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terça-feira, 8 de março de 2016

Ironia

Matei uma lagartixa... Não foi proposital. Foi um completo e absoluto acidente. Acaso puro. Alimentado com o combustível da paranoia de alguém sozinho em uma casa muito maior do que o habitual em uma praia tão deserta que se pode dar voltas pelado pela rua depois de certa hora.
Algum tempo após escurecer, é um ritual automático se pôr a fechar as portas da casa. Portas, portões, janelas... Aquele momento em que cada ruído sobressalta e até que o sono alcance a noite é toda voltas pelo pátio garantindo que os únicos invasores sejam os gatos e os gambás.
A obsessão por segurança é praticamente ridícula. A praia é pequena, frequentada por boas pessoas e há, literalmente trinta casas vazias para cada uma ocupada por aqui, de modo que qualquer ladrão com um mínimo de bom senso, seria esperto o suficiente para arrombar uma casa vazia, ou uma onde os objetos de valor fossem além de duas TVs tipo monitor de 19 e 17 polegadas e um DVD player, e que não estivessem ocupadas por um pobretão de 1,86m e mais de cem quilos.
De toda a sorte, hábitos de cuidado adquiridos na cidade não somem quando nos afastamos de grandes centros urbanos. E logo antes do Jornal Nacional, lá vai o paranoico fechando portas, trancando fechaduras, batendo cadeados e cerrando tramelas.
Ainda há pouco, na hora de fechar a porta dupla dos fundos da casa, algo a bloqueou de modo que mesmo fechada, ela deixava uma fresta desconfortável para o pavor instaurado em alguém habituado à insegurança perene institucionalizada por um Estado que só pensa em se dar bem.
Puxei a porta com mais força. Repeti o gesto. Repeti novamente. Sempre sem sucesso. Só após três trancos vigorosos com a porta, percebi que algo a poderia estar bloqueando a porta pelo lado das dobradiças. Minha aposta era a aposta em um galho dos arbustos de hortênsias que cercam a casa.
Mas não. Ao me agachar ao lado da folha da porta que se recusava a fechar, deparei-me não com um galho de planta, mas com a forma esmigalhada de uma lagartixa preta. A pobrezinha estava tão esmagada que precisei desgruda-la da quina da porta.
Depois de largar o corpinho molenga rebentado nos arbustos, não consegui tirar da cabeça a dor que o animalzinho poderia ter sentido.
Fosse um inseto ou artrópode, confesso, estaria de consciência tranquila. Não sou biólogo ou entomologista, mas sei que essas criaturas não possuem sistemas nervosos complexos.
Mas pouco sei sobre lagartixas. Não sei se elas sentem muita ou pouca dor. Suponho que sintam muita, outrossim, por que estariam sempre fugindo de tudo e de todos tão rapidamente?
Se for o caso, me parte o coração imaginar que dor sentiu o animalzinho conforme eu o esmigalhava inclemente com a porta.
Me pergunto se ela morreu já no primeiro golpe. Ou se foram necessários todos os quatro para mata-la. Se foi o caso, minha consciência pesa ainda mais. Pois foi a falta de raciocínio de minha parte que culminou com a dolorosa morte da lagartixa.
Tivesse eu me dado conta que poderia haver um animal ali, eu poderia ter reaberto a porta com cuidado, permitindo que escapasse.
Mas não o fiz.
Não me alivia saber que foi um acidente. Nem tampouco pensar que já salvei lagartixas de tristes fins em.outras ocasiões.
Eu não me perdoo por ter tirado a vida daquela criatura. Eu ando pela praia de manhã devolvendo peixes agonizantes ao mar. Não sou capaz de assimilar o esmagamento e evisceração de um animal, ainda que involuntária.
Fechei as demais portas com extremo cuidado, e também as janelas.
Apavorado com a ideia de tirar outra vida.
O mais irônico?
Se eu pudesse acabar com a raça humana, eu acabaria sem pensar duas vezes.

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