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quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Veraneio...



Os pais do Benício tinham uma casa perto da praia em um balneário menor do Rio Grande do Sul, não "tinham", assim, no sentido pleno de posse. Era uma casa de família.
No caso, da família do pai do Benício.
Se alguém era, de fato, dono daquela casa, era a avó do Benício, dona Fefa, que estivera presente, inclusive, na construção da casa, em meados dos anos cinquenta. Ainda assim, era a casa da vó e do pai, e dos tios do Benício, e, sendo casa do pai do Benício, era, também, de sua mãe.
O Benício nem era capaz de lembrar de seu primeiro verão naquela casinha, até por que, seu primeiro veraneio começara aos três dias de vida. Hoje em dia um médico poderia ficar escandalizado ao saber que um bebê de poucos dias viajara pro litoral, expondo-se a, sabe Deus quantas doenças. Felizmente, no início do anos oitenta, não se ficava doente com tanta facilidade quanto hoje em dia. Na verdade, analisando friamente, parece que existiam menos doenças naquela época do que hoje em dia. De qualquer modo, foi no final de fevereiro do ano de mil novecentos e oitenta e um, que o Benício, com três dias de vida, foi à praia pela primeira vez.
E, rapaz, ele adorava a praia. De uma maneira orgânica, de ficar doente se não fosse, como dizia seu avô materno, "salgar os colhões" pelo menos uma vez por ano. Era fácil, afinal de contas, a casa de veraneio de sua família estava sempre lá, pronta pra acolher Benício, e assim foi feito, todos os verões, entre oitenta e um e oitenta e seis, sem sobressaltos.
Foi no verão de 1987, o primeiro após seu divórcio, que a mãe da Carol, Lígia, alugou a casa vizinha à da família de Benício, tanto pra Carol se distrair e curtir um pouquinho de normalidade, quanto pra ela própria desopilar um pouco do que fora um ano infernal. Ela ficou feliz ao saber que a casa da direita estava ocupada por uma família dita ideal, a família de Benício, com pai, mãe e filho, e a da esquerda, por uma senhora gorducha com pinta de avó, que cozinhava muito e estava sempre levando guloseimas pros vizinhos e que tinha cachorros Daschhund suficientes para invadir Mordor, a dona Marly.
Carol, então com sete anos, adorou a casa, adorou a praia, e a liberdade do balneário. Apenas ressentia-se da falta de mais crianças com quem brincar na vizinhança. Em Caxias, onde vivia, morava em um condomínio, esses com parquinho interno, de modo que criança com quem brincar era artigo abundante. Ali, porém, a única criança na mesma faixa-etária que ela, era Benício. As demais já tinham entre doze e quatorze anos, e não queriam brincar com gurizinhos e guriazinhas de metade de sua idade.
Isso jamais incomodou Benício, ele era um guri de apartamento. Totalmente, inapelavelmente, hermeticamente ensimesmado.
Era, talvez, reflexo de sua criação. Filho único, vivendo em um prédio onde crianças eram raras, onde barulho não era visto com bons olhos, era amante de brincadeira silenciosas, de gibis do Conan, do Homem-Aranha e do Superman, de desenhos animados dos Comandos em Ação, He-Man, Homem-Aranha & Seus Incríveis Amigos, Superamigos, e Thundercats. Quando ia à praia, ganhava uma liberdade que lhe era excitante, sim, que lhe era bem-vinda, sim, mas que não lhe alterava os hábitos solitários. Não era raro vê-lo sozinho em cima do muro de pedras da casa fingindo enfrentar múltiplos inimigos carregando um taco que, em sua imaginação, se tornava uma Espada Vorpal, ou um sabre-de-Luz, ou percorrendo as dunas perto do mar, usando um chapéu de palha sobre os cabelos pretos encaracolados e com uma corda enrolada na cintura, que em suas brincadeiras tornavam-se o Fedora legítimo e o chicote certeiro de um intrépido arqueólogo.
Para Benício era normal brincar sozinho. E era divertido.
Pra Carol, não.
Tanto que foi iniciativa dela própria, sem precisar de encorajamento da mãe, ir até a casa ao lado e perguntar, não ao Benício, mas ao pai dele, se o piá podia brincar.
Após ouvir aquele orgulhoso "claro que pode!", e, o consequente "ele tá lá nos fundos, pode entrar.", ela encontrou o moleque solitário causando um trágico acidente em uma rodovia repleta de carrinhos de fricção.
No papel da rodovia, o muro baixo que limitava o terreno da casa, no papel da razão do trágico acidente, um Tiranossauro Rex de borracha. Carol não se fez de rogada. Parou perto de um desconfortável Benício e anunciou:
-Teu pai te mandou brincar comigo.
Benício suspirou olhando em volta, algo intrigado com a presença da pitôca da cabelo chanel loiro e vivos olhos azuis. Esfregou a mão no Homem-Aranha sujo de picolé de uva em sua camiseta, e, como se não houvera mais nada a fazer, estendeu à Carol o Tiranossauro de borracha:
-Ó... Destrói a rodovia enquanto os carros tentam fugir. Esse aqui é o principal. -
Era uma coisa do Benício. Pra ele brincadeiras eram como filmes. Tinham que ter um protagonista e um roteiro. Naquele caso, um Gran Torino vermelho e branco igual ao de Starsky e Hutch que deveria escapar da tragédia.
Não foi o que aconteceu.
Nas mãos de Carol o T-Rex saltava grandes distâncias, cuspia fogo, falava, e mesmo sob protestos de Benício, chegou a voar algumas vezes. Ainda assim, com seu "roteiro" virado do avesso, seu protagonista morto, e o tiranossauro sendo coroado simbolicamente rei da rodovia suspensa, Benício se divertiu muito.
E continuou se divertindo nos dias que se seguiram.
Outras brincadeiras aconteceram. Carol personificou Marion Ravenwood, a princesa Leia, a Flama, Thyla, Cheetara e Mulher-Maravilha. Outras vezes Benício viu-se transformado em um marido devotado em várias brincadeiras onde Carol era uma mãe atarefada. Ninou, ruborizado de vergonha, ursos de pelúcia e bonecas Meu Bebê, foi um aluno aplicado e um bagunceiro quando Carol incorporava uma professora primária, e foi um temido assassino que deveria entrar pela janela e estrangular uma estrela de cinema se não tivesse caído, machucado o cotovelo e voltado chorando pra casa.
Correram de mãos dadas pela praia, e brincaram de derrubar a areia que formava pequenos penhascos de trinta centímetros ao redor do córrego que rumava serpenteando pro mar, inticaram com os cachorros da dona Marly apenas pelo prazer de vê-los fazendo alarido, comeram picolés, sorvetes e crepes, se lambuzaram até quase a alma de todas essas guloseimas.
No final do mês, no aniversário de Benício, Carol comeu bolo com ele, salgadinhos e brigadeiro em sua festa. Ajudou-o a abrir brinquedos, e lhe deu de presente um livro, Pedrinho Esqueleto, que ele teria achado muito sem graça se tivesse sido dado por qualquer outra pessoa. Competiu com ele e venceu um campeonato de embaixadinhas com balões, e chorou quando ele acidentalmente a atingiu perto do olho com um dardo de ventosa disparado de uma pistola de plástico verde-bandeira. Quando março chegou, eles se despediram sem muita conversa ou emoção.
Eram amigos de verão.
Deram tchau, e mais nada. E Benício ficou olhando sua amiga partir pela janela do carro de Lígia, e sorriu quando ela acenou pra ele pelo vidro traseiro do carro, com os cotovelos apoiados no banco de trás.
Nos anos seguintes, de oitenta e oito à noventa e um, Carol e Benício seguiram sendo melhores amigos de verão. Se encontrando e renovando o arsenal de brincadeiras a cada veraneio.
Em dias chuvosos jogavam xadrez chinês, damas e dominó enquanto comiam bolinhos de chuva e tomavam toddy, nos dias ensolarados iam à praia e ficavam na água até os dedos murcharem, depois saíam batendo dentes e comiam milho-verde, encontrando alívio para os rigores do gélido vento nordestão na água morna que escorria do milho recém cozido, ou então torravam sob o mormaço inclemente do litoral gaúcho após pensarem, incautos, que com o tempo nublado não precisavam tanto de protetor solar.
Eram amigos, mas, conforme cresciam, iam se tornando também, confidentes.
Carol contava a Benício das mazelas de ser a filha de um lar desfeito. Benício a consolava contando-lhe as mazelas de ser o filho de um lar tradicional.
Carol desdenhava da mãe, talvez uma ponta de ressentimento e saudades do pai.
Benício ressentia-se de seu pai, da instabilidade emocional dele, e de sua fraqueza pelo álcool.
Ela lhe dizia por que os livros da série Vaga-Lume eram coisa de criança, e ele explicava à ela porque, na prática, o Homem-Aranha era o herói mais poderoso dos quadrinhos.
Conversavam sobre isso e muito mais, apoiavam-se um no outro naquele mês que partilhavam todo ano, depois despediam-se com "tchaus" verbalizados entre dentes e acenos discretos.
Naquele verão de noventa e um, Benício pensou consigo mesmo quando viu o carro de dona Lígia virar a esquina em direção à Estrada do Mar por que não dera um abraço apertado e um beijo estalado na bochecha de Carol na despedida.
"Talvez eu faça isso quando nos encontrarmos no ano que vem.", pensou.
Leu mais ao longo daquele ano.
Seu primeiro livro que não era parte da Série Vaga-Lume. A Marca de Uma Lágrima, achou chato pra danar, lembrou-se de Roxanne, com o Steve Martin, e lembrou-se de Cyrano de Bergerac, cujo autor não sabia ser Edmond Rostand, ainda assim, leu o livro com certo prazer, pensando que seria bom conversar com Carol sobre literatura, de que ela tanto gostava, ao invés de encher seus ouvidos com X-Men, Homem-Aranha, Star Wars e os livros do Marcos Rey.
Porém, no verão seguinte, em noventa e dois, para desapontamento de Benício, Lígia chegou à praia sem Carol.
Carol viajara com o pai, ficou sabendo, mais tarde.
Lígia estava com um namorado novo. Novo, mesmo. Um sujeito bem mais jovem que ela, que tinha cabelo longo, surfava e jogava futebol no campo da colônia de férias próxima. O pai de Benício achou o sujeito muito bacana. A mãe de Benício taxou dona Lígia, entre outras coisas, de desnaturada e sem-vergonha. Benício não formou opinião. Leu gibis, livros, andou a cavalo e em bicicletas para duas pessoas.
Tudo sozinho.
Naquela época já haviam mais crianças da idade de Benício na rua, mas ele não se interessou em brincar com nenhuma delas. Já estava estudando havia algum tempo, e mesmo na escola, onde passava quase um ano inteiro com as mesmas pessoas, era um jovem de poucos amigos, imagine, então, na praia, com apenas um mês para se relacionar. Ás vezes socializava com suas primas e primos, era divertido, mas era fugaz. Aquele verão pareceu mais curto pra ele.
No ano seguinte, quem não foi à praia foi Benício. Quer dizer, foi, mas foi a outro balneário, acompanhando seus avós maternos. A mesma coisa aconteceu em noventa e quatro e noventa e cinco.
Em noventa e seis, Benício veraneou novamente na praia de sempre. Em janeiro.
Foram anos diferentes e divertidos aqueles últimos para Benício. Especialmente após noventa e quatro.
Ele cresceu.
Não era, ainda, um adulto, mas guardava pouco do moleque ensimesmado e tímido de anos antes. Fizera muitos amigos em Porto Alegre, passara a praticar esportes, namorar. Ainda lia gibis e via filmes em profusão, mas seu leque de interesses abriu-se um pouco. No verão de noventa e sete, foi com a namorada para a praia. Estava feliz com ela. Uma moça mais velha, muito bonita e divertida. Após abrir a casa, colocar as cadeiras de vime na varanda, e remover os tapumes da janela, Benício olhou com uma ponta de expectativa pra casa vizinha ao perceber o movimento.
Mas não era dona Lígia, nem tampouco Carol.
Benício veraneou com a namorada em noventa e sete, e no ano seguinte, veraneou sozinho, já não estava mais com a menina, seus pais não tinham mais paciência pra ir à praia, pois haviam desenvolvido um gosto todo especial pela serra, seus tios e primos agora cruzavam o rio Mampituba e faziam suas férias em Santa Catarina.
Benício passou outros dois ou três anos sem voltar à velha casa, até que, em dois mil e três, resolveu retornar.
Chegou ao balneário, abriu a casa, colocou as cadeiras de vime na varanda, e os colchões no sol para arejar. Foi sob o colchão do que fora sua cama na infância, no quarto repleto de beliches destinado às crianças, que encontrou, ao acaso, um exemplar envelhecido de um livro.
Pedrinho Esqueleto, que ganhara no seu aniversário de seis anos.
Segurou aquele livro entre as mãos, e o abriu, sentindo o cheiro de coisa guardada. Saiu até a varanda, onde o colocaria para arejar, também, e foi quando viu um carro estacionar na casa ao lado, e dele sair uma moça loira muito bonita, um sujeito bem apessoado, também loiro, e uma criança, um molequinho de dois ou três anos de idade.
O piá saiu correndo em direção à casa, tropeçou no degrau de pedra coberto com uma lisa lajota cor de laranja e se estabacou no chão. Chorou. A moça loira correu para consolá-lo. Ao se levantar com o pequeno no colo, seu olhar e o de Benício cruzaram, e ela sorriu.
Benício sorriu de volta, e acenou discretamente, dizendo um "oi" sem som do outro lado do muro.
Era Carol.
Benício olhou em silêncio e sorrindo enquanto a família entrava na casa. Não pôde evitar pensar em como teriam sido as coisas se, de volta em noventa e um, tivesse dado aquele beijo estalado em Carol. O pai do menino voltou ao carro, apanhou várias malas, e também acenou para Benício, sorridente. Benício correspondeu.
"Há chances", pensou enquanto voltava pra dentro da casa, "Que não podemos desperdiçar.".

Um comentário:

  1. Não sei se é porque estou mais sentimental do que o habitual hoje, mas fiquei arrasada ao ler essa história. Triste demais isso de oportunidades perdidas, de amores e carinhos não verbalizados e de chances não consumidas...Muito triste, eu acho que agora você devia me contar uma piada pra compensar :)

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