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terça-feira, 23 de março de 2010

Mais que um nome.


-Lolita. - Disse ela.
-Ah, tá. - Respondeu ele rindo e ignorando a absoluta falta de educação de sua reação.
-"Ah, tá" o quê? - Perguntou ela, irritada.
Ela ficou mais bonita irritada. Cabe dizer que ela era bonita. Miúda, miúda, não. Mignon, que nem o filé. Era pequena, sem volume exagerado em parte alguma. Uma moça compacta, não ocuparia grandes espaços se morasse num apartamento em Tóquio. A pele muito alva, os cabelos castanhos lisos deitados sobre os ombros á mostra na blusa de alças cor-de-rosa. Ela o fustigava com os olhos cor de mel cheios de desagrado, e os lábios avermelhados contraídos, estava, de fato, muito contrariada.
-Qual a graça?
-Nenhuma. - Ele respondeu tentando desconversar.
Ela disse "então tá", cheia de desdém, e foi saindo, desviando das pessoas que se acotovelavam fingindo dançar no salão da danceteria.
Ele a olhou, pequenina, sumindo na multidão, pensou melhor. Correu etrás dela e a segurou pelo braço. Ela virou com a boca entreaberta e um olho fechado, numa expressão clássica de raiva feminina.
Ele disse:
-Qual é o problema dos teus pais? Eram presidentes do fã-clube do Nabokov?
-Escuta aqui, ô- Ela começou, mas ele a interrompeu:
-Não, por que pra batizar um filho com nome de personagem de romance, ainda mais desse romance, ainda mais esse nome, tem que ser alguém muito perturbado. Ainda mais nos dias de hoje.
-Cala a boca, palhaço.- Respondeu Lolita, irritada.
-Não calo, não. Tu nunca pensa á respeito? Isso não te incomoda? Sei lá. Não te parece que "Lolita" não é nome, é destino? Não te preocupa o futuro? Que algum Clare Quilty da vida te sequestre pra tentar te enfiar em um filme pornô?
-Vai encher outra, otário.
-Não vou! Me diz, o quê mais, além da má atitude, tu tem da Lolita da literatura? Costas flexíveis?
-Eu vou te meter a mão na cara.
-Tu é a luz da vida de alguém? O fogo nas entranhas de alguém? O pecado e a alma de alguém?
-Eu... Que lindo isso...
Pouco depois, conversavam, braços colados em uma pequena mesa da danceteria. Berravam no ouvido um do outro por que a Lady Gaga não calava a boca em altíssimo volume fazendo os frequentadores se contorcerem ao som da música. Mas ele e ela pareciam alheios á isso conversando.
Ele parecia boa gente. Á despeito da forma pouco ortodoxa de puxar assunto, era inteligente, educado, conforme conversavam ela lhe fazia perguntas e descobria mais sobre ele.
Era professor. De literatura como seu pai e sua mãe. Era do interior, estudara alguns anos fora do Brasil, na Europa, voltara pra cá havia pouco tempo, morava em uma pensão, mas não dessas fuleiras, um lugar de família. Gostava de poesia, especialmente francesa, mas lia de tudo, até bobagens como Crepúsculo e Harry Potter, que era pra saber o que a garotada andava lendo nos dias de hoje. Obrigação profissional e talicoisa.
Gostava muito de ir ao cinema, também, gostava de fast-food mas tentava evitar, a família tinha tendência á engordar, então ele comia pouco segunda á sexta, se exercitava bastante, para os próprios padrões, e ia á forra nos finais de semana. Raramente ia á danceterias, sua presença ali, naquela noite, era obra do acaso, era aniversário de um colega, ele foi meio á contragosto, na verdade já estava indo embora quando a viu, e não conseguiu tirar os olhos dela. Precisou perguntar seu nome.
Ela sorriu.
-Mas eu devo ser muito velho pra ti. - Ele falou, algo sem jeito, olhando para as próprias mãos no colo.
-Capaz. Quantos anos tu tem? - Ela quis saber.
-Trinta e sete. - Ele respondeu sem rodeios. Era mais do que ela imaginava, mas ele estava, na verdade, em boa forma. Não parecia ter muito mais de trinta.
-Bom, não é uma diferença tão grande. -Ela disse alongando o som do "ão".
-Até parece.- Ele disse com um sorriso algo tristonho.
-Não é!- Ela insistiu.
Ele sorriu e fechou um olho a encarando.
-Tu deve ter o quê? Dezesseis? Dezessete?
-Eu acho que tenho que ficar feliz. Mulher adora quando dão anos á menos. Tenho vinte e quatro anos.
-Vinte e quatro? - Ele não pôde esconder o horror na própria voz.
-Vinte e quatro! - Ela aquiesceu, desafiadora.
-Parece que nome é destino, mesmo. - Ele concluiu.
Se beijaram. Se beijaram por um bom tempo na danceteria, mesmo. Foram para o apartamento dela. Se beijaram mais. Ela o despiu com destreza e agilidade, ele a despiu com um pouco de desânimo, algo desajeitado. Ela o beijou, explorou seu corpo com lábios e língua. Fizeram amor. Ele não alcançou píncaros de prazer. Teve lá um orgasmo algo mecânico, proveniente do movimento, e era isso.
Horas mais tarde, quando o céu já ganhava tons de azul, ele se lavou, se vestiu e se despediu dela à porta. Na luz matutina, sem maquiagem, ela parecia ter mesmo os seus vinte e quatro anos. Até mais.
Ela, meio sem jeito, vestindo uma camiseta grande e com uma toalha nos cabelos se apoiou na porta e disse:
-Sabe que só agora eu me dei conta de que não perguntei o teu nome?
Ele sorriu. Passou as costas do dedo indicador no queixo dela e disse:
-Humberto.
-Prazer, Humberto. Eu sou Lolita Gomes Fagundes. - Ela sorriu e estendeu a mão com o queixo no ombro direito.
Ele segurou a mão dela se emperdigou e disse:
-Prazer. Humberto Agá Gutemberg.
Ela se despediu dele com um beijo que ele não correspondeu com grande entusiasmo. Trocaram telefones mas ele "acidentalmente" trocou o último dígito do próprio número.
Se apressou na rua, já eram quase seis da manhã, ele precisava trabalhar ás sete e quinze. Provavelmente áquela hora dona Charlote já teria começado á preparar o café da manhã para os pensionistas, e ele poderia comer algo antes de sair. Com sorte, andaria com a pequena Dolores até a parada de ônibus.
Nome, com mil diabos, era destino, mesmo.
Mas não precisava ser tanto, pensou Humberto.

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