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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

Resenha Cinema: Um Lindo Dia na Vizinhança


É difícil para nós, brasileiros que cresceram sem a presença de Fred Rogers na televisão, contextualizar quem era esse personagem na vida real, e o que esse longa metragem representa para aqueles que tiveram essa referência enquanto assistiam TV na infância. Enquanto nós crescemos com mulheres voluptuosas em trajes sumários comandando programas infantis, nos moralistas Estados Unidos as crianças cresciam com um ex-ministro presbiteriano e pedagogo de meia-idade brincando com fantoches e cantarolando a respeito de emoções e sentimentos.
Fred Rogers ficou na TV com seu programa A Vizinhança do Sr. Rogers por trinta e três anos, e a marca que ele deixou em milhões de pessoas ao longo de suas décadas ativo pode ser traduzida na imensa quantidade de láureas que ele recebeu tanto em vida quanto após sua morte em 2003, aos setenta e quatro anos.
Ele não tem nenhum paralelo na TV brasileira e por isso talvez seja impossível que a audiência daqui compreenda sua importância especialmente porque o longa dirigido por Marielle Heller não é uma cinebiografia convencional, daquelas do berço ao túmulo, ou sequer o recorte de um momento na vida de Fred Rogers. O apresentador não é nem mesmo o personagem principal do filme.
Esse papel pertence a Lloyd Vogel (Matthew Rhys), um jornalista investigativo a serviço da Esquire que fica profundamente contrariado ao descobrir que deverá produzir um perfil de Rogers (Tom Hanks) para uma série especial da revista a respeito de heróis.
Não bastasse a tarefa estar longe de suas preferências, Vogel, um sujeito cínico e cético, está experimentando um momento pessoal turbulento.
Ele está tentando se adaptar à recente paternidade, sua irmã está se casando pela enésima vez, e seu pai, Jerry (Chris Cooper) que abandonou sua mãe doente quando ele era pouco mais que uma criança, voltou à cena e está tentando se reintegrar à sua família. Mas, a despeito do péssimo momento, Lloyd é um profissional, e mesmo a contragosto viaja de Nova York a Pitsburgh para encontrar o legendário Sr. Rogers e entrevistá-lo, mas as coisas não saem como o jornalista espera.
Não há cinismo que seja páreo para a candura de Fred Rogers e sua maneira nem um pouco convencional de ser entrevistado, respondendo as perguntas de Lloyd com novas e infinitas perguntas que paulatinamente vão forçando o jornalista a se abrir a respeito de si próprio, de sua esposa Andrea (Susan Kelechi Watson), seu filho Gavin, e de sua relação com Jerry e como ela o afeta e define mesmo após tantos anos. Eventualmente, as sessões de entrevistas com o Sr. Rogers começam a mexer com ele, e forçá-lo a tocar em emoções que ele mantinha enterradas há muito tempo.
Conforme eu disse ali em cima, Um Lindo Dia na Vizinhança não é uma cinebiografia convencional, porque ela não é a respeito de Fred Rogers, mas a respeito do efeito que ele tinha nas pessoas.
É difícil, sem ter lido o artigo que deu origem ao filme, saber se o roteiro de Micah Fitzerman-Blue e Noah Harpster não está simplificando (ou santificando) em demasia uma pessoa de carne e osso, ou se o retrato simples do Sr. Rogers no filme é proposital para demonstrá-lo da maneira mais aproximada possível de sua persona televisiva.
Seja como for, algumas das mais adoráveis cenas do filme são justamente aquelas que contrapõe o cinismo de Lloyd e a gentileza de Rogers, a incredulidade do jornalista ante uma bondade que parece infinita.
Rhys, por sinal, manda bem no papel do sujeito ferido pelo seu passado. A maneira como ele retrata um sujeito que precisou enclausurar certas emoções para se manter vivo e funcional é bastante convincente, e suas reações quando Rogers começa a desafiá-lo a se abrir são críveis. Esse, afinal de contas, é o arco do filme. A jornada emocional de Lloyd sob a filosofia de Fred Rogers, e se por vezes essa jornada é priorizada em comparação com suas interações com o apresentador, isso ajuda a responder o que adultos poderiam aprender com o Sr. Rogers e rende algumas cenas particularmente poderosas, como a do restaurante chinês.
É claro que essa proposta não funcionaria se Tom Hanks não funcionasse, por sorte o ator, a quem eu frequentemente acuso de ser um preguiçoso que se abraçou à sua imagem de "homem-comum" para não precisar ser desafiado por papéis mais densos, está excelente aqui.
Mesmo sem ser nem remotamente parecido com o verdadeiro Fred Rogers, ele emula os maneirismos e cadência de discurso do apresentador, distribui abraços e apertos de mão em abundância e anda com uma flagrante vulnerabilidade que demonstra a fragilidade e as dores que o roteiro do longa não se preocuparam em retratar com palavras.
A escalação do ator no papel, porém, não é o único acerto de Marielle Heller. A diretora de Poderia me Perdoar se municia do talento da cinematógrafa Jody Lee Lipes para misturar as texturas e a iluminação dos estúdios da PBS onde Rogers gravava seu programa com recônditos sombrios da Nova York habitada por Lloyd Vogel, e quando os dois estão juntos, em uma ótima sacada, a iluminação faz parecer que é Rogers quem ilumina o jornalista.
Isso, unido a maneira como as transições do programa, com maquetes de cidades, trens em miniatura e a trilha do longa emulando os acordes de piano que embalavam A Vizinhança do Senhor Rogers demonstram a preocupação de Heller e sua equipe em incorporar tantas referências ao programa quanto possível para contar a história quase como se ela fosse um segmento da série.
Eu francamente não sei se Fred Rogers é um nome capaz de levar grandes multidões ao cinema, especialmente no Brasil, ainda assim, entre erros e acertos, Um Lindo Dia na Vizinhança é um belo filme. Uma história sensível sobre como o mundo pode ser um lugar que por vezes é cruel, assustador e mau, e sobre como cabe às pessoas, com pequenos gestos de bondade e compreensão, mudá-lo para melhor.
Assista no cinema, conhecendo Fred Rogers, ou não, é um longa que vale a audiência.

"-Como é ser famoso?
-Fama é uma palavra de quatro letras, como "cara" ou "zoom". Fama não é importante. O importante é o que você faz com ela."

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