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terça-feira, 5 de junho de 2018

Com Quem Contar


Quando ela desceu do Monza cinza na esquina ele já estava parado na frente do prédio. Eram seis e onze da manhã, e o frio e a umidade faziam o ar expirado por ele se condensar em uma névoa no ar. Ela andou saltitando em sua direção. Vestia um casaco vermelho vivo, uma saia preta curta e meias de lã pretas. Ao redor do pescoço tinha o que ele supunha ser um cachecol, mas descobriria mais tarde ser uma pashmina, cinza.
Ela sorriu:
-Deixa eu ver.
Ele balançou a cabeça negativamente, e então sorriu mostrando o dente quebrado.
Ela riu enquanto entrava no prédio. Identificou-se com o porteiro, e foram pro elevador.
Alguns minutos mais tarde ele já estava deitado na cadeira do consultório enquanto ela conectava seus instrumentos na bancada ao lado.
Ela disse:
-Eu sei que tu tem agonia com dentista. Mas não te preocupa, Ned. Sou eu. Pensa em alguma coisa que te agrade que em menos de meia hora tu vai estar saindo daqui com o sorriso novinho em folha. - Fez uma expressão de maluca e "acelerou" a broca, fazendo o ruído encher o silêncio do consultório vazio.
Ele gargalhou:
-Tu parecia a "overly attached girlfriend" fazendo essa cara.
-Que é isso? - Ela perguntou.
-Ah, é um meme bem conhecido. Não importa... -Ele deu de ombros.
Ele tirou o agasalho de moletom preto que vestia, e deitou na cadeira com a camiseta de manga curta.
-Tu não tá com frio, criatura? - Ela perguntou, fazendo cara de horror.
Ele respondeu negativamente. Sabia que estava frio, mas a verdade é que o frio não o incomodava tanto, e cumprira a distância entre sua casa e o consultório dela a pé, o que lhe aquecera.
-Que horror. Eu tô congelando. Nem queria tirar o pijama, quando acordei. Aliás, não queria sair debaixo das cobertas. Não há pijama que chegue nesse frio. - Ela disse, esfregando as mãos antes de calçar um par de luvas de látex azuis.
-Meias de náilon... E polainas... - Ele disse, hesitante.
-Meias de náilon e polainas? - Ela perguntou, algo surpresa enquanto colocava uma touca e a máscara. -Esse é o teu pijama ideal nesse frio?
-Não é a versão masculina, claro... - Ele disse. -Mas sim. - Ele confirmou. E continuou:
-Mas não essas meias normais, tipo meia-calça... Meia... Eu não sei a proporção... Sete oitavos? Pode ser? - Inquiriu, fazendo uma careta.
-Daquelas que vão até o meio da coxa? - Ela perguntou, a voz abafada por trás da máscara cirúrgica.
-Ai, é... - Ele confirmou, fazendo uma careta diferente, que contava com um sorriso.
-Não sei se combina. - Ela disse, franca enquanto franzia levemente o cenho.
-Quem liga se combina, ou não. Não é pra atender a um evento. É pra usar em casa... - Ele retrucou.
-Só isso, então? Meias sete oitavos e polainas? - Ela perguntou, se inclinando pra cima dele com a broca em punho.
Ele, ainda deitado na cadeira, boca bem aberta, pensou um pouco enquanto ela usava o aparelho em seu dente quebrado. Respirou fundo e assim que ela terminou, disparou:
-Ah, não! Tem mais coisa... Aqueles chapéus... Chapéu, gorro, não sei... Uns lances, tipo uma boina... São bem grandes...
-Um sombrero? - Ela perguntou, irônica.
-Não, tonta... - Ele disse, afastando a ideia com a mão.
Ela saiu de cima dele, que continuou:
-É tipo... Tipo uma babushka... ushanka... Sei lá. Uns chapéus de pele. Pra lugares muito frios...
-Ah... - Ela assentiu -Tipo aqueles chapéus de russo?
-Isso. - Ele concordou -Como chama aquilo?
-Como é que eu vou saber? Tu já me viu de chapéu na tua vida? - Ela perguntou sem esperar resposta, maneando a cabeça como quem não reconhece a validade da questão enquanto se virava de volta pro balcão atrás de si pra apanhar um frasco.
Ele se apoiou no cotovelo, olhando pra ela que removia um pouco de resina do frasco com uma pequena pá.
-Tu fica muito, muito séria quando tá trabalhando, alemoa...
Ela riu:
-Eu preciso me concentrar, senão teu dente vira uma presa.
-Peraí... - Ela disse erguendo a mão, o que a fez estacar por um momento, e continuou:
-Tu tá querendo dizer que dá pra me fazer presas?
-Cala a boca e deita aí... - Ela disse, se impulsionando na própria cadeira até a dele, e puxando-lhe a cabeça mais pra perto de si.
Momentos de silêncio enquanto ela, cuidadosamente, reconstruía o incisivo frontal quebrado.
-Fica bem paradinho. - Disse, enquanto se inclinava de volta pra trás, apanhando um aparelho com cara de arma futurista, e segurava apontado pro dente recém reconstruído: -Abre bem a boca e inclina a cabeça pra trás.
Ele obedeceu.
Ela começou:
-Pra mim... Pra mim seria regata e cueca boxer cinza... Tipo agasalho de mescla, sabe? Não gosto de branco. Tem guria que tem tesão em cueca branca... Eu não gosto. Tinha um louquinho, bonito, que nadava no clube lá em Dois Irmãos, ele era todo sarado... Abdome de Paulo Zulu, as gurias babavam nele... Mas o cara ia de sunga branca pro clube. Ai... Era o ó. Não tinha como. Homem de sunga branca, Deus que me perdoe, mas parece tudo viado.
Ele riu tanto quanto conseguia, com a boca escancarada e a cabeça jogada pra trás. Ela continuou:
-Preto... Eu acho bonito, cueca preta. Mas quem é que dorme de regata e cueca preta, sabe? Cueca preta, até conheço. Mas regata preta, só quem usa é marombeiro, pra andar na rua. Aqueles guris suburbanos ou playboyzinho metidos a fortinho... Regata preta e calça jeans desbotada, não tem como levar a sério. E o cara de cueca preta e regata de outra cor, branca, cinza... Não teria o mesmo efeito pra mim. As duas peças têm que combinar pra ter cara de pijama, saca? - Deteve-se:
-Deixa eu ver uma coisa.
Apanhou uma fina lâmina plástica e começou a cavoucar vigorosamente entre o dente reconstruído e o vizinho do lado.
-Firma a cabeça - Recomendou, enquanto parecia serrar com força os dentes dele. Esguichou-lhe água na boca e disse:
-Cospe.
Ele se inclinou pro lado e cuspiu dizendo:
-Não fala assim comigo que eu sou de família.
Ela não riu:
-Tua gengiva tá sangrando um pouco. Isso é começo de gengivite. Tu usa fio dental?
-Não posso - Ele respondeu. -Minha bunda é peluda.
Ela fez uma cara que dizia "eu não precisava ouvir isso". Ele riu:
-Não. Meus dentes são muito juntos. O fio dental me incomoda.
-Usa fita. - Ela disse.
-E existe isso? - Ele perguntou.
Ela balançou a cabeça em sinal de descrença:
-Na próxima vez que tu morder uma azeitona e quebrar o dente da frente eu vou te cobrar integral.
-Eu disse que te pagava integral! - Ele protestou.
-Tô brincando, orgulhoso. Deita aí.
Ele obedeceu. Ela se inclinou novamente por cima dele enquanto regulava a altura da cadeira onde ele estava deitado, baixando os óculos sobre os olhos azuis.
-Morde. Deixa eu ver se ficou certo...
Ele cerrou os dentes:
-O dente torto tá pegando aqui - Ele disse, apontando a parte de trás do dente reconstruído com a língua.
Ela apanhou a broca e esculpiu a resina.
-Agora?
Ele rilhou os dentes e ergueu o polegar afirmativamente:
-Perfeito.
Ela esguichou-lhe água na boca, ele bochechou e cuspiu. Ela lhe deu alguns guardanapos pra ele secar o bigode e o cavanhaque, molhados, e disse:
-Vou te dar uma receita de bochecho. Compra na farmácia. Eu quero ver esse dente de novo daqui duas semanas.
Ele ergueu as sobrancelhas:
-Não tá pronto?
-Ai, tá, mas não tá. Eu reconstruí quase tudo, mas a parte mais perto da gengiva eu tive que usar um material provisório por causa do sangramento. Faz o bochecho com o remédio, usa o fio dental e volta pra eu poder trocar essa partezinha.
Ele assentiu perguntando:
-Quanto eu te devo?
Ela deu de ombros:
-Vou ver quanto dá de material. Depois tu me paga.
-Eu preferia te pagar agora. Integral. Te tirei de casa seis da manhã pra me dar essa força. Posso te pagar. Prefiro pagar pra ti do que pra um dentista de verdade.
Ela levantou o dedo médio das duas mãos fazendo cara de furiosa. Ele riu e a abraçou:
-Sério, alemoa. Me deixa te pagar. Não quero que tu te incomode com o teu chefe, e além disso, tu trabalhou. Precisa ser paga.
Ela suspirou e assentiu sob condições. Ele entregou o dinheiro, recebeu uma receita e uma nota fiscal. Ela cedo, pouco mais de sete da manhã. Ele perguntou:
-Tu vai ficar aqui?
Ela fez que não com a cabeça.
-Vou pra casa. Hoje trabalho só de tarde.
Ele se aproximou e a abraçou:
-Obrigado, Alemoa. Por ter vindo. Valeu, mesmo.
Ela lhe estalou um beijo na bochecha barbada:
-E tu? Vai pra casa?
-Não. Vou indo pro trabalho devagarinho. Dá tempo de chegar lá e ver uma entrevista do Letterman na Netflix antes de abrir a loja.
Ela sorriu:
-Boa pedida. Eu vou voltar pra casa e dormir até as onze. E te garanto que não vai ser usando só polaina, meia sete oitavos e um chapéu de pele.
Ele fez cara de pouco caso, puxando o elástico da cueca preta pra fora da calça jeans:
-Azar o teu. Pra teu governo, eu durmo com isso e uma regata preta... E também tenho um conjunto cinza.
Ela mostrou os dedos médios pra ele de novo, que acenou com uma piscada enquanto tomava o rumo do trabalho.
Era bom, pensou, ter amigos.

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