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quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Crônicas do Observador


Sujeito nos seus cinquenta e tantos anos, cabelo quase que inteiramente branco, exceto por alguns fios cinzentos que ainda teimavam em ter cor nas laterais e na parte de trás da cabeça.
Uniforme de servente, com os tênis pretos, calça de prega azul-marinho, e a camisa azul-clara sob o avental preto onde se lia o nome do shopping center bordado em letras amarelas.
O sujeito anda arrastando os pés, são quase dez da noite, deve estar cansado. Será que arrasta os pés quando entra quatro da tarde? Será que entra quatro da tarde, ou os turnos de trabalho do pessoal da limpeza são diferentes dos turnos dos funcionários das lojas, quase todos estagiários que são pouco mais do que adolescentes?
Enfim, ele anda arrastando os pés.
É um sujeito sisudo, taciturno, óculos de aro de metal, tamanho médio. Lentes que não chegam a ser particularmente fortes. Nota-se pois, quando ele fica em determinado ângulo, a lente não distorce a paisagem atrás dele.
É um sujeito de estatura mediana, magro. Invisível a todos os frequentadores do shopping, exceto, talvez, ao observador.
Qual será a história daquele homem? Que tipo de vida o levou a chegar até os cinquenta, ou quase cinquenta, ou mais de cinquenta a tirar lixo de mesas e empurrar tonéis plásticos cheios de sujeira por dentro de um shopping center?
Exercício literário básico:
Formular um passado para o desconhecido.
O observador imagina que o Servente é um ex-presidiário. Cometeu em série algum crime de gravidade regular, furto de veículo, assalto... Não parece o tipo de sujeito que cometeria delitos graves. Não parece um assassino, um estuprador, nem nada do gênero. Talvez, com muito boa vontade, o observador lhe imagine cometendo um assalto à mão armada... É. Um assalto à mão armada, mas sem vítimas fatais.
Foi preso, não era muito bom naquilo, jamais seria um ladrão afamado como o Papagaio. Foi capturado, julgado, sentenciado. Não foi particularmente abusado na prisão. As prisões brasileiras são horríveis, mas não são penitenciárias norte-americanas de filme, onde todo o presidiário é uma "jail house bitch" em potencial. Não.
O Servente cumpriu sua pena... Digamos oito anos... Em regime fechado. Depois mais dois em regime semi-aberto e aberto. Saiu da prisão, procurou algo para fazer, em que trabalhar para se manter, e o único emprego para o qual possuía aptidão e suas referências e passado não eram impeditivos, era o de servente.
Não começou no shopping, claro. Deve ter começado em algum lugar como uma fábrica de celulose, ou algo que o valha. Trabalhando no turno da noite. Sozinho. Mostrou-se confiável, focado, silente, e progrediu, saindo dos turnos da madrugada e trabalhando entre pessoas.
Ás vezes, o Servente lembra de seu passado criminoso, e pensa em como hoje em dia, mais velho, mais sábio, poderia realizar um grande golpe e se aposentar. Quem sabe morar na Argentina, que sempre sonhou conhecer? Mas então ele lembra da prisão, da sua idade, e de tudo o que pode dar errado, e se concentra em limpar logo aquelas mesas cobertas de restos de fast food.
"Pronto", pensa o observador. "Funciona", diz ele, referindo-se à pequena história que elaborou para o Servente.
Olha em volta, percebe três adolescentes daquela estirpe mais fútil, conversando em uma mesa próxima. As três falam entre si sem olharem umas pras outras. Duas têm os olhos vidrados em seus celulares, a terceira mexe obstinadamente na tela de um moderno tablet envolto por uma capa cor de rosa. Elas terminam de comer seus lanches deixando grandes sobras jogadas sobre as bandejas na mesa e se levantam rindo e falando alto. O Servente se aproxima da mesa, e, encurvado, começa a juntar o lixo. Tateia sob os papéis amassados e sujos ao redor das bandejas plásticas, e tira dali um telefone celular. É um modelo de última geração. Tela grande, sem teclas. O Servente olha para o telefone, então olha para um lado, e depois para o outro. O observador finge não estar olhando, mas sorri satisfeito antevendo o acerto crítico sobre as disposições do Servente.
O Servente olha para o celular recém encontrado, limpa a tela do aparelho nas próprias calças, e então se endireita, e corre até as três meninas, entregando-lhes o celular. Uma delas, a do tablet, sorri dizendo "Ai, brigaduân", e guarda o aparelho na bolsa, seguindo então, seu caminho.
O Servente volta com seus passos arrastados até a mesa, e põe-se a juntar a sujeira.
O observador sorri. Pensa que ás vezes é bom estar enganado.
E começa a formular um novo passado, quiçá um mais digno, para o personagem da vez.

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