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quinta-feira, 23 de julho de 2015

Função Prática


Estavam os dois sentados à mesma mesa, do mesmo bar, om as mesmas bolachas de chope empilhadas entre um e outro.
Diante do Everaldo assomava um copo tulipa meio bebido, e ao menos três pilhas de bolachas de papelão com tamanhos variados, como se ele fosse um jogador de pôquer que ia muito bem naquela noite.
Diante do Paulo Roberto, uma garrafa de Coca-Cola 600 Ml., um cesto de aipim frito pela metade, e o telefone celular.
Ali pelas tantas, o Everaldo quebrou o silêncio:
-Estagnados, Pê Erre. Estamos estagnados...
O Paulo Roberto, que olhava o noticiário de longe, lendo as legendas do closed caption, encarou o amigo de esguelha e concordou:
-Pois é... Mas vamos tentar melhorar. Tô começando a pensar em voltar a estudar. Tentar um concurso...
-Não, caralho... Não nós tu e eu - Corrigiu Everaldo. -Nós a humanidade, Pê Erre. Estagnados. Paramos de evoluir, manja? A humanidade desistiu, Pê Erre. É uma porra de um empreendimento fodido. Fadado ao fracasso. Chegamos até o ápice, manja? A porra do ponto culminante. E agora, agora fodeu. Agora é só porra da ladeira abaixo, e azar é do goleiro, manja? Acabou, Pê Erre. Foi pro saco. Já era.
-Hmmm... Mas se chegamos ao ponto culminante... Então não deveríamos estar perfeitos? Quer dizer... Paramos de evoluir porque não tem mais o que melhorar? - Conjecturou Paulo Roberto brevemente, para então erguer as mãos e dizer: -Em teoria, claro.
O Everaldo bufou:
-Não, né, Pê Erre? Não chegamos à porra da perfeição. Só chegamos onde dava pra chegar, caralho. O melhor que deu pra fazer. É que em tu chegar em casa varado de fome e só ter duas salsichas na geladeira e um miojo no armário. Aí tu prepara aquela engronha e quando tu come esperando o pior, até que a merda não ficou ruim. E tu come feliz da vida. A humanidade é isso. Um miojo com salsicha bem feitinho. Mas pra chegar a um churrasco, a um estrogonofe, a um filé... Vai uma distância. Uma puta de uma distância.
O Paulo Roberto bicou seu refrigerante de cola, pensativo.
-Bueno... Então, se foi o melhor que dava pra fazer, por que o lamento? É o máximo, né? Tem que se contentar. Ficar feliz de ter dado pra chegar até aqui...
-Tomar no cu, Pê Erre. Quê ficar feliz? Quê ficar feliz? Ficar feliz porque tem mais de uma porra de uma célula? Ficar feliz porque deu pra sair da água? Porque deu pra desenvolver perna? Pra puta que pariu, Pê Erre. Pra puta que pariu. - Exasperou-se Everaldo. E continuou:
-Essa porra chegou no ponto máximo, e continua devendo. Continua devendo. Estamos aí, cheios de defeitos, cheios de coisa inútil... Cabelo na bunda, Pê Erre... Pra quê que serve cabelo na bunda? Qual a serventia dessa porra exceto dificultar na hora de limpar o botão depois de dar uma cagada? Cabelo no saco. Pelo na porra do corpo inteiro. Pra que é que serve? A gente tem uns verões filhos da puta de tão quentes. Um calor do caralho. Pra quê ter perna, braço, peito e cu cabeludo nesses calorões da porra? Ah, tu vai me dizer "mas no inverno tem uns dias bem frios". Verdade. Tem meia dúzia de dia frio no inverno. E me responde... Essas porras desses cabelos te aquecem no inverno? Tem algum daqueles dias filhos de um cão, com temperatura de cinco graus, úmido, nublado, em que tu sai de casa e pensa "Ah, coisa boa que eu tenho pelo nas canelas, nos antebraços, no saco e na bunda, senão eu ia estar com frio..."? Claro que não, ô caralho. Claro que não. Essa merda toda não é mais útil que uma porra de cauda residual. É atavismo. Ter cabelo no corpo é atavismo pra caralho, e todo mundo tem, que se não tivesse a indústria da depilação feminina não faturava milhões com Vit, Nudity e cera quente e o caralho a quatro pra mulherada esconder os bigodes, as pernas, os sovacos peludos e a porra toda. Essa merda prova que a gente parou de evoluir e não foi porque chegamos ao melhor que dava pra chegar. Foi por preguiça, mesmo.
O Paulo Roberto abanou a mão, como que afastando a declaração do amigo pra longe da mesa:
-Mas existem pencas de teorias de porquê nós temos pelos no corpo, Everaldo... Desde proteção contra a fricção, pra evitar assaduras e alergias no sovaco e na virilha, até depósitos de feromônios pra atrair o sexo oposto...
-Pra puta que te pariu, Pê Erre... Pra puta que te pariu... Eu tô te explicando por a mais bê que essa merda de ter cabelo no corpo é prova de que a gente parou de evoluir antes da hora... E digo mais! Digo mais! Te dou outra: Unha no pé! - Disse, triunfante, apontando para os próprios pés com uma das mãos e erguendo o indicador da outra ao lado da cabeça como quem diz "eureka".
O Paulo Roberto ficou olhando pra ele.
-Como assim?
-Pra que é que serve essa merda? Unha nos pés? Porque é que a gente tem essa porra? Pra que é que serve uma merda dessas?
-Pra coçar o calcanhar quando a gente tá deitado...? - Arriscou Paulo Roberto.
-Pra puta que te pariu, Pê Erre. Pra puta que te pariu. Hoje em dia neguinho dorme de tênis. Tu se coça em qualquer coisa. Até no colchão. Dedo nos pés, beleza. A gente entende. É importante pra se equilibrar. Se a gente tivesse o pé igual os da Mônica e do Cascão, não ia conseguir andar direito e nem ficar de pé... Mas e unha? Pra quê que serve unha na ponta das merdas dos dedos dos pés? Tu já viu uma unha de dedo mingo de pé? Tu já viu o tamanho dessa merda? Por que é que essa bostinha tá lá? Só pra dar trabalho. Só pra ter aquela porra lá pra tu cortar duas vezes por mês, pra juntar sujeira. Pra ter fungo. Te digo mais - Lançou, desafiador. -Se tu me disser uma função prática pra unha do pé, eu passo um mês sem beber!
O Paulo Roberto matutou brevemente. Então ergueu as sobrancelhas e disse, sorrindo:
-Tu tá no quarto... Do teu lado, aquela moça bonita, magrinha, branquinha, olhos verdes, cabelo castanho, deitada de barriga pra cima vendo TV. Pijama dos Looney Tunes, com o pernalonga desenhado na barriga, calças listradas de branco e rosa. Ela mexe o cabelo chanel escorrido da frente do rosto, e sorri pra ti. Tu sorri de volta, e dá um beijo nela. Tu percebe, por causa do ângulo e da diferença de altura entre vocês, que quando tu beija ela, ela mexe os dedos dos pés. Nos dedos dos pés, ela tem unhas bem pequenininhas, quase pontinhos, de tão pequenas, ainda que o pé dela seja um pé normal, tamanho 36, e os dedos tenham tamanhos normais pra um pé 36. Mas as unhas são bem pequenininhas. E elas estão pintadas com esmero, tudo certinho, de um lilás claro, quase imperceptível com a iluminação azulada da TV no quarto, mas apenas quase. E o movimento que ela faz, apertando os dedinhos pés quando vocês se beijam, vira quase um balé com a pintura das unhas dela dançando na iluminação irregular da televisão. E é o mesmo movimento que ela faz com os dedos dos pés oprimidos contra a tua panturrilha quando tu está por cima dela, beijando ela nos lábios e no pescoço.
O Paulo Roberto silenciou de súbito. Bebeu um gole de Coca, e comeu um aipim. Ato contínuo, o Everaldo repetiu o gesto, mordendo um aipim. Pegou o copo tulipa para beber um gole de chope, mas deteve-se. Ergueu o braço e suspirou alto:
-Miguelito, me traz uma porra dessa que o Pê Erre tá tomando.

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