora, que ela não estava envolvida com os afazeres do trabalho. Ela disse que era bom saber que podia contar com a ajuda da empresa de Romeu, e que era melhor ir pra casa dormir agora, ás quatro da manhã do que ainda mais tarde, afinal, ela teria que trabalhar na manhã seguinte e qualquer forma.
Romeu disse que ela não precisava agradecer, que ele apenas fizera seu trabalho, ajudando-a a fazer o dela. Disse que se sentia bem em saber que ela conseguira terminar o serviço e poderia voltar pra casa e curtir o resto da noite com o marido ou namorado. Essa parte ele fizera questão e incluir, sentia necessidade de sondar sua interlocutora para descobrir se ela era comprometida. Ela, porém, era muito discreta, e apenas agradeceu novamente, desejando á Romeu uma boa noite e um bom trabalho.
Antes de se despedir, Romeu perguntou:
-Qual o seu nome?
A voz maviosa da mulher irrompeu do outro lado da linha:
-Julieta. Tchau.
Ela desligou antes que Romeu fizesse a associação óbvia, que levou alguns segundos.
Durante algum tempo ele imaginou se não seria uma brincadeira a mulher. Ela fora discreta até no agradecimento, talvez estivesse apenas querendo encurtar a conversa com o que parecia uma boa piada.
Romeu tentou seguir assistindo seriados ou ouvindo música, mas
àquela altura, tornou-se impossível.
Foi até a sala de Vanessa, e inventando um pretexto, conseguiu o nome e telefone da empresa da última chamada.
Voltou à sua sala e vasculhou os arquivos da empresa atrás de informações.
Era uma butique, vendia roupas, acessórios e velas aromáticas, chamava-se Canto chique, o que deixou Romeu algo desgostoso, a proprietária, porém, não se chamava Julieta, e sim Erotildes Gomide Rêgo. Romeu entendeu que alguém com aquele nome preferisse escondê-lo. Estava prestes á abandonar aquele surto de curiosidade quando encontrou o arquivo digital com as informações de Erotildes, ela era uma mulher de certa idade, 56 anos. A voz que Romeu ouvira era, sem sombra de dúvida, de alguém bem mais jovem.
Ele vasculhou o arquivo de empregados do Canto Chique, e ali encontrou, Julietta Veroneze Farias, assim mesmo, com dois "T". Procurou as informações dela, vinte e sete anos, um á mais do que Romeu. Tinha uma foto, 3x4, mas nítida. Ela tinha cabelos pretos compridos, olhos castanho claros, era bonita. Magra. Seria casada? Não havia ese tipo de informação nos arquivos de funcionários. Ele não assistiu mais nada, nem ouviu música.
Julietta fora tão gentil quando ligara pela última vez. Ligara específicamente para falar com ele, agradecê-lo.
Estaria ela, de algum modo, interessada por ele? Por sua voz, por sua eficiência...? Ou ela era apenas uma dessas raríssimas pessoas muito legais que conhecemos de vez em quando? Essas que dão "bom dia" pra qualquer porteiro ou guarda e agradecem por serviços ou ajuda com mais que um "brigado" rápido enquanto vão embora?
Romeu pensava nisso.
Estava sozinho á bastante tempo. Tinha muitas obrigações, não sabia se era, de fato, o momento de se envolver com alguém. Além do mais, ele não era a pessoa mais feliz do mundo com a própria aparência. Aprendera á conviver consigo, o que é bem diferente de ter uma auto-imagem saudável, de qualquer forma, era como Romeu se sentia.
Mas refreou-se. Estava mantendo relacionamentos imaginários sem sequer saber se Julietta tinha algum interesse nele ou era apenas uma pessoa gentil.
Tentou pensar em outra coisa. Assistiu Lost, mas não fazia sentido, tentou Máquina Mortífera 4, mas não funcionou. O problema era ele, era Romeu. Ele não parava de pensar naquela estranha.
Seu plantão terminou. De manhã ele se despediu de Waldir, e caminhou com Vanessa até o ponto de ônibus falando amenidades. Quando o ônibus dela chegou se despediram.
Romeu andou até o parque onde tivera seu pequeno acidente na noite anterior. Chegou a tomar o rumo de casa, mas estacou. Lembrava do endereço da Canto Chique. Seria uma caminhada de meia hora até lá. Depois, poderia pegar um ônibus, ir pra casa e dormir. Naquele momento precisava, ao menos, saciar a curiosidade.
Andou pelas ruas, imaginando se seria um momento mágico ou cósmico quando encontrasse Julietta, se ela, ao olhá-lo nos olhos saberia quem ele era, se ela reconheceria sua voz se falasse. Andou criando fantasias, de como seria se ele tivesse muito dinheiro, se pudesse levá-la para jantar em um restaurante sofisticado, ou se fosse mais bonito, e ela, ao olhá-lo, mesmo sem reconhecê-lo, o desejasse.
Imerso nesses devaneios caminhou sem perceber até o Canto Chique. Ao chegar, deparou-se com a loja aberta. Olhou na vitrine procurando por Julietta, mas viu apenas os produtos que a loja vendia. Entrou fingindo desinteresse e olhando ao redor até ver, atrás do balcão, aquela moça. Quase da mesma altura que Romeu, os cabelos pretos escorridos por cima dos ombros, os olhos castanhos, algo inchados, provavelmente por dormir pouco. Mas a foto 3x4 não lhe fazia justiça, Julietta era muito bonita, tinha lábios bem desenhados, um nariz arrebitado de bem ajustado em seu rosto, e era, de fato, gentil. Ao pousar os olhos sobre Romeu, sorriu, um sorriso lindo, como se ele fosse um amigo que ela não via á muito tempo. E lhe desejou bom dia com a mesma voz canora que ele ouvira ao telefone.
Romeu, porém, congelou. Ao perceber a dimensão da beleza de Julietta, ele não conseguiu dizer nada, sorriu sem jeito e saiu pedindo desculpas num sussurro.
Passou meses pensando nela. Torcendo para que ela telefonasse num de seus plantões. Mas isso não aconteceu. Nem ele tinha coragem de voltar ao Canto Chique depois do papelão que fizera na primeira incursão. Deixou aquilo de lado. Aprendeu a conviver com o vexame e apenas com a possibilidade.
Mal sabia ele que, por muito tempo, dois pensamentos se dividiram na mente de Julietta. Aquele técnico em informática que a atendia no suporte técnico da consultoria empresarial e se chamava, imagine, Romeu. Ela ligou várias outras vezes para o suporte técnico esperando ouvir sua voz de novo, mas isso jamais aconteceu, e ela imaginou que, talvez, os técnicos fossem de uma empresa terceirizada que não trabalhasse mais para a consultora, de modo que ela jamais o ouviria de novo.
Outro pensamento recorrente era o daquele jovem que, na manhã seguinte ás desventuras de Julietta na internet e seus breves diálogos com Romeu, entrou na loja de manhã, e a encarou como se ela fosse a mulher de sua vida por breves instantes para então, sair pela porta.
Julietta pensava com frequência, também, naquele homem, mas superou isso, e aprendeu a viver apenas com a possibilidade.
Romeu e Julietta moravam á oito quarteirões um do outro, mas jamais se cruzavam devido aos horários. Eram, inclusive, frequentadores do mesmo supermercado e da mesma locadora. Um dia, Romeu devolveu um DVD alugado na manhã seguinte por Julietta. Mas eles jamais se viram ou ouviram novamente.
Em algum lugar William Shakespeare certamente balançava a cabeça de desgosto ao vê-los.

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