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sábado, 25 de maio de 2019

Obrigado


Na quinta-feira uma chuva persistente se derramou sobre Porto Alegre. Não foi um temporal ou uma tempestade. Mas uma chuva constante e de certo volume que fustigou a capital gaúcha por algumas horas garantindo que os tradicionais pontos de alagamento da cidade alagassem e que qualquer pessoa na rua, munida de guarda-chuva, ou não, tomasse um banho. Eu estava atravessando a avenida Presidente João Goulart por mera força do hábito e teimosia quando vi dois homens de meia idade com água pelas canelas lutando para empurrar uma perua da Ford no aclive da avenida antes de ela se juntar à Edvaldo Pereira Paiva.
Eu resolvi me juntar aos dois sujeitos em seus esforços. Sabia que ninguém em sã consciência desceria de seu carro para tomar um banho de chuva e submergir até as calças em água de sarjeta, e que aqueles dois, sozinhos, não eram páreo para o pesado veículo que tentavam empurrar lomba acima.
Me aproximei com as mãos na parte traseira da caminhonete e me pus a empurrá-la junto com o sujeito que já forcejava com um blusão de lã ensopado enquanto o motorista, o mais velho, voltou ao banco do motorista. Em dupla, após alguns metros, o motor voltou a funcionar, e o homem respirou com as mãos nos dois joelhos, pousou a mão em meu ombro e agradeceu.
O outro homem, ao volante, esticou o braço pra fora do veículo e me cumprimentou. Sorri e fiz um sinal de positivo e voltei à margem da calçada para esperar o sinal fechar, e naqueles cinquenta e seis segundos, minha mente viajou...
Quando eu era criança, com oito ou nove anos, não podia ir à praia sozinho.
Era um tipo de tortura para minha versão de menos de uma década saber que o mar estava ali, a menos de cem passos de distância, e que eu não podia enveredar oceano adentro para saciar minha necessidade de "dar um margujão", conforme meu pai e meus tios chamavam o ato de dar um mergulho (ou nas palavras de meu avô, "salgar os colhões"), sem a supervisão de um adulto responsável.
Não era raro que eu acordasse perguntando se iríamos à praia, e passasse várias horas ouvindo todos os adultos ao redor me dizendo que estávamos na praia, o que, tecnicamente era verdade, mas não satisfazia minha vontade de rolar na areia e ficar dentro do mar até que meus dedos murchassem.
Houve um dia em que as crianças veraneando fizeram suficiente alarde para convencer uma tia, não lembro se Téris ou Suzana, a levar uma pequena horda de pimpolhos para a beira do mar e distrair-se com a conversa com alguma vizinha que também cumpria seu horário da tarde na faixa de areia. O que me lembro com riqueza de detalhes, é que minha irmã e eu entramos no mar com a galhardia dos incautos, alheios aos perigos do repuxo.
Pra mim, banho de mar começava apenas quando a água batia na altura da barriga, molhar só os pezinhos era coisa da minha nonagenária bisavó, que se banhava deitada em quatro centímetros d'água.
Eu fui entrando oceano adentro em busca da profundidade ideal, seguido de perto pela minha irmã, três anos mais nova, ou seja, com seis anos, e não sei em que altura a água nos batia quando o repuxo começou a nos sugar.
Estar um uma linha de repuxo é desagradável mesmo quando somos adultos capazes de raciocinar a respeito. Entrar no mar em um ponto da praia e sair dezenas de metros mais a norte ou a sul não chega, de forma alguma, a ser uma situação particularmente estressante, mas perceber-se sendo levado pela corrente em direção à arrebentação, é sempre um momento tenso por mais que saibamos nadar em três estilos ou ao menos pegar um jacaré, todavia quando não temos noção de nada disso, nossa altura não alcança um metro e cinquenta e por mais que tentemos ficar parados continuamos a nos mover rapidamente em direção ao meio do Atlântico, não demora muito para o desespero tomar conta.
Naquele momento, em que eu tentava desesperadamente frear em meus calcanhares sem sucesso, alguém me pegou.
Era um senhor de cabelos grisalhos e bigode. Mesmo pequeno, eu tinha noção de que ele não era um sujeito alto.
Quando ele me apanhou pelo braço, puxando-me para a praia, eu percebi que outro homem, careca e barrigudo, fizera o mesmo com minha irmã.
Eles nos levaram sem dizer nenhuma palavra até onde a água não passava de nossos joelhos, se viraram e voltaram para dentro do mar...
Ao ouvir os agradecimentos efusivos daqueles dois homens de meia idade quando voltei para a calçada, me lembrei dos homens que, possivelmente salvaram minha irmã e a mim do afogamento tantos anos atrás.
Me lembrei que não os agradeci em meu pavor, e que não voltei a vê-los depois daquilo, ou ainda pior, talvez os tenha visto e sem dar o peso devido ao evento, não os reconheci...
O "obrigado" que eu recebi após um ato tão infinitesimal quanto empurrar um carro na chuva, me lembrou do obrigado que eu soneguei anos atrás.
E eu sei...
Eu era uma criança e estava assustado e constrangido. Eu sei. Já racionalizei isso como todos os seres humanos fazem com suas falhas.
Mas eu percebi o quanto um agradecimento sincero pode ser benéfico a quem o escuta. O quanto é recompensador escutar um obrigado...
Por isso firmei compromisso comigo mesmo de jamais voltar a sonegar gratidão em minha vida. Em não deixar meu apreço pelo auxílio ou carinho de alguém passar silente.
A cada pessoa que me tirar de uma encrenca...
Que me der um bom conselho...
Que me estender a mão...
Que não desistir de mim...
Obrigado.

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