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quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Os Tarados da Chama Preta




Foi Eduarda quem perguntou com alguma angústia na expressão diante do prato de frango com espaguete:
-Como vai ser a cerimônia? A religiosa? Vai ter?
Arhtur, com a boca cheia de ravióli de frango, respondeu com pouco caso:
-Ah, tanto faz, meu amor, o importante é que, daqui a pouco mais de dois meses, nós vamos estar casados.
E sorriu sinceramente.
Conhecera Eduarda oito meses antes, de imediato se interessara por ela. Nenhuma surpresa, Eduarda era bonita, tinha rosto de boa moça, estilo princezinha de história infantil, cabelos e olhos castanhos, nariz arrebitado, boca em forma de coraçãozinho, era linda de uma forma pura, virginal. De estatura média, tinha uma aparência flexível, o corpo sem nenhum volume exagerado, esguio sem ser esquelético como as modelos de passarela, Arthur a viu na festa de um amigo, pediu que o apresentasse, mas o amigo também não a conhecia, ela devia ser convidada de outro convidado.
Arthur lamentou a possibilidade de ela ser namorada de alguém, mas resolveu arriscar-se, se aproximou, parou ao seu lado e fez um comentário qualquer, ela sorriu, conversaram, e ele descobriu que ela estava com uma amiga. Passaram a noite toda falando, trocaram telefones, ele ficou de ligar.
Esperou três dias e ligou, convidou-a pra sair, viram um filme, jantaram, ele a deixou em casa, ligou no dia seguinte... Tudo conforme o figurino, Arthur combinou um segundo encontro, foi quando se beijaram e ele soube que ela era uma garota especial.
De fato, encantara-se por Eduarda.
Ela era gentil, ouvia o que ele dizia, falava pouco de si, mas não escondia nada, estudava nutrição na PUC, trabalhava como recepcionista em um consultório médico para pagar a faculdade. Nascera em São Sebastião do Caí, veio pra Porto Alegre ainda menina com o pai, seu Walmor, e a mãe, dona Ruth, não tinha irmãs, nem irmãos. Gostava de azul, mas torcia pro Inter, embora não conhecesse nenhum jogador desde a saída de Fernandão, namorara um colega de faculdade nos dois primeiros semestres, mas não dera certo, ele era ciumento e não a respeitava.
Arthur ouvia a tudo com atenção, pra saber que erros não deveria cometer. Os encontros, em pouco tempo, viraram namoro.
Quando ele e Eduarda dormiram juntos pela primeira vez, Arthur, inseguro como qualquer homem, temeu fazer alguma bobagem, mas a respiração compassada de Eduarda se tornando arfante, suas mãos delicadas agarradas com firmeza a seu corpo, o modo como ela sussurrou "Ah, Arthur", em seu ouvido... Arthur a amava verdadeiramente, e o namoro, após seis meses, se tornou um noivado curto, de pouco mais de dois meses, pois Arthur queria casar com Eduarda, ela era a mulher de sua vida, era perfeita, e ele queria tê-la a seu lado até que a morte os separasse, era, afinal de contas, um apaixonado.
Ele a pediu em casamento numa sexta-feira, estavam no restaurante Chéz Felipe, ele se ajoelhou, tirou o anel do bolso e fez a proposta. Ela, de olhos marejados, aceitou com um beijo.
Agora os preparativos vinham tomando forma.
Estavam almoçando no shopping Rua da Praia, meio do caminho do trabalho de ambos, e aproveitavam para organizar algumas coisas.
Arthur não estava preocupado, tinha dinheiro guardado e queria a festa para unir os amigos, a família e celebrar seu amor, por isso a pergunta de Eduarda, aquela lá do início, não o preocupava muito. Cerimônia religiosa parecia uma convenção que merecia ser seguida, ele não tinha preferência. Perguntou para Eduarda:
-Tu prefere alguma igreja em especial? Será que não tá meio em cima pra marcar?
-Pois é... - Ela respondeu hesitando. -... É que a minha família não é católica.
-Ah, sem problema. Quer dizer, a minha mãe é, um pouco, mas o velho nem liga pra isso, e eu também não dou bola.
-Tu não tem religião?
-Ah, eu fui batizado, fiz primeira comunhão, crisma... Mas não sou frequentador. Me caso onde tu quiser. Tua família é o que? Evangélica?
-Não. Não somos evangélicos...
-Judeus?
-Não.
-Muçulmanos?
-Dã, claro que não, ninguém é descendente de árabe na minha família.
Arthur pensou em retrucar que nem todo muçulmano é de ascendência árabe, mas desistiu. Na verdade, começara a ficar curioso.
-Não me diz que tu é da Igreja Universal, ou daquela do cara da bandeirantes?
-Não! Que horror.
-Ah, bom... Tu é batuqueira?
-Não, bobo.
-Candomblé? Macumba? Mórmom? Santos dos últimos dias? Espiritismo? Evangelho quadrangular? Xintoísmo? Budismo? O quê?
-Não, nenhuma dessas... Olha... A gente nunca falou disso, é uma religião diferente...
-Como diferente? Que religião é?
-Tipo, não é bem uma religião...
-É um culto?
-É, é tipo um culto... Sei lá, acho que é mais uma seita.
-Seita? -Arthur não conseguiu esconder uma ponta de terror na voz.
-É, mas não é nada de ruim, sabe? A gente se reúne nas quintas-feiras, conversa, faz umas orações, participa dos cultos...
-Ah... Bom, e... Tu quer que a gente case na tua... Qual o nome da tua seita?
-Os Tarados da Chama Preta.
-Quê?
-Tarados da Chama Preta. -Ela repetiu, separando bem as sílabas.
-Ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah, ah! Não, não, sério, meu amor, qual o nome?
O olhar de Eduarda fulminou Arthur.
-É sério. É esse o nome. Eu sabia, sabia que tu ia ficar julgando, por isso eu nunca contei nada.
Arthur, percebendo a seriedade dela, se recompôs, preocupado:
-Não, não... Desculpa. Tu tem razão... Eu fiquei surpreso. Tarados, então... Da chama preta. Qual a origem do nome? -Arthur fazia uma força sobre-humana pra não rir.
-Nós somos adoradores da Chama Preta. É ela quem nos conecta ao mundo.
-E qual... Qual a razão do "Tarados"?
-É por que a comunhão dos seguidores com a Chama Preta é tão forte, que é quase sexual. Além disso, os Tarados celebram sua comunhão com a Chama Preta através da comunhão carnal.
-Quê?
-Através do sexo, Arthu-ur! Tu não tá levando a sério, tu tá rindo!
-Não, não, eu tô levando a sério, sim... Só fiquei meio chocado com essa lance da "comunhão carnal". Tu já esteve em "comunhão carnal" em algum culto dos... Dos tarados?
-Não, meu amor. Só depois de casada. Eu tinha esperança de me conectar à Chama Preta junto contigo.
-Ah, meu anjo... Eu adoraria me conectar à... Adoraria fazer isso contigo. E a gente, bom, meio que já fez, não foi?
-É, bom, a gente já esteve em comunhão carnal, mas ainda não foi na presença da Chama Preta.
-Como é que é?
-É... A gente só consuma a comunhão com a Chama Preta na presença Dela.
-E ela não é tipo... Onipresente, ao algo que o valha?
-Não, a Chama Preta vive dentro daqueles que comungaram na Sua presença, só então Ela passa a acompanhar aquela pessoa.
-Ah... E como a gente... Comunga na presença da... Da chama?
-É na cerimônia de casamento dos Tarados. Nós temos a nossa comunhão carnal diante da Chama Preta.
-Ah... Peraí? No templo? ...É templo?
-Sim, é templo, e, claro que a comunhão é no templo, né, Arthur? Tu acha que eu ia levar a Chama Preta pra casa? Claro que não, né?
-É, por que isso não faria sentido, como é que alguém sai por aí levando a sua chama preta pra casa... Óbvio... E os... Os tarados têm um espaço pra gente comungar, daí?
-Sim, é em cima do altar, é tão lindo...
-Em cima. Tá... Em cima do altar? Meio profano, isso, não é?
-Não, não, é super puro, o altar não é como tu imagina por causa da tua criação, altar, altar, mesmo, é uma Pedra de Oferendas, onde a gente vai oferecer nosso amor pra Chama Preta.
-...
-Quê foi?
-... É... É na frete de todo mundo ou só da chama?
-É na frente da Chama Preta.
-Ah.
-...Personificada por aqueles que já comungaram na presença Dela.
-...
-Que cara é essa Arthur?
-... Sei lá... Eu... Eu não sei se me sentiria a vontade fazendo isso... Tu sabe... Na frente de estranhos... Sei lá.
-Mas não são estranhos, são a minha família!
-Tá... Ainda assim, da tua família só conheço o seu Walmor e a dona Ruth, e-
-Eles vão estar lá.
-Quê?
-É, meu pai e minha mãe são Tarados.
-Meu deus...
-Que foi?
-Tu espera que eu consume o casamento na frente do teu pai e da tua mãe?
-Ué... Tu acha que eles não sabem o que um casal faz?
-É diferente! Eu sei como uma galinha é abatida pra fazer meu ravióli, isso não significa que eu queira presenciar a morte dela!
-Ah, Arthur, em nome da Chama Preta, viu...
-Quê?
-É uma expressão dos Tarados, tipo "Pelo amor de Deus". Olha, deixa pra lá, tá? Todo o lance da Chama Preta. Esquece que eu falei disso, o importante, é que eu te amo. Não importa se tu é conservador demais pra entender a minha fé, eu vou continuar te amando. Se tu quiser casar na igreja católica, eu vou, se tu quiser um padre, pastor ou mulá, não importa, se tu quiser que eu me case vestida, eu caso, mas significaria muito pra mim casar no templo da Chama Preta e comungar contigo na presença Dela.
-Olha... Olha, desculpa, tá? Eu... Eu exagerei. Tu tem razão. Não tem motivo pra esse meu pânico. Teu pai, tua mãe e os outros... Os outros tarados já devem ter visto inúmeras conjunções carnais na presença da chama... preta. O que teria de mais em outra, né?
Os olhos de Eduarda se encheram de lágrimas, ela sorriu e abraçou Arthur.
-Sério? Tu vai fazer isso?
-Claro. Eu te amo, é importante pra ti. Eu caso na presença da chama. Consumo o casamento na frente dela e da... Da congregação de tarados.
-Ah, Arthur... Eu vou pedir pro meu pai arrumar uns dias pra te preparar pra cerimônia, ele vai te explicar tudinho, tu vai ver que não tem nenhum bicho de sete cabeças.
-Tá espero que não tenha nenhum bicho mes... Como assim? Não é só entrar e consumar?
-Ah, isso é o básico, mas tem outros detalhes, umas coisinhas da tradição da Chama Preta, eu vou estar nua em cima da pedra, agindo feito um animal, tu tem que entrar e fazer isso também, te conectar com a tua besta interior, que é pra nossa conexão com a Chama Preta não sofrer interferência pelos nossos temores e convenções da civilização...
-Então teu pai vai me preparar pra agir feito um animal na hora de consumar o nosso casamento?
-Arthur...
-Na presença dele?
-Arthur...
-E da tua mãe?
-Ai, Arthur...
-Não, não. Só pra saber.
Aqueles dois meses foram duros pro Arthur, especialmente quando ele se encontrava com o futuro sogro nas reuniões pra aprender como proceder na cerimônia de casamento dos Tarados da Chama Preta.
No final, ficou acordado que haveria uma cerimônia pra todos, na igreja, seria na Sagrada Família, e depois uma festa. Na semana seguinte, antes de partir pra lua de Mel em Porto de Galinhas, o casal passaria pelo ritual dos Tarados da Chama Preta, só pros pais de Eduarda e os outros Tarados.
Se no dia da cerimônia na igreja Arthur estava muito relaxado no seu fraque e de gravata prata, no outro ele estava nervosíssimo, nu, exceto pelo chapéu esquisito que sua sogra lhe presenteara, sozinho em uma sala, se conectando à sua besta interior (Um lobo guará).
Mas amava Eduarda, era um apaixonado, e se aquela bizarria de circo de horrores era necessária para fazê-la feliz, bom, ele faria.
Mais tarde, no avião, Eduarda o beijou nos lábios, acariciou seu rosto e perguntou:
-E então? O que achou da cerimônia?
-Olha... Confesso que, quando estava treinando os movimentos da minha besta interior, eu tava meio nervoso, meio travado. Mas quando vi o seu Walmor e a dona Ruth lambendo os pés um do outro pelados e sentados no chão, ficou bem mais relax.
Abraçou Eduarda e deu um gole no refrigerante que tinha diante de si, tinha a certeza do dever cumprido.
Arthur era assim... Um apaixonado...

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