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segunda-feira, 29 de março de 2010

Modéstia


Ela estava sozinha, escorada junto ao balcão da danceteria. Bonita, jovem, cabelos castanho-avermelhados compridos, presos em um generoso rabo de cavalo fixado no alto da parte de trás da cabeça, os cachos abertos, algo caídos por causa do suor, a nuca á mostra... Ah, a nuca... Talvez tenha sido a nuca. Não que o resto não fosse bom, o resto era muito bom. O corpo firme, não era dessas anoréxicas que mal tem peito e parece que esqueceram a bunda em casa, não, ela era quase como aquelas aves natalinas, no bom sentido, claro, mais coxa, mais peito... Tudo muito suculento enfiado dentro de uma calça azul marinho brilhante e de uma blusa de lurex prateada de frente única.
Ela mexia os ombros ao ritmo da música, e mexia os pés de forma intercalada, o que fazia seus quadris dançarem suavemente de maneira quase hipnótica, e um sulco surgir na parte externa de sua coxa, e que tremenda coxa.
Ela tinha feições bastante distintas, um rosto forte, de traços marcantes, o nariz, os lábios, os olhos, encantadores, de uma castanho-melado... Linda, linda, linda. Mas haviam outras bela mulheres lá, por isso ele acreditava, de fato, que houvesse sido fisgado afinal de contas, pela nuca á mostra.
A nuca, tão alva, com alguns fios mais curtos do cabelo avermelhado teimando em se grudarem na pele vagamente úmida de suor... Não pôde resistir. Quando deitou os olhos sobre ela, era a única mulher que estava no salão. Era a única mulher do bairro, da cidade, quiçá do mundo! Exceto se a Nana Gouvêia surgisse, mas essa era uma hipótese pouco factível.
De qualquer modo, ele a viu. Ele, no caso, era o Norberto.
Norberto já havia cruzado o cabo da boa esperança, também no bom sentido, é claro. Tinha cinquenta e um anos. Norberto se divorciara á pouco, contra a sua vontade, que fique bem claro. Se dependesse apenas dele, ele ainda estaria casado com Clarice, independente do pesadelo que aquele matrimônio se tornara para o casal. O Norberto estava, bem ou mal, satisfeito, era dessas pessoas de desejos simples que confundem marasmo com segurança, ou talvez saibam a diferença e nem ligam. O fato é que Norberto estava feliz trabalhando das nove ás cinco, morando em uma casa de três dormitórios só com a esposa, indo deitar ás onze e meia, passando férias em Cidreira e guardando um dinheirinho todo o mês pra comprar uma TV de 42 polegadas no final do ano. Ele estava, era um homem modesto, de ambições modestas, era um homem de certa idade, ora, bolas, era de um tempo em que as mulheres estavam satisfeitas com homens que fossem bons provedores, que ajudassem na criação dos filhos com um "Obedece a tua mãe e tá acabada a história.", e que não fossem "putanheiros" como dizia a sua mãe.
O problema foi que a Clarice, depois que o Fabrício e a Norminha saíram de casa, ficou com muito tempo livre. Norberto trabalhava quase o dia todo, sem os filhos em casa, ela terminava cedo as tarefas do lar e dizia-se entediada. Norberto culpava-se por ter dito "Arruma alguma atividade, então, nêga.", "Alguma coisa pra te distrair.".
Bom, foi o que a Clarice fez. Começou com grupos de leitura, depois grupos de caminhada, então surgiram a academia e, por fim, o trabalho voluntário. Ao redor de tudo isso orbitaram temporadas inteiras de Sex and the City, e Lipstick Jungle, filmes da Sofia Copolla e livros da Martha Medeiros, uma cirurgia plástica, dois finais de semana em um spa, e, de repente, lá estava Clarice, vestindo uma minissaia, dizendo á Norberto, no meio da sala, que precisava de espaço, que casara cedo demais e não aproveitara a vida como gostaria, poderia e deveria.
Queria o divórcio.
Ela fez ouvidos moucos ás súplicas de Norberto para que pensasse nas crianças, que pensasse em tudo que eles haviam partilhado, que pensasse, que droga, nas convenções sociais.
Ela não ouviu.
Ele dizer que, á despeito da plástica, ela continuava sendo velha, só que com a pele espichada pra baixo do queixo, não ajudou em nada. Na verdade ele tinha a impressão de que só complicara as coisas.
Norberto não teve opção. Cedeu a "carta de alforria", forma como Clarice saudou o documento assinado, á agora, ex-esposa.
E, subitamente, após quase trinta anos de casamento, Norberto se viu solteiro. Como era um homem modesto, de pretensões modestas, ele não demorou á se habituar á nova rotina. Na verdade, o período de auto descoberta de Clarice foi um laboratório pra vida de solteiro de Norberto, que se viu obrigado á aprender á fazer tarefas de casa novamente.
Ele saía do serviço, ia pro apartamento de um quarto que comprara perto do centro com sua parte do dinheiro da venda da casa, e limpava rapidamente. Preparava e comia alguma coisa simples, ás vezes comida pronta, e depois assistia TV até adormecer no sofá. Uma hora e meia depois de adormecer, ás vezes menos, acordava com uma dor medonha no corpo por pegar no sono todo torto no sofá, e então ia pra cama.
Um amigo próximo, Juvenal, esse sim um notório putanheiro, o aconselhou á aproveitar a liberdade. Disse que ele que era feliz, que devia aproveitar que era um adulto maduro, dono do próprio nariz de novo, e tirar o atraso. "Comer umas moças novas", nas palavras do amigo. Disse que Norberto certamente encontraria alguma nessas danceterias e bares que pipocavam na Cidade Baixa. Era uma forma de se manter ativo pra, sabe-se lá, o caso da Nana Gouvêia aparecer e querer testar as suas habilidades de amante.
Norberto, mais por tédio do que propriamente por interesse, resolveu tentar. Penteou bem os cabelos ralos e grisalhos, vestiu uma camisa preta, calças Lee (Pois é, Norberto era do tempo em que qualquer calça jeans era "calça Lee".), e um tênis, e foi pra noite.
Escolheu uma danceteria meio ao acaso. Primeiro observou a fila pra ter certeza de que não haveriam só crianças lá dentro. Chegou à conclusão de que apenas a imensa maioria era de crianças (Pros padrões do Norberto pessoas com idades abaixo de vinte e cinco, eram crianças e não tinha discussão.), mas também haviam alguns trintões e ele tinha certeza de que uma mulher na fila, uma gorda com blusa de oncinha, devia ter perto de quarenta.
E agora, ali estava ele. Mesmerizado pela Valquíria ruiva que se apoiava no balcão e dançava de maneira sutil ao som de uma música horrorosa que tocava tão alto que Norberto mal podia ouvir o que pensava.
Respirou fundo, alisou o cabelo com a palma da mão e caminhou resoluto até a moça.
Parou atrás dela, repetindo para si mesmo como um mantra que o sucesso só ama quem tenta.
Inclinou-se pra falar ao ouvido dela, sentiu o perfume suave que emanava de sua nuca, "putzgrila!" pensou. Então parou e pensou se ainda se dizia "putzgrila".
Recuou, chegar falando no ouvido dela não parecia um rumo de ação dos mais aceitáveis, não queria parecer um sem-vergonha. No tempo dele, pelo menos, não era de bom tom.
Tocou no ombro dela.
Ela virou, o olhou por um instante e abriu um sorriso, pareceu surpresa ao ver um senhor de cabelos grisalhos e bigode.
Ele perguntou polidamente, aumentando o tom da própria voz conforme percebia que não era audível, se podia olhar o cardápio com ela.
Ela sorriu e disse que sim, claro. Ele se perfilou ao lado dela no balcão, e ficou pensando no que faria á seguir conforme percebia que tirando cerveja, ele não conhecia o nome de nenhuma bebiba naquela carta. "Sex on The Beach", "Lagoa Azul", "Vezúvio"... Que fim levara o Kir Royal e a Cuba Libre?
Parou um segundo e mirou a jovem ao seu lado. Linda. Norberto gostaria de ser vinte anos mais novo pra ter um romance com ela. Não que fosse dispensar uma eventual noite de sexo casual com uma bela mulher, mas Norberto acostumara-se á gostar de alguém, á estar com alguém, se importar com alguém, e se a Clarice não tivesse começado á agir feito uma velha louca, ele ainda estaria casado com ela, e, com mil demônios, estaria feliz, afinal de contas, a amava. A vaca.
Fora vista pelo Juvenal jantando com outros dois casais, estava acompanhada de um homem de "uns quarenta anos", conforme Juvenal relatara. Ela que nunca queria fazer nada com ele, nenhum programa por que não queria deixar as crianças sozinhas, por que não suportava os amigos dele, agora fazia programas de casalzinho.
Que as plásticas dela estourassem durante o sexo com o tal do quarentão. Aquela vaca.
Respirou fundo, decidira levar a aventura sexual adiante. Tinha um Viagra em casa, dado pelo Juvenal, para o caso de as coisas se tornassem um desastre. Perguntaria o nome dela, faria um comentário á respeito, elogiaria os olhos dela, emendaria uma conversa sobre atualidades, e então daria o bote, algo como:
"-Ah, é? Fulana? Mas que nome lindo. Lindo como teus olhos. Tu sabias que é o nome de uma deusa grega? Aliás, visse os tumultos na Grécia? Coisa feia... Não me lembro o que ela, a Deusa que tem o mesmo nome que tu, representa. Tenho um livro á respeito em casa. Vamos lá pesquisar e descobrir?".
Sim... Passaria a mão nas costas nuas dela, arrancando-lhe suspiros, talvez um gemido leve... Por quê, não?
Abriu a boca para iniciar seu flerte, mas ela foi mais rápida:
-O senhor quer que eu leia?
Mais tarde naquela noite, Norberto riu. Mas na hora ele sentiu uma parte de si morrer. Chegou á pensar que choraria, ele que não chorava desde que o Inter fora campeão Brasileiro Invicto em 1979, tamanho foi o nó na sua garganta na hora em que a menina perguntou se ele precisava de ajuda pra ler o cardápio.
Fizera um papel de velho ridículo, morrera de vergonha. Saiu correndo sem dizer nada inteligível em resposta, e se apoiara na parede pra respirar e se recuperar do vexame.
Agora, sentado no rpóprio quarto, sorria. Levantou da cama sem fazer barulho, foi até o banheiro e constatou, com certo alívio, que o efeito do Viagra passara. Atendeu o chamado da natureza, e, voltando pro quarto, apanhou uma blusa de oncinha do chão. Sentou na cama e observou a mulher gorda ali deitada, ressonando alto, quase roncando.
Norberto certamente pediria o número dela, mas não ligaria. Queria apenas recuperar o amor-próprio. Antes de dormir imaginou se a ogra espalhada na cama prestaria-se á esse propósito, mas calculou que sim.
Era um homem modesto, de ambições modestas.

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