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segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Paz


Foram os estertores de morte do cachorro...
Foi aquele som, entre um latido e um ganido, alto, repleto de desespero e dor... Foi aquilo. Foi o som de uma criatura que era toda pelo, dente e entusiasmo, e que subitamente se viu parcialmente esmagada sob a borracha rude do pneu de um carro qualquer, e não tinha nenhuma compreensão do que estava acontecendo, exceto da dor, e por isso berrava em um lamento tão alto que ecoou pelas ruas adjacentes do Centro.
Foi aquele som.
A situação daquele pobre animal, que poderia ter sido o melhor amigo de alguém, mas que agora estava ali, jazendo numa poça de seu próprio sangue, sentido o cheiro das próprias entranhas no asfalto, e sem saber como ou por que aquilo acontecia, gritava.
Aquele som, a situação daquele cachorro, foi aquilo que o despedaçou.
Foi aquilo que o fez correr para o banheiro, fechar a porta e cobrir a boca em pânico. E ainda que ele lutasse para evitar, fez com que lágrimas lhe escorressem olhos abaixo a ponto de ensopar-lhe a barba.
Sentado no chão, com as costas apoiadas na porta fechada, ele segurava o rosto ordenando a si mesmo que parasse de chorar, mas era inútil. Mesmo lá ele podia ouvir o cachorro agonizando.
Agarrou os cabelos da lateral da cabeça, e os puxou com força, alguns se arrebentaram, outros foram arrancados junto à raiz, doeu, fez sua respiração se tornar mais profunda e pesada, mas não o fez parar de chorar.
-Para... Para de chorar...
Não parou. As lágrimas seguiam vertendo. A respiração ameaçava virar um soluço, os olhos doíam, e o nariz ardia.
O cachorro continuava ladrando, alto, compassado, carregado de angústia. Ele pensou em se levantar e ir até lá fora ver, mas faltou-lhe coragem. Amaldiçoou a própria covardia. Descobriu a boca, ainda chorava.
-Para de chorar. - Ordenou.
Não parou. Segurou o rosto entre as mãos.
Ainda chorava.
-Tu tá sozinho... Para.
Ouvia o cão.
As coisas se empilhavam.
Doença, morte, tudo, ele estava sozinho.
Quase pôde ver o médico com uma das mãos no bolso enquanto, com a outra, alisava seu jaleco.
"Quem mexer no meu jaleco leva um peteleco"...
Não, o médico jamais dissera aquilo. Falara em tumor. Falara em quimioterapia e em radioterapia.
O cão de novo.
O ganido tornou-se um uivo.
Aquele som arrancou-lhe a alma.
Partiu-lhe o coração.
-Para de chorar. - Ordenou de novo. E de novo.
-Para. - Desferiu um tapa no próprio rosto.
-Para de chorar.
Outro tapa.
-Para.
Mais um.
-Para.
De novo.
-Ela disse que tava pronta pra seguir em frente e seguiu, desgraçado.
Novo tapa.
-Para... de... chorar...
Cobriu os ouvidos com as mãos, fechou os olhos com força. As lágrimas se acumularam dentro das pálpebras, fazendo seus olhos arderem.
-Para de chorar.
O cão silenciou. Ele ergueu os olhos dentro do banheiro, e descobriu os ouvidos, percebendo o silêncio... Havia acabado. Tudo estava acabado. Sentiu algum alívio. Aquilo era paz?
Talvez fosse... A paz de um túmulo, afinal de contas, ainda era paz.

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