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terça-feira, 8 de setembro de 2015

As Decisões Corretas


Estavam sentados no sofá assistindo vídeos aleatórios no Youtube. Ela estava com os cambitos jogados por cima dele, que estava tão afundado no sofá xadrez que tinha quase certeza de que sua bunda pendia no ar, e apenas a sua lombar ocupava o assento.
Tinham ido de coisas específicas, como "Kevin Spacey Impressions" e "Shit Owen Wilson Says", até lances absolutamente aleatórios como "Seleção de 'fails' da semana", e acabaram sendo pegos por um daqueles vídeos de ONGs onde uma sequência de imagens mostra todo o tipo de crueldade com animais, dos massacres de toninhas em águas rasas na Escandinávia até pessoas matando cães e guaxinins a pancadas em uma série de cortes rápidos e nauseabundos.
Acabaram vendo o vídeo todo, três minutos e meio de horror que terminaram com um alentoso "Ainda dá tempo de salvar o mundo" ou algo que o valha.
Ele, desagradado, sentindo-se fisicamente doente por conta do vídeo, se endireitou no sofá.
Ela tentou tirar as pernas do colo dele, mas ele a deteve:
-Pode deixar, só tô me ajeitando...
Continuaram em silêncio, assistindo a um vídeo de tombos e encontrões que, àquela altura, não pareceu tão engraçado. Quando terminou, ela começou a se remexer para usar o teclado, mas ele falou:
-Deixa eu te propôr um cenário, tá?
Ela, puxando as pernas do colo dele e fazendo posição de lótus em cima do sofá, de frente pra ele, assentiu curiosa:
-Tá...
Ele se endireitou e começou a falar, gesticulando bastante:
-Tu tá andando na rua, é começo da noite, oito, oito e pouco, tu tá chegando do mercado, e um estranho chega, ele vem correndo na rua direção, usando calças sociais creme, sapatos pretos, uma camisa branca e um jaleco por cima. Ele carrega um frasco de vidro e tem uma grande mancha de sangue nas costas, cambaleia na tua direção, e caindo sobre um joelho, ele te entrega o frasco...
-O que tem no frasco? - Ela interrompeu.
-Aparentemente nada - Ele respondeu. -Mas o cientista te entrega esse frasco de vidro hermeticamente fechado, um ovo de vidro translúcido, sem tampa, aberturas ou emendas visíveis, e te diz pra não deixar quebrar.
-Hum... - Ela fez, franzindo as sobrancelhas.
-Ele, caindo, voz embargada pelo sangue que sobe da garganta, diz num estertor de morte que se perde num gorgolejo sangrento "Não deixa que isso se quebre! Pode matar toda a humanidade", e cai morto o chão, uma mancha de sangue crescendo sob o corpo inerte do sujeito. - Ele completou, fazendo o gesto de separar as mãos para ilustrar a mancha de sangue crescente.
-Credo... - Ela disse, olhando pra ele.
-Pois é. Tu, com aquele ovo de vidro frágil e leve nas mãos, corre pra casa...
-Pra casa? - Ela o interrompeu, surpresa.
-É... Ou tu iria entregar isso pra polícia? - Ele inquiriu incrédulo.
-Ué... Claro que eu entregaria pra polícia. - Ela assentiu com naturalidade. -Acabaram de matar um cientista por causa disso, imagina o que fariam com uma coitada duma dentista.
-Tá, tá, tá... - Ele fez um gesto de "pára" com a mão espalmada pra frente. -Tu tenta chegar à delegacia pra entregar, mas o Sartori parcelou os salários do funcionalismo e a delegacia tá fechada, policiais em greve. Não tem ninguém lá, só um escrivão estricnado que te diz pra usar a delegacia on-line.
-Puta merda... Tá... Então eu acho que levo pra casa... - Ela concordou, a contragosto.
-OK, tu chega em casa, liga a TV, põe na Globonews e ouve a notícia de que um vírus sintético perigosíssimo sumiu de um laboratório. Que em contato com a atmosfera, essa arma biológica devastadora tem potencial pra matar, em menos de 48 horas, 75% da população da Terra, e, em um curto período, uma semana, duas, pode extinguir a vida humana. - Ele concluiu, sombrio.
Ela ficou olhando pra ele. Os olhos esbugalhados... Ele se inclinou pra frente e perguntou:
-O quê tu faz?
-O que eu faço? - Ela perguntou. -Meu Deus, eu nem sei, primeiro eu rezo, bastante, depois enrolo esse negócio em todo o plástico bolha que eu puder comprar, dois edredons e dois travesseiros, escondo tudo no fundo do meu armário e ligo pra polícia federal pra avisar do que aconteceu. - Concluiu com naturalidade.
Ele fez um "hm" curto e se recostou no sofá de novo, pegando o notebook da mesinha de centro e o posicionando no colo. Ela ficou olhando pra ele.
-Falhei no teu teste, né? - Perguntou.
Ele riu:
-Não. Não era um teste. Não tem resposta certa. É apenas a tua percepção da situação. Sem certo ou errado.
Ele continuou mexendo no computador, mas ela não desistiu:
-E qual é o teu ângulo? O que é que tu faria? A mesma situação. O cara cai morto e te deixa com o ovo de vidro da morte nas mãos. O que tu faz?
Ele largou o notebook, e sorriu:
-Eu iria com ele pra casa. Esconderia ele em algum lugar, ligaria a TV num canal de notícias ou iria pra internet pesquisar o que era.
-OK, tu descobre que é aquele vírus sintético, que mata a raça humana inteira em uma semana, o que tu faz?
Ele ficou olhando pra ela por longos segundos, direto no fundo dos olhos azuis dela.
-O que tu acha que eu faria? - Ele perguntou.
-Tu quebrava o frasco. - Ela respondeu. -Num local público. Com muita gente. Na festa da Metrô. Num comício de político, numa manifestação estudantil, numa votação da câmara estadual, numa passeata do CEPERs...
Ele sorriu.
-Pra quê? - Ela perguntou, francamente perturbada.
-Pra salvar o mundo. - Ele respondeu com naturalidade.
-Matando todo mundo? - Ela quis saber, pontuando cada palavra com as mãos para ilustrar o que considerava um paradoxo irônico.
-Salvar o mundo, não a humanidade. - Ele corrigiu. -O único jeito de salvar o mundo, é acabando com a humanidade. Pensa comigo... Assiste um noticiário do início ao fim, e me diz, se tu vê salvação pra raça humana e pro mundo no mesmo cenário dentro de um espaço de tempo hábil e realista?
Ela baixou os olhos e virou o rosto como quem não aceita a ideia.
-Não... Não sei se eu concordo contigo. Aliás, não concordamos na maior parte das "grandes questões". Essa vai se juntar à religião, política e futebol. Eu não acho que exterminar toda a raça humana seja a única solução pra salvar o planeta...
-E qual é a tua solução? - Ele perguntou, desafiador.
-Tu tá amargurado, né? - Ela perguntou desgostosa.
-Eu sou amargurado. - Ele riu, sarcástico.
-Tá. - Ela disse. -Eu tenho um cenário pra te propôr. Tu quebrou o frasco, as pessoas do mundo vão durar apenas mais duas semanas, e tu tem 48 horas antes de ter uma morte horrível...
-Não, não, não. - Ele corrigiu. -O vírus causa uma morte muito serena. Ele apenas desliga o sistema nervoso central. Vai ser como pegar no sono e não acordar, sem sentir absolutamente nada...
-Tá... Tri conveniente... Enfim. Tu tem quarenta e oito horas antes de morrer. O que tu faz nessas 48 horas?
Ele pensou um pouco. Cenho franzido.
-Acho... Bom... Todo mundo vai viver apenas por mais 48 horas... Eu não sairia por aí fazendo emendas... Acho que todos estariam ocupados se preparando pro fim. Não seria fácil fazer tudo o que eu gostaria...
-E o quê tu gostaria de fazer? - Ela perguntou.
-Eu gostaria de encontrar todas as pessoas que fizeram parte da minha vida e agradecer a elas. Antigos amigos... Colegas, professores... Me desculpar por deixar que o contato se perdesse, por não ter estado por perto quando eles precisaram... Gostaria de ir até as mulheres que eu amei, e reiterar que, enquanto eu estive com elas, as amei verdadeira e profundamente. E que jamais passei um dia ao lado delas, sem achar que passaria todos, e que lamento se atrasei a vida delas por causa disso. Tiraria alguns dias para passar com a minha família imediata, meus amigos mais próximos... Passearia bastante com o meu cachorro, e faria os preparativos que fossem possíveis pra ele continuar vivendo depois que eu morresse... Um estoque de pacotes de ração abertos perto de um lago ou piscina. - Ele riu. -Sei lá... Não me desculparia por ter matado toda a raça humana com um vírus sintético. Eles provavelmente não entenderiam meus motivos, especialmente quando nenhum deles é diretamente responsável pelos males do mundo, então... Acho que guardaria minha responsabilidade pelo extermínio da humanidade em segredo ao menos em um primeiro momento...
-Tá aí meu ponto. - Disse ela, indignada. -Tu sabe que a maioria das pessoas não é responsável diretamente pelos problemas do mundo, e ainda assim, mataria indiscriminadamente toda a humanidade! Pessoas inocentes, pessoas boas, e até pessoas que tu ama e que te amam. Ou amavam, enfim...
-É... - Ele concordou. -Mas não ser diretamente responsável não te torna menos responsável de maneira indireta. Se eu pudesse apenas exterminar os vilões, seria sensacional. Melhor ainda seri se eu pudesse fazê-los deixar de serem vilões. Esse seria o cenário ideal. Mas esse cenário não lida com cenários ideais, ele lida com cenários difíceis, alemoa. Impossivelmente difíceis. Salvar a Terra às custas de todos os que tu ama? Não é uma escolha difícil? Não tira teu prazer em salvar o mundo? Não torna a balança extremamente desfavorável? É um momento em que fazer a coisa moralmente certa, é cruzar os braços e deixar tudo seguir seu caminho rumo ao inferno em que a raça humana está transformando a Terra, e agir em nome do planeta, é se tornar o maior genocida da História.
-Eu já não gostava desse teu cenário antes de tu definir ele. Agora gosto menos ainda. - Ela disse. -Ele é horrível. - Concluiu cruzando os braços.
-Eu sei. - Ele concordou. -Mas até aí... Tomar as decisões corretas geralmente é horrivelmente doloroso, não concorda?

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