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terça-feira, 8 de abril de 2014

Dúvida


O Ari tinha todos os defeitos do mundo, mas de idiota tinha só a cara e o jeitão de caminhar.
Quando sua namorada, a Sônia, um notório chicletão, daquelas pessoas bem grudentas, que têm que estar sempre perto do amado, começou a, de repente, acrescentar distância entre os dois de qualquer forma que fosse possível, o Ari percebeu que havia algo de podre no seu reino da Dinamarca particular.
O Ari não era um sujeito particularmente ciumento. Não porque fosse muito bonito, muito superior ou muito seguro de si. Ele não era ciumento unicamente porque achava que o ciúme era um desperdício de energia.
Era virtualmente impossível tu passar vinte e quatro horas do dia monitorando os passos de uma pessoa, e mesmo que fosse possível, vá lá, com celulares, dispositivos de rastreamento, e o escambau, que tipo de relacionamento saudável deria erigido sobre o alicerce da desconfiança?
Era, pro Ari, fato comprovado que, se uma pessoa quisesse trair a outra, ela trairia quando tivesse a oportunidade, e não havia nada que a outra pudesse fazer.
Posto isso, o Ari, que não era particularmente adepto da crença em amores eternos e almas gêmeas e amores da vida, só esperava que, no momento em que a vontade do um de estar com outro alguém fosse grande demais pra conter, a pessoa tivesse a educação de avisar.
Era, sem falácias, o que ele faria numa situação dessas.
Mas o Ai, além de não ser idiota e ter esse senso de respeito comum fora da realidade, ainda era realista o suficiente pra saber que, pra imensa maioria das pessoas, esse curso de ação era impensável.
E aí o Ari se via em uma sinuca:
Se não estava tudo bem, e ele sabia que não estava tudo bem, o que fazer?
Forçar uma confrontação com a Sônia, alguém que, mesmo desapontando-o, ainda lhe era uma pessoa cara?
E se ela não o estivesse traindo?
E se fosse apenas um momento ruim pra ela e ela precisasse de mais espaço, ficar sozinha, pensar na vida, quem sabe até remoer a seu modo alguma frustração?
Com que direito ele a acusaria do que quer que fosse? Que bem faria, sendo, ou não, verdade?
Mas ao mesmo tempo, se ficasse em silêncio, o Ari estaria sujeitando-se à uma condição tão deplorável que não sabia como se olharia no espelho pela manhã, o que, se ao menos o livraria de ter que ver a própria carranca, também tornaria difícil pentear o cabelo.
Foi assim, sob o prisma dessa dúvida, que naquela tarde de sábado o Ari resolveu falar com a Sônia, e colocar tudo em pratos limpos.
Tocou no interfone da casa dela. Ela atendeu gritando "Quem?", que era uma coisa que dava nos nervos do Ari. Ele sempre se perguntava o que custava dizer o "é", entre o "quem" e o ponto de interrogação.
Gritar "Quem?" no interfone era uma das manias da Sônia que incomodava o Ari.
Ao entrar ela o recebeu com as mãos erguidas como quem está sendo assaltada, e deu-lhe um beijinho estalado nos lábios voltando pra cozinha, de onde saíra para recepcioná-lo.
Ela estava misturando, com as mãos, leite, farinha, e um composto preparado para fazer pão de queijo. Disse:
-Tô preparando pão de queijo. Assim que eu terminar de misturar, faço as bolinhas, coloco numa forma untada com manteiga e, em meia hora, vamos estar nos entupindo. Tomara que fiquem bons...
O Ari não respondeu. Continuou escorado com o ombro contra o marco da porta, expressão indefinida. Pensava em como entrar na seara que pretendia trilhar ali.
Resolveu ser franco e direto:
-Sô... Posso te perguntar uma coisa?
Ela virou o rosto, olhando pra ele com a barriga colada ao balcão da cozinha:
-Claro...
Ari sentiu o estômago se encolher. Respirou fundo. Odiava aquele tipo de confrontação:
-Olha... Eu não quero te ofender... Eu não quero que tu tenha raiva de mim... Mas eu preciso te perguntar uma coisa. E preciso que tu me responda com toda a sinceridade do mundo...
Ela tirou as mãos da bandeja, estavam sujas de leite e da massa e de farinha. Ela ia limpar num pano de prato, sem descolar os olhos dele, mas ele a deteve:
-Não... Lava as mãos... Não emporcalha teu pano de prato...
Ela disse "Que se foda o pano de prato.", e limpou as mãos nele.
Eram outras duas das manias da Sônia que irritavam o Ari:
Ela era bagunceira e desbocada.
-O que tu quer saber? - Ela perguntou, agressiva.
A agressividade dela, fez com que Ari tivesse certeza de que sim, ela o traíra. Era a agressividade de alguém prestes a ser confrontado com sua própria culpa. Aquilo deixou o Ari com raiva:
-Tu tá insatisfeita com a nossa relação? Tem alguma coisa entre nós que não te serve? Que te cansa? Que te exaspera de algum modo? Tem alguma coisa no convívio comigo que tu não consegue suportar?
Ela ficou olhando pra ele com uma expressão entre incrédula e confusa.
-Do que é que tu tá falando? - Perguntou.
Ele respirou fundo de novo. Se endireitou junto à porta, ergueu os ombros:
-Tu tem... Procurado algo de que tu sente falta fora da nossa relação?
Ele franziu o cenho, levando uma fração de segundo pra entender a pergunta da forma como ele a colocara:
-Tu tá me perguntando se eu tô te traindo?
Ficaram se olhando por um bom tempo, ambos em silêncio, até o Ari erguer as sobrancelhas generosas e perguntar:
-...Tá?
Ela respirou fundo, apoiando a bunda no balcão da cozinha e encarando a parede coberta com o balcão por alguns momentos.
Voltou-se pra ele:
-E se eu disser que não? Que não tô te traindo? Como vai ser?
O Ari não entendeu. Ficou olhando pra Sônia sem saber o que dizer. Deu de ombros.
Ela falou:
-Eu vou ter que aceitar um sorriso de alívio teu, uma brincadeirinha, um beijo e um abraço, e vamos seguir a vida comigo ignorando o fato de que tu, não só não confia em mim, mas também acha que eu sou uma puta fodedeira que precisa de mais caralho ou que quer dar diferente de como dá pro namorado, e aí, sai procurando quem queira?
O Ari odiava quando a Sônia desembestava a falar palavrão. Toda a sua família era de gente que falava palavrão, e ele tinha pânico daquilo.
-Eu... Eu não sei. - Ele respondeu, francamente. Não sabia como seria.
Se tivesse pensado antes, provavelmente teria formulado uma teoria, mas não pensara em como as coisas seguiriam após ele sanar a dúvida, apenas precisava saná-la.
Sônia continuou:
-E se eu disser que sim? Que eu tô dando pra outro? Que ando arriando a calcinha e abrindo as pernas pra outro cara. Ou outros. O que seria pior? Se fossem vários ou se fosse um só? E se eu dissesse que lamento muito, mas sim, ando trepando com mais gente? O que aconteceria? Tu iria me agredir? Gritar comigo? Confessar que também fodeu com alguma puta por aí quando teve chance?
O Tom agressivo da Sônia fez o Ari entortar o rosto numa careta. Ela percebeu:
-Tu não tá gostando do meu tom? Tu acha que falar merda pra alguém é aceitável contanto que tu seja polido e te desculpe de antemão, mas é horrível se tu for humano e te emputecer e falar palavrão?
-Eu não disse isso. - Defendeu-se Ari.
-Não importa... - Disse a Sônia, deixando os braços caírem e deixando o corpo correr pelo balcão da cozinha até sentar no piso frio.
-Tu não me respondeu... O que é que muda se eu tiver te traído? O que é que tu vai fazer? Dizer que me odeia? - Lágrimas lhe escorriam abundantemente rosto abaixo.
O Ari se agachou diante dela, estava sério. Limpou-lhe o rosto com o lado de fora do dedo mínimo:
-Eu te amo por quase toda a minha vida adulta. Isso não há o que mude. - Disse.
Ela o encarou, os olhos úmidos, a maquiagem em volta dos olhos escorrida.
Ari suspirou:
-O que mudaria, é que eu ia estar fulo contigo... E não estaria mais por perto.
Sônia tentou pegar as mãos dele, mas ele as afastou.
Olhou pra ela com uma interrogação nos olhos.


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