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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

surreal


Francisco estava cansado após mais um dia estafante de trabalho. Era verão, mas ele vendera suas férias. Trabalhava no competitivo ramo da propaganda, e férias eram um luxo ao qual não podia entregar-se. Não precisava. Sentia-se bem trabalhando, no seu emprego era o sujeito a quem os demais recorriam quando não sabiam o que fazer, era o sujeito com todas as respostas, era o cabeça, e era questão de tempo até que os donos da companhia vissem isso e lhe dessem o devido valor. Mas, para ser visto, não podia tirar férias. O que precisava fazer era trabalhar. Chegaria em casa, comeria alguma coisa, e mergulharia de cabeça no novo projeto, até março deeria ter ótimos resultados pra mostrar aos clientes.
Entrou em seu prédio tranquilo. Subiu o elevador, e enfiou a chave na fechadura, a girou e abriu a porta. Foi quando deparou-se, espantado, com um cachorro. O animal se aproximou efusivamente, cheirando suas pernas e abanando uma cauda peluda, tipo espanador. Era um cachorro bonito, grande, felpudo. Francisco colocou a mão no dorso do cachorro tentando entender o que aquele bicho fazia na sua casa. O animal lambeu-lhe a mão com alegria, e então deitou-se aos seus pés de barriga pra cima, como quem espera festa. Francisco, ainda intrigado, coçou a barriga do cachorrão fazendo a pata traseira dele balançar de satisfação. Pensava o que diabos aquele canzarrão amistoso estava fazendo em sua casa. Subitamente, da cozinha, veio uma voz de mulher:
-Limpem os pés! - Ela gritou. Francisco, ainda aturdido e coçando a barriga do cachorro, olhou pro chão e percebeu que seus pés, de fato, estavam um pouco sujos. Mas... Mas quem poderia ser a mulher que o mandava limpar os pés? Teria ele acidentalmente entrado no apartamento errado? Mas como a sua chave funcionara na porta de outro apartamento? Ah, o síndico certamente ouviria poucas e boas quando Francisco o encontrasse. Parou de coçar o cachorro, levantou-se e abriu a porta do apartamento. Talvez conseguisse sair antes de ser notado pelos vizinhos e ter que passar pelo constrangimento de explicar que entrara na casa errada. Olhou o número na porta, 305.
Mas... Mas trezentos e cinco era o número do seu apartamento... Teria entrado no prédio errado? Teria uma família com direito a cachorro e tudo se mudado para o seu apartamento enquanto trabalhava? O que teria acontecido, perguntava-se.
-Amor - Disse uma voz feminina atrás dele. -Leva o lixo pra mim, fa'çoavor?
Virou-se com um olho fechado e o outro aberto, esperando um grito de horror, mas, ao invés disso, ganhou um selinho nos lábios.
-Leva lá pra mim, já que eu trabalhei o dia inteiro, peguei a Lourdes na escola e ainda tô fazendo janta.
A mulher era alta, cabelo castanho bem curto, bonita. Francisco recebeu o beijo, os sacos de lixo nas mãos, e um abraço do cachorro. Ainda intrigado, colocou o cachorro no chão, abriu a porta e saiu levando o lixo consigo. O que diabos estaria acontecendo? O que havia se passado enquanto Francisco trabalhava? O que diabos do inferno podia ter ocorrido? Francisco tentou se lembrar do dia anterior, mas era difícil pra ele lembrar até o que comera no almoço, era, afinal de contas, um sujeito ocupado, aterafado, assoberbado pelo peso das responsabilidades. Quem era aquela mulher, por que ela o tratava por amor? Desceu com o lixo. Largou na lixeira. Talvez o zelador soubesse o que estava acontecendo. Chegou a ir até a porta dele, mas refreou-se. E se estivesse tendo algum tipo de alucinação causada pelo estresse? Fazia algum sentido, não é? Afinal, nem era capaz de lembrar da última vez que tirara as preocupações da cabeça e descansara. Sim, pensou Francisco. Era apenas cansaço. Estava imaginando coisas. Voltou ao seu apartamento. Ao colocar a chave na fechadura, ouviu um animal fuçar sob a porta. "O cachorro imaginário.", pensou Francisco. Era o tipo de cachorro com o qual sonhava na infância. Grande, peludo e amigável. Sim. Aquela coisa de cachorro era uma alucinação, claramente. Abriu a porta e sua alucinação o abraçou novamente. Era uma alucinação pesada. Quase o derrubou. Ele se chocou com a porta, e segurou-se pra não cair. Tentou se concentrar para fazer o cachorro imaginário desaparecer. Não conseguiu. O cachorro continuava ali. A mulher bonita apareceu de novo.
-Passa, McCoy, deixa o Francisco! - Esbravejou. O cachorro protestou com um "rworrrrwow", e se refugiou sob a mesa da cozinha. A mulher bonita passou a mão no ombro de Francisco:
-Tu deixa esse cachorro fazer o que quer contigo.
Francisco começava a se preocupar. O que poderia estar acontecendo? Quem era aquela mulher? Que cachorro era aquele?
Uma menina pequena, de seis, talvez sete anos, surgiu correndo. Tinha uma folha de papel ofício na mão. A estendeu a Francisco:
-Ó, pai.
Francisco a olhou horrorizado. Era uma criança bonita. Cabelo castanho escuro escorrido, olhos cor de mel. Ele apanhou a folha e olhou. Um desenho feito com lápis de cor, mostrava uma família na praia.
-A gente vai, pai?
A menina perguntou. Francisco olhou pra ela novamente.
-Quê?
A mulher bonita voltou:
-Não enrola a guria, Chico. A gente vai ver, Lurdinha.
Francisco não sabia o que fazer ou dizer, como proceder, ainda lutava para concatenar o que poderia ter acontecido. A mulher bonita voltou:
-Chico? Cadê o Eltinho?
-Hu... - Chico não sabia de que se tratava. O que devia dizer? Quem era Eltinho? O cachorro? Não, não... O cachorro se chamava McCoy, não era?
A mulher bonita fez um ruído de quem está fula da vida. Apanhou as chaves do carro penduradas no bolso de Francisco.
-Eu achei que ele tinha entrado contigo, mas tava muito silencioso. O mundo ainda não tinha começado a ser destruído no Playstation. Tu esqueceu o meu filho no futebol de novo, Francisco? Pelo amor de Deus. Tu sabe como ele vai ficar nãO é? Tu lembra da última vez... Vem Lourdes. Vamos buscar o mano. Chico, cuida a janta ali pra mim, pelo menos.
A mulher bonita saiu parecendo desapontada, carregando a menina Lourdes pela mão. Saíram pela porta deixando o cachorro amigável tristonho a sós com Francisco.
Francisco recisava descobrir o que era aquilo. Que tipo de anedota era aquela? Teria ele viajado no tempo? Teria ele sido vítima de uma abdução alienígena? Teria sofrido lavagem cerebral dos russos e sido enviado para matar a Dilma?
Saiu andando pelo apartamento. Era o seu apartamento. Algumas daquelas coisas eram suas. Claro, as almofadas coloridas no sofá, o carrinho de controle remoto no chão, aquela Santa Ceia brega na parede, aquilo não era seu. Mas muitas coisas eram. Em cima da mesinha do telefone havia uma foto sua. Jovem ainda, bastante cabelo cheio de gumex. Na escola. Vestia a camiseta do ginásio. Estava abraçado em uma moça. Muito bonita. Cabelos castanhos bem lisos, olhos grandes castanho-claros. Ele lembrava dela daquela época. Como se chamava, mesmo? Tainá! Sim. Tainá era o nome dela. Nossa, ele era louco pela Tainá. Era apaixonado por ela. Seus amigos diziam-lhe que se ele deixasse a Tainá escapar, era louco.
Olhou na estante e encontrou um álbum de fotografias. Abriu o álbum com a tensão movendo os nervos de seus dedos. Ali estavam, mais fotos da Tainá e dele. Ela e ele na praia. Ela e ele em alguma festa de carnaval. Ela e ele em um jantar de... Noivado? Ela e ele casando no civil? Ela e ele casando na igreja... Ela linda, com seu vestido azul-claro, ele de paletó preto e gravata prateada... Que brega... Ela no hospital, com um barrigão de muitos meses de gestação. O Eltinho, recém-nascido, nos braços de Francisco. Eles no zoológico. O Eltinho e a primeira bicicleta. O Eltinho e a Tainá na praia. A Tainá grávida de novo, esperando a Lourdes. Primeiro dia de aula do Eltinho. Um desenho da Lourdes, dobradinho ocupando o espaço de uma foto.
Francisco fechou o álbum com lágrimas nos olhos. Subitamente entendera o que havia acontecido. Ele não esquecera de nada, para esquecer, é preciso ter sabido um dia, pra esquecer de um momento, é necessário ter estado presente, então. Ele não estivera. Francisco era um fantasma, um eco que deperdiçara o tempo mais precioso fazendo nada exceto colher o vil metal.
Agora, pensava, precisava descobrir um modo de recuperar o tempo perdido enquanto havia tempo. Enquanto ainda podia, para não ser ele, mais adiante, o esquecido.

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