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quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Cronologias...


Vinha andando pela Washington Luiz, guarda-chuva sob do braço, o céu carregado acima de si, prenunciando o temporal, e pensando se ainda haveria tempo para levar seu cachorro para dar uma voltinha antes que o mundo desabasse como fizera durante o dia inteiro nas cercanias da metrópole.
Andava ouvindo o ruído de seu tênis a chapinhar na água empoçada nas depressões da judiada calçada e o eventual som dos carros a trafegar no que era uma das mais tranquilas ruas do Centro.
Acabara de passar em frente à casa de uma moça com quem saíra pouco tempo antes e de quem, por mais bonita, maneira e exótica que fosse, ele não se arrependia de ter desistido, quando viu, andando na direção oposta, um homem.
Tinha cerca de metro e oitenta e cinco de altura. Talvez um e oitenta e quatro... Quiçá um e oitenta e seis. Os cabelos grisalhos estavam presos em um coque mal ajambrado na parte posterior de sua cabeça. Tinha uma barba rala, comprida e espetada sob o maxilar e o queixo, onde tornava-se pontuda, e era também rajada de branco. Ele usava óculos de grau com uma armação preta retangular que pouco faziam para esconder-lhe as fartas sobrancelhas, essas plenamente negras.
Tinha seus cinquenta e tantos anos. Talvez sessenta. E vestia uma calça jeans escura, uma camisa branca e um blazer preto. Nos pés calçava tênis brancos bastante judiados e que pareciam confortáveis barbaridade, e portava uma pasta de couro preta, não dessas pastas executivas, mas uma pasta sem alças, bastante cheia apoiada junto ao flanco esquerdo.
Havia algo de familiar naquele homem que atraiu sua atenção. Algo naquele rosto marcado, de pele muito branca com algumas rugas profundas ao redor dos olhos castanho-escuros... O que poderia ser?
Ele não sabia, ainda assim, não foi capaz de desviar o olhar do tal sujeito, que, ele então percebeu, também o encarava fixamente.
Estranhou o fato de não ter desviado o olhar, mas o sustentado, e perceber que o outro também fazia o mesmo.
Quando se cruzaram, o velho baixou os olhos e maneou a cabeça, seguindo seu caminho. O jovem parou a observá-lo, vendo-o se afastar andando com passos decididos, e apenas então, deu-se conta:
Aquele era ele.
Sim. Por surreal que pudesse parecer, aquele homem com quem dividira a calçada era ele daqui a alguns anos. Ele não sabia como, não sabia por que, mas tinha a certeza inabalável de que aquele homem era ele próprio em vinte ou vinte e cinco anos. Não chegou a formular teorias que explicassem tal prodígio tomando forma em um ponto qualquer do Centro de Porto Alegre. Não parou para admirar a beleza surreal de poder vislumbrar a si próprio na terceira parte da vida, nem para conjecturar o que estaria sentindo sua contraparte ao ver-se a si próprio aliviado do peso dos anos que agora os separavam. Não. Nada disso lhe passou pela cabeça. Tinha um único pensamento:
Deveria perseguir àquele homem e dizer que era ele próprio? Ele saberia? Ou ficaria tão chocado e estarrecido quanto estava sua persona contemporânea? Ele não tinha como saber. Não ousava deduzir que tipo de ocorrência ímpar firmara aquele encontro improvável, tampouco prescrutar as intenções de seu eu do futuro, mas ainda assim, tinha ganas de segui-lo e agarrá-lo pelo colarinho dizendo "Sou eu!", "Somos eu!". Mas e então? O que aconteceria? E se, ao se aproximar do homem notasse que não fora mais senão desatenção que o fizera tomar aquele desconhecido por uma encarnação futura de si mesmo? E se ao olhá-lo de frente após abordá-lo de forma impensada notasse que tudo não passara de uma ilusão de ótica?
Ou pior...
E se abalroasse o homem com sofreguidão, o chacoalhasse pela camisa e descobrisse que sim, era ele mais velho? E se fosse capaz de persuadi-lo a partilhar informações acerca dos dias vindouros e então ficasse sabendo que nada de bom lhe era reservado no futuro? E se descobrisse as tragédias que estavam por vir, as mazelas que seria incapaz de evitar, se agendasse as desgraças todas com antecedência, mas nada pudesse fazer para evitá-las? De que adiantaria estar ciente do malfeito sem que nada houvesse para impedi-lo de se concretizar?
Pois é assim com muitas das piores coisas da vida. Elas nos pegam de surpresa, e simplesmente nos deixam de mãos atadas. Seriam essas mazelas irremediáveis menos dolorosas se fossem sabidas de antemão? Ou então a vida seria nada, senão o intervalo entre um malefício e outro? Um sádico jogo de espera em que nada há o que se fazer exceto contar os dias entre uma desgraça e a seguinte?
Ele não sabia... Não tinha certeza, mas ainda assim, em um ímpeto, correu vinte metros atrás do outro.
Em sua mente uma única pergunta. Uma única pergunta sobre uma única pessoa.
Correu até o outro estar perto o suficiente para ser tocado se esticasse o braço, mas então, nesse ponto, deteve-se.
O mais velho, como que confirmando sua identidade, não se virou. Parou brevemente de andar, como se esperasse por alguma coisa, mas após um breve instante de hesitação, retomou sua caminhada. O jovem chegou a tomar fôlego para gritar uma pergunta, mas as palavras trancaram em sua garganta. E ele observou o velho andar sozinho até desaparecer numa esquinas alguns quarteirões adiante.
Rumou até em casa, saiu com seu cão, correram de volta pra casa antes que desabasse violenta chuvarada lavando a alma da cidade, tomou banho, e se esforçou o máximo que pôde para esquecer do encontro sinistro que vivenciara horas antes. Quase conseguiu quando falou com ela... Mal sabia ele, porém, que naquela conversa teria a resposta à pergunta que formulara ao velho.
E a certeza de que acabaria seus dias exatamente como a contraparte que encontrara naquela tarde:
Andando merecidamente sozinho até desaparecer.

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