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quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O de sempre


Estavam ela e ele sentados no restaurante, o mesmo restaurante de quatro anos atrás, a mesma mesa perto da janela, outra vez numa noite de sexta-feira de um outono ainda moderado de Porto Alegre.
Ela sorria muito, ele parecia nervoso. Isso era normal entre eles, não ela sorrir, ela sorria, claro, mas não era essas pessoas que tratam a todos como dentista, mostrando os dentes o tempo todo, não. Ele, por outro lado, estava sempre nervoso. Ou, ao menos, parecia nervoso. Essa noite não era exceção. Ele parecia nervoso dentro do seu blazer preto, de sua camisa cinza e de sua camiseta branca. De vez em quando afastava a camisa do peito e assoprava lá pra dentro tentando se refrescar.
"Errei a roupa.", repetia sem parar. "Errei feio".
Não adiantou ela lhe dizer que fosse até o banheiro e se livrasse da camisa, ou da camiseta.
"Onde é que eu vou colocar a camiseta? Ou a camisa, se eu tirar?", ele perguntou.
Ela pensou em responder que sua bolsa era grande, e uma camiseta enroladinha, como a gente dobra pra colocar na mochila ocupando menos espaço em uma viagem, caberia facilmente ali. Mas desistiu ao lembrar que, se dissesse isso, ele iria dizer que queria ficar com a camiseta e tirar a camisa, e que a camisa, se colocada na bolsa dela, iria amarrotar inteira, e não sei mais o quê. Ela, depois desses quatro anos, ainda se espantava com a facilidade que ele tinha pra tergiversar quando queria continuar se fazendo de vítima, ou apenas continuar se queixando sobre qualquer coisa. Não mencionou a bolsa. Disse apenas pra ele fazer como quisesse.
Ele segurou a camiseta e a camisa entre o polegar e indicador e as sacudiu rapidamente. "Por que não ligam o ar-condicionado, aqui, meu Deus?", suspirou.
Ela olhou pra ele com ternura, embora tentasse, na verdade, se lembrar se ele sempre fora chato, assim.
Ele bufou. "Cadê os garçom?", olhava pros lados. Quando se incomodava, ele abandonava a concordância verbal. "os garçom" ela repetiu baixinho.
-Quê?
-Nada. Não vi nenhum desde que a gente se sentou. Mas eles devem existir, aquela mulher gorda ali tá comendo. - Ela respondeu, apontando com o queixo pra uma moça de cintura bem ampla sentada em uma mesa próxima.
"Ele vai fazer um 'psssssssssssssh' sussurrado e meio rindo e me dizer pra não apontar", ela pensou "O de sempre".
-Psssssssssssssh, não aponta! - Ele disse, sussurrando entre risos, mas parou imediatamente.
Ela sorriu olhando pra ele quando a pegou pela mão, ainda olhando em volta.
Quando foi que ele se tornou tão previsível? Será que foi quando ela percebeu tudo o que deixara de fazer pra ficar com ele, ou foi depois? Ou antes?
Ele não era má pessoa. Só... Ela não sabia. Talvez ele tivesse um prazo de validade curto. É. Era isso. Sua validade era breve. Mais breve do que quatro anos, pelo menos. Quatro anos, e ela era capaz de antever todas as reações dele. Nenhum problema nisso, ela pensou. Provavelmente era um efeito colateral normal de uma relação de longo prazo.
O problema eram todas as reações dele, de repente, a incomodarem.
O garçom finalmente apareceu. Ele fez um "ah!". "Ele vai soltar a minha mão, agora", ela pensou. "ele sempre solta a minha mão quando vai falar com as pessoas. Parece que se eu estou segurando a mão dele ele se torna incapaz de articular uma palavra."
Ele soltou a mão dela e fez hãããããã, enquanto olhava pro cardápio. "Ele vai pedir uma água com gás." ela pensou. "O de sempre.".
-Uma água com gás. - Pediu. -E tu? - Perguntou pra ela.
-Uma coca light.
O garçom anotou os pedidos, deixou dois cardápios e saiu.
"Ele pede antes de mim, agora. Antes, ele sempre me perguntava o que eu queria, antes de pedir. Será que fui eu que matei o cavalheirismo dele? Com a minha auto-suficiência, talvez?", ela se perguntou, "Ou será que foi ele? Ou será que foi o tempo?".
-Tô seco por uma água com bolinha. - Ele sentenciou procurando a mão dela. Mas ela recolheu a mão. Fingiu mexer na bolsa. Ergueu os olhos. Ele olhava pra ela. Sorriu. Ele sorria fechando bastante os olhos. Tinha os olhos pequenos, e eles quase sumiam quando ele sorria.
Ela sorriu de volta. Foi um sorriso forçado. "Será", ela pensou, "que um sorriso forçado significa alguma coisa? Nada de bom, eu suponho. Um fim, talvez.", mas não disse nada. Baixou os olhos mirando novamente a bolsa. Não conseguia mais fingir estar procurando nada. Nem tinha tantas coisas na bolsa naquela noite. Ele apanhou a mão dela com firmeza, e levou até perto do nariz. Do lado da narina direta. Apanhou, com cuidado, o dedo indicador dela, e passou ali, do lado do seu nariz, naquela reentrância que existe onde a narina se junta com a maçã do rosto.
-Tá sentindo? - Ele perguntou.
Ela sentiu, de fato, uma pequena aspereza na região. Uma linha de pele mais dura. Respondeu que sim. Perguntou o que era.
-É uma cicatriz. Dois pontos. Parece uma bobagem, dois pontos. Dois pontos não são nada. Mas essa cicatriz eu consegui quando tinha cinco pra seis anos. Eu nem sequer tinha chegado à pré-escola. Era bem pequeno. Naquela época, primeira metade dos anos oitenta, o SBT passava um seriado do Capitão-América. Era muito ruim. O uniforme do Capitão América nem era parecido com o do gibi, ele usava um capacete ao invés de máscara, o escudo dele era de plástico transparente, eu nem faço uma ideia remota, hoje, de qual era o mote do seriado, mas suponho que fosse alguma coisa como a série do Homem-Aranha com o Nicholas Hammond, uma tentativa frustrada de repetir o sucesso do Hulk com o Bill Bixby e Lou Ferrigno, enfim, eu tô me desviando do assunto, desculpa. O meu ponto é que eu, nos meus cinco, seis anos, adorava essas séries todas. Hulk, Homem-Aranha, Capitão-América. E eu tenho quase certeza absoluta, que eu estava brincando de Capitão-América, quando resolvi fazer uma manobra mais arrojada, que consistiria em subir no sofá da sala, tomar um pequeno impulso, correr pelo chão da sala, encerado com esmero pela minha mãe, me ajoelhar, e deslizar sobre os joelhos até embaixo da cama, ainda que isso fosse me deixar com joelheiras de Tacolaqui, que era a cera que minha mãe usava, nas calças de abrigo azul-marinho que eu vestia. Eu não sei, ao certo, o que essa manobra representaria na minha brincadeira. Eu suponho que, o sofá, representasse um helicóptero, que eu tivesse nocauteado o piloto, a aeronave estivesse caindo, e eu fosse saltar dela. Assim, a minha corrida e posterior deslizamento seriam por uma estrada de chão batido, e a cama seria um caminhão, sob o qual eu estaria me abaixando pra não ser atropelado. O que é muito legal se considerarmos que no início dos anos oitenta, nenhuma série de TV teria cenas de ação tão elaboradas, de modo que isso advoga em favor da minha criatividade infantil. Enfim, a minha manobra foi calculada com frieza, entretanto, minha elasticidade aos cinco anos de idade não era digna de super-herói, e embora eu tenha sucedido no meu intento de saltar do sofá/helicóptero, e tenha sido capaz de correr por breves metros no chão, e me ajoelhado e deslizado, eu não consegui me abaixar o suficiente pra evitar a cama/caminhão. E bati justamente com esse espacinho, do lado do nariz, na quina da cama. Eu, claro, chorei. Afinal, era um piazinho de apartamento que ainda nem frequentava a escola, meu pânico, porém, só surgiu quando minha mãe me olhou e disse algo como "aimeuDeusdocéu!" e correu comigo pra lavar o rosto. Foi só quando eu percebi o sangue. Muito sangue. O que é normal, claro, o nariz é uma zona super irrigada, qualquer coisinha nas imediações sangra uma barbaridade. Mas na época eu não sabia, e me desesperei. E enquanto eu estava sendo vestido pela minha mãe pra ir ao pronto-socorro, enquanto ela telefonava pro meu pai pra avisar ele que eu tinha me machucado e me mandava fazer pressão no nariz, eu tive, por alguma razão, certeza de que eu ia morrer.
Ela riu. Ele continuou:
-Eu sei, é uma bobagem, quem é que morre por causa de um corte perto do nariz, certo? Nós sabemos disso. Mas, aos cinco anos, eu não tinha essa consciência. Pra mim, perder sangue, especialmente em grandes quantidades, e ser levado pro hospital, eram sinônimos de morte iminente. O desespero da minha mãe não ajudou a mudar a minha opinião. Claro, eu levei dois miseráveis pontos. Conversei e brinquei com o taxista que nos levou ao HPS, com o médico que inclusive me deu a agulha da "operação", com meu pai, que disse que eu ia ficar com cara de bandido e ser temido pelos meus futuros colegas na escola... Nada daquilo, porém, mudou a sensação de "saber" que eu ia morrer que eu experimentei. O que foi uma bobeira de criança que se machuca pela primeira vez, acabou sendo uma coisa positiva, sabe? Nos anos que se seguiram, especialmente quando eu fiquei um pouco mais velho, eu sempre me lembrava daquela sensação. A sensação de morte iminente, ainda que artificial, ainda que injustifcada, sempre me fazia valorizar um pouco mais as coisas, entende? Eu sou um sujeito aborrecido, eu não nego. Eu me aborreço com facilidade, e não custa muito pra eu me tornar rabugento, pra ficar de mal com o mundo. Não é algo que eu cultive por que gosto, é um traço de personalidade com o qual eu tenho que lidar. De qualquer forma, durante muito tempo, a minha muleta pra achar um pouco mais de cor nos meus dias, era aquele episódio de "quase morte". O sangue, a adrenalina, a urgência. Mas, claro, conforme eu fui ficando mais velho, aquilo foi perdendo o sentido. Eu fui aprendendo coisas, perdendo entes queridos, vendo gente que eu amava ir embora por que queria ou precisava. E aquele episódio, esses dois pontinhos, perderam o peso, a relevância, e eu perdi essa muleta. Mas quando a gente se conheceu, e tu, por alguma razão gostou de mim, e foi doida o suficiente pra querer ficar junto comigo... Bom, isso virou a motivo pela qual eu, vez que outra, me flagro pensando que estou sendo mais rabugento e resmungão do que a vida merece. A razão pela qual meus maus humores ás vezes se tornam humores menos piores, ou até, quase bons humores. E a tinta que torna meus dias cinzentos mais coloridos. Então... Bom: Obrigado.
O garçom chegou perto da mesa antes que ela pudesse responder qualquer coisa.
-Querem pedir? - Perguntou, jovialmente.
Ele olhou pra ela:
-O que tu vai querer?
"O de sempre." ela pensou. "Pra sempre."

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