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segunda-feira, 8 de março de 2010

Tudo bem...


E quem poderia imaginar?
Vitória certamente não poderia. Ela concebia muitas coisas, se considerava preparada pra muita coisa, tinha lâmpadas de reserva para cada cômodo da casa, tinha lanternas, tinha uma resistência de reserva para o chuveiro, na bolsa, além de um espelho, maquiagem e pente portava um pequeno frasco de gás de mostarda. Mas aquela situação, que agora vivenciava, não estava, certamente, entre as coisas que ela imaginara e para as quais se preparava.
Vitória encarou o pedaço de plástico em sua mão e leu as instruções na caixa de papelão sobre a pia do banheiro. Então olhou o relógio de pulso constatando aflita, que ainda faltavam quarenta e três segundos para fechar os três minutos que as instruções impressas na embalagem demandavam.
Ela cantarolou uma música da Legião Urbana enquanto esperava "...E nem o céu é belo e prateado... E o que eu era eu não sou mais, e não tenho nada pra lembrar... Tararãn-raran, raran..." Esqueceu a letra. Olhou o relógio, passaram-se cerca de quinze segundos. Ela tamborilou os dedos dos pés descalços no piso frio do banheiro, segurou os tornozelos com as mãos, sentada no vaso sanitário. Passou as mãos nos cabelos castanhos ondulados, e então lembrou, com uma ponta de nojo, que não lavara as mãos após o procedimento que acabara de realizar.
Lavou-as. Olhou o relógio, já passara o último minuto que estava esperando. Pegou o pedaço de plástico e olhou o espaço branco entre as palavras "Positivo" e "Negativo" escritas á esquerda e á direita da tira de plástico.
Uma linha azul surgiu. Ela engoliu em seco. Uma linha azul surgiu. O teste de gravidez que ela comprara na farmácia na noite anterior dera positivo. Vitória estava grávida. O que ela faria? O que ela faria?
O que diria para Tadeu? Ela o incentivara á consumar o sexo naquela noite de quinta, duas semanas atrás. Ele, ao constatar que não tinha preservativos, desistiu, sorriu amarelo e disse que ficava pra próxima. Vitória não deixou. Disse que estava tudo bem, que tinha pílula. Ele, á princípio, refugou, mas ela o seduziu. Era mulher, era bonita, inteligente, senhora de si. Podia seduzir qualquer homem. Até Tadeu, com seu bom-mocismo ao mesmo tempo encantador e insuportável.
Aqui cabe dizer que Vitória acreditou, de fato, que tivesse a pílula, mas a do dia seguinte. O problema foi que, na manhã seguinte, acordou tarde por causa das atividades de alcova da noite anterior, tinha que entregar um relatório no trabalho, e foi obrigada á correr para o escritório, a ceninha de desconforto com Tadeu antes de saírem não ajudou. Após o trabalho correu feito louca para a faculdade, onde tinha uma prova para fazer e de onde saiu exausta. Passou dormindo a manhã de sábado, e, á tarde, foi fazer compras com a mãe. Á noite saiu com Carol, sua melhor amiga, de modo que só no domingo pela manhã, lembrou-se da pílula. Correu atrás de uma farmácia, e após passar pelas três drogarias mais próximas de sua casa e dar com o nariz na porta, encontrou uma farmácia aberta no shopping, onde comprou a medicação e a tomou apreenssiva.
Horas depois passou mal. Teve dores de cabeça, enjôos, chegou á vomitar. Mas acreditou que tudo fossem efeitos colaterais da violenta fórmula de hormônios que acabara de ingerir.
Os dias passaram e seu ciclo menstrual atrasou, sentia dores nos seios, apavorou-se. Pesquisou na internet e descobriu que vômitos logo após a ingestão da pílula poderiam acarretar a ineficácia do medicamento. A semana seguinte foi de pânico para Vitória. As dores, enjôos e o atraso do ciclo permaneceram, e ela se viu obrigada á comprar um teste de gravidez na farmácia.
Agora ela vislumbrava com pavor a perspectiva de ser mãe aos vinte e dois anos, tendo recém iniciado o estágio probatório em um trabalho cansativo que precisava ser conciliado com a faculdade á todo o vapor, tendo que pagar o aluguel do apartamento e sonhando com um futuro trabalhando como engenheira, que, subitamente, parecia incrivelmente distante. Teria que trancar a faculdade, grávida não teria energia para trabalhar e estudar, tendo que escolher entre as duas atividades parecia bastante óbvio que seria inevitável abandonar a que consumia dinheiro e permanecer naquela que gerava rendimentos ao final de cada mês. Porém, em algum tempo ela estaria com uma barrigona, seus empregadores notariam, ela já teria terminado o período probatório até a barriga começar a aparecer? Seus empregadores poderiam negar-lhe o emprego se ela surgisse grávida na firma? Como ela poderia evitar isso? Abriria mão de uma licença maternidade? Como? Quem alimentaria o bebê?
Vitória cogitou um aborto. Ouvira falar de drogas abortivas. Medicações que, se tomadas, causavam um aborto espontâneo. Não sabia, porém, se poderia confiar em drogas de qualquer espécie após a peça pregada pela pílula do dia seguinte... Riu sozinha no banheiro. Mas o sorriso virou um soluço, e então um pranto. Vitória não faria isso. Jamais faria um aborto. Não faria uma criança, independente do estágio de gestação, pagar com a vida por um erro que fora dela. Voltaria pra casa da mãe. Paciência. Sairia do emprego, continuaria na faculdade enquanto pudesse, teria o bebê. Sua mãe a ajudaria, jamais lhe viraria as costas, e, aos poucos, ela retomaria sua vida. O período parada seria de quê? Um ano e meio? Dois no máximo? Um pequeno revés. Nada de grave. Vitória poderia superar. Era uma mulher bonita, inteligente, senhora de si. Podia superar aquilo.
Contaria á Tadeu. Ele que agisse como preferisse, ela teria o bebê.
Mas, ao parar pra pensar, raciocinou que, conhecendo Tadeu como conhecia, ele assumiria o bebê. A ajudaria como pudesse, se sacrificaria se fosse necessário. Tadeu era assim. Ela gostava tanto dele por isso. Pelo seu bom-mocismo irritante e encantador na mesma medida. Quando o conhecera já notara essa faceta dele. Tadeu era um bom rapaz. Aparentemente escolhera ser um bom rapaz. Á princípio ela imaginou que, talvez, aquele bom comportamento todo fosse uma fachada, uma arma de sedução usada para se aproximar de mulheres. Conhecera homens desprezíveis na vida, não confiava neles. Mas conforme ela e Tadeu se aproximaram e, ao invés de amantes se tornaram amigos, ela foi percebendo que, consciente ou não, o bom-mocismo de Tadeu era uma qualidade sincera. Vitória jamais descobriu se era uma qualidade que demandava esforço de Tadeu ou se era ao natural, mas isso pouco importava, pois era um comportamento coerente, que ele mantinha sob qualquer tempo.
A amizade deles durava anos, mas, para Vitória e seu histórico de namorados desprezíveis, Tadeu e seu bom-mocismo foram ganhando mais e mais brilho, e ela se pegou, se não apaixonada, extremamente atraída por ele. Com isso ela passou á flertar descaradamente com ele sempre que se ancontravam, mas ele jamais cedia á suas investidas. Á ponto de ela se perguntar se ele não entendia o que ela queria dizer ou se apenas fingia-se de desentendido.
Até aquela noite de quinta, em que, no apartamento dela, ela conseguiu extrair de Tadeu mais do que um sorriso tímido, um abraço fraternal e um "até mais" seguido de um beijo estalado e infantil.
Ela se pegou desejando Tadeu e seus cabelos encaracolados e negros, seu sorriso franco e seus trejeitos algo desajeitados. Foi por isso que ignorou o perigo do sexo desprotegido, e não se arrependeu, pois foi diferente do que ela estava acostumada, foi apaixonado, apaixonante, honesto, cúmplice... Pelo menos até a manhã seguinte, quando ele estava sentado aos pés da cama e perguntou à ela como eles ficavam. Aquilo irritou Vitória. A desencantou. E ela disse que ficavam do mesmo jeito, ainda que não fosse o que ela, de fato, queria.
Se despediu sem abraço fraternal, nem beijo estalado, nem com o abraço apaixonado e o beijo caloroso que imaginara antes de adormecer na noite anterior. E agora, após duas semanas sem falar com Tadeu, aquilo.
Estava grávida dele.
Como seriam as coisas? Talvez Tadeu e ela pudesem... Fazer uma limonada daqueles limões? Quem sabe essa situação servisse para mostrar a ambos que eram bons juntos? Que pertenciam um ao outro mais do que apenas como amigos?
Talvez ficassem juntos, quem sabe Tadeu e seu bom-mocismo a pedissem em casamento? Ela aceitaria? Com mil demônios, sim, sim ela aceitaria. Não tinha certeza se era o que ela queria da vida, pelo menos agora, mas, de qualquer forma, gostava de Tadeu, Talvez o amasse. Se ele fosse o homem que ela imaginava, eles seriam felizes juntos, superariam aquele momento de instabilidade inicial e venceriam juntos, Tadeu, ela e o seu bebê. Criariam a criança e formariam uma família. Ela gostaria de passar o resto da vida com Tadeu. Agora, pensando bem, deixando de lado a raiva daquela manhã de sexta, achava que... Não, não achava. Sabia que o amava. Que podia ser feliz com ele, e que podia fazê-lo feliz se ele lhe desse uma chance. Era uma mulher bonita, inteligente, senhora de si, podia fazer um relacionamento com Tadeu funcionar.
Limpou as lágrimas que ainda lhe escorriam pelo rosto avermelhado, e apanhou o telefone, digitou o número de Tadeu e, enquanto o telefone chamava, olhou novamente o teste de gravidez. A linha azul entre as palavras "Positivo" e "Negativo". Então olhou a embalagem do teste, e viu o diagrama ilustrado na caixa, que mostrava como o resultado do teste era apresetado no produto.
O resultado positivo era representado por duas linhas, uma azul, e uma vermelha. O resultado negativo é que era representado por uma linha azul.
Conferiu a tira plática que tinha na mão:
Uma linha azul. Negativo.
Tadeu atendeu o telefone com a voz sonolenta.
Vitória desligou.
Saltou até o armário do banheiro e o abriu, derrubou algumas caixas e encontrou a embalagem da pílula do dia seguinte. Abriu a bula e encontrou os efeitos colaterais. Hipersensibilidade nos seios, enjôo, confusão no cilco menstrual...
Fez outro teste. Aguardou os três minutos. Constatou a linha azul surgir no campo branco da tira plástica.
Não estava grávida. Não precisaria largar a faculdade, nem abandonar o emprego, nem voltar pra casa da mãe ou tentar engrenar um relacionamento com Tadeu... Estava tudo bem.
Vitória deitou-se na cama, cobriu-se com uma colcha tricotada, e abraçou os joelhos.
Estava tudo bem.
O telefone dela tocou. Ela atendeu, era Tadeu. Ele perguntou, algo sem jeito, se ela havia ligado pra ele. Ela mentiu dizendo que não. Ele respondeu com um "Ah.".
Se desculpou. Perguntou o que ela ia fazer de tarde. Ela dise que não sabia. Ele a convidou pra ir ao cinema ver o filme novo do Tom Hanks. Ela disse que ia pensar, mas que ligava pra ele. Se despediram e ela desligou.
Endireitou-se na cama, encarou o teto e sorriu.
Estava tudo bem.

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