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quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Acaso, Suicídio e Stevie Wonder


A Fátima acordou esfregando os olhos, toda torta no sofá da sala diante da TV. O telefone tocava e a despertou de seu sono sofrido. Ela cavou os lenços de papel amassados que abundavam sobre a mesa, resultado de uma crise existencial que a Fátima, Fafá para os íntimos, vinha experimentando naquela semana, procurando pelo aparelho.
Um toque.
Quem via aquela mesa repleta de lenços de papel amassados, podia pensar que a Fátima experimentava as mazelas de um fim de relacionamento, ou um coração partido. Ledo engano.
O problema da Fátima era muito mais grave do que um coração partido. A Fátima estava experimentando a consequência de uma auto-análise severa, escrutinadora e até impiedosa que a fez chegar à conclusão de que ela não podia ser amada.
Explica-se:
Fátima namorou por cerca de um ano e meio com Romão. Romão era um bom rapaz. Boa aparência, emprego estável, boa conduta, boa família. Fátima e Romão viviam bem juntos. Se gostavam, eram pessoas civilizadas que partilhavam gostos em comum.
Mas à certa altura, a Fátima começou a se afastar do Romão.
Nem foi por querer. Não foi calculado, nem consciente, nem nada. Simplesmente aconteceu. A distância entre eles foi aumentando até um ponto em que eles pouco se viam, e quando se viam, pouco conversavam, e quando o Romão perguntou-lhe qual era o problema, o que havia de errado, ela, sentindo-se acuada, responsabilizada pelos males da relação, reagiu intempestivamente e tudo terminou em uma briga, cheia de palavras mordazes e ressentimentos.
Outro toque.
Fátima se arrependia mais de ter sido injusta com Romão ao terminarem do que do término em si. Sabia que o Romão encontraria outra pessoa. Quiçá uma pessoa melhor que ela própria.
Não que Fátima se visse como uma má pessoa para se dividir o tempo. Não se via assim e nem o era. Mas sabia que o Romão podia encontrar alguém com quem partilhasse mais afinidades.
Talvez esse altruísmo todo com relação ao Romão, fosse um combustível inconsciente à própria esperança de encontrar alguém com quem, mais do que viver bem, ela pudesse vivenciar um amor de verdade.
Fátima, com mais trinta anos jamais experimentara uma relação de longo prazo. Seu namoro mais longo dera-se entre a adolescência e a vida adulta, quando namorara um rapaz da mesma turma de amigos por dois anos e meio, entre os dezessete e os vinte anos. Se esse fora seu relacionamento mais longo, os outros todos, que não eram tantos, não chegavam a somar o dobro desse tempo de duração.
Foi pensando nisso que Fátima percebeu o padrão...
Mais um toque.
Olhando em perspectiva, revisando sua vida até ali, Fátima viu que sabotava as próprias relações. Percebeu uma teia de eventos que sempre terminava com ela afastando a outra pessoa até ter motivo pra terminar a relação.
Fátima percebeu que estava sozinha, e sempre estaria, porque era incapaz de se adequar à uma vida plena de felicidade, à uma rotina de alegrias e bons momentos. Fátima deu-se conta de que só se sentia normal se estivesse miserável, incompleta e ansiando novamente por algo que possuíra e descartara sistematicamente ao longo de sua vida adulta. Ainda que tentasse racionalizar o próprio comportamento justificando que é natural do ser humano se colocar em situações em que deseje algo, a mola propulsora da busca por crescimento e aprimoramento, era impossível fazer vista grossa ao fato de que ela não buscava por coisas novas, diferentes ou melhores, apenas se colocava em posição de precisar, repetidamente, de algo que já experimentara, e tornara insuficiente por conta própria.
O problema não era o mundo, as pessoas, ou as relações interpessoais. O problema era unica e exclusivamente, a própria Fátima.
Novamente um toque.
Foi essa percepção que fez Fátima se trancar em casa durante toda a semana de folga dos feriados. Foi ver que ela era a única pessoa que havia a quem culpar pelas tristezas e percalços de sua vida. O fato de ninguém ter aparecido em sua casa, telefonado ou sequer mandado um SMS serviu apenas para reforçar a constatação de que Fátima afastava as pessoas gerando um perímetro de espaço vazio e morto ao redor de si, e que qualquer forma de vida que tentasse romper aquela barreira era destruída pelo ambiente corrosivo e inóspito que ela projetava.
Fátima estava irremediavelmente sozinha, e era a única responsável por isso.
Absorver essa realidade era duro, e fora o que Fátima tentara fazer ao longo da última semana. Sem grande sucesso. Face à verdade de sua condição, ela chorou. Chorou muito. E prometeu a si própria que mudaria. Que faria diferente se tivesse a chance. Mas não conseguia ver essa chance, não conseguia ver saída. Isso a deixou tão desesperada que ela chegou a pensar em dar fim a tudo. Ela chegou a pensar em abrir um frasco de remédios, tomar todos os comprimidos, deitar, dormir e nunca mais acordar. Mas faltou-lhe coragem. Faltou-lhe convicção. E isso fê-la chorar ainda mais. Fátima chorou até dormir diante da TV. E agora era acordada pelo telefone, que tocava pela quinta vez. Encontrou o aparelho em meio aos lenços amassados sobre a mesinha de centro, e atendeu, levando o fone ao ouvido.
-Alô? - Disse com a voz chorosa.
Um instante de silêncio, e do outro lado da linha, eclodiu a voz de Stevie Wonder:
-I just called, to say, I love you... I just called, to say how much I care... I just call, to say, I love you... And I mean it from the bottom of my heart...
A música parou, Fátima continuou na linha, os olhos vermelhos e lacrimejantes esbugalhados de surpresa e dúvida. Do silêncio, brotou uma respiração, e então uma voz:
-Tem amo, moça.
E então, o som contínuo do telefone desligado antes mesmo que ela fosse capaz de concatenar uma resposta.
Mas não era necessário. Fátima já sabia o que precisava. Apesar dos pesares, alguém a amava. Alguém se importava. E isso era tudo o que ela tinha que saber. A única certeza de que ela tinha necessidade inadiável:
Alguém ainda a amava, apesar de tudo.
Ela, de posse dessa informação, poderia se levantar e seguir em frente. Poderia tentar mudar, na certeza de que não era tarde demais para aceitar a felicidade. Ela não era a pessoa desprezível que imaginava. Alguém se dera ao trabalho de telefonar apenas para dizer que a amava, e isso dizia muito.
O que a Fafá não ficou sabendo foi que o Juliano, o rapaz que ligara, errara o último dígito do telefone de sua namorada, Servilha, um doce de menina, bonita, diligente, inteligente e prendada, que fazia aniversário naquele dia, e que, além de não receber presente, ficou até sem aquele telefonema mequetrefe que o Juliano improvisara pra economizar. Isso a levou a, no dia seguinte, terminar com ele, que mesmo sendo um idiota pão-duro, aproveitador e egoísta, ainda amava a Servilha, e acabou se suicidando algumas semanas mais tarde, após vê-la em uma festa com o namorado novo.
Justamente o Romão, a quem ela conheceu ao acaso, sempre o acaso, numa festa uma semana antes.

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