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terça-feira, 23 de julho de 2019

Onde Quer Que Seja


Ela não despertou no momento em que ele a levantara do sofá, e nem percebeu o silêncio súbito, testemunho da TV desligada, um fato que, ela saberia, era inédito quando ele estava em casa.
Ele era dessas pessoas solitárias que gostavam de algum ruído na casa. Passava o dia inteiro ouvindo noticiários como pano de fundo, de todas as emissoras, um atrás do outro. Quando não estava realmente assistindo TV, ele deixava a TV ligada em algum canal de notícias e fazia suas coisas. Lia um livro. Estudava. Arrumava a casa ou simplesmente dormia... Gostava de dormir com a TV ligada, no noticiário, madrugada adentro.
Isso mudara quando ela chegou.
Descobrira que todos os gostos prévios eram fugazes, efêmeros, dispensáveis.
Ele gostava de dormir com ela. Gostava que ela se sentisse confortável. Escuridão, silêncio, o que ela precisasse.
Ele precisava dela.
Naquela noite estavam assistindo TV no sofá, juntos. Ela pegara no sono assistindo ao documentário sobre a Primeira Guerra Mundial que ele escolhera para verem. Ele não se ofendia.
Entendia que não era uma unanimidade, mas tampouco se sentia culpado. Sabia que dali alguns dias provavelmente assistiria um drama romântico polonês e provavelmente seria ele adormecendo com a cabeça sobre as coxas mais lindas que já beijara.
Ela adormecera em seu colo. Não apenas a cabeça em seu colo. Sentada em seu colo, com a cabeça em seu peito e os cabelos, cheirando divinamente, sob suas narinas.
Ele tinha o braço direito serpentando de trás das costas dela para ao redor da cintura e a mão pousada em seu quadril, a amparando para que a posição dela se mantivesse estável, o braço esquerdo estava jogado pra frente, por cima dada perna direita dela, a mão pousada atrás da coxa. Uma das componentes daquele par que era o mais lindo que ele já beijara. Tê-la ali, aninhada em si o enternecia de uma forma quase comovente.
Quase?
Não.
Totalmente comovente.
O fato de ela conseguir se acomodar em seu colo o suficiente para adormecer era a manifestação física do conforto subjetivo que ele experimentava com ela e que era tão inédito quanto inebriante. Com ela, ele descobriu que jamais estivera totalmente pronto para verdadeira intimidade até então. Ele sempre fora um solitário. Um eremita natural, inconscientemente afastando as pessoas, inclusive pessoas de quem gostava por mero instinto.
Negando sua presença e hospitalidade e todos por reflexo.
À certa altura aceitava que era assim e resignara-se entendendo que seus muros e portas eram demasiado pesados e que a vida seria daquele jeito. Mas ela chegou e, quem diria, pequenininha daquele jeito, derrubou todos os muros como se fosse a Formiga Atômica e arrombou todas as portas como se fosse uma versão feminina, menor e mais bonita de Ethan Hunt, adonando-se do espaço que ele imaginava ser somente seu com uma doçura que não deixava espaço para hesitação.
Ele não precisou se habituar à presença dela. Não precisou adaptar-se a não ter mais seu espaço.
A presença dela era tudo o que ele queria. O espaço dele era o que ela estivesse ocupando.
Naquele momento seus braços, após ele ter passado o braço esquerdo sob as pernas dela e tê-la erguido no colo. Agora ele a carregava até o quarto com muito cuidado para não a sacolejar em excesso no curto trajeto entre o sofá e a cama.
A pousou sobre o colchão com a delicadeza que geralmente tinha ao tocá-la, como se ela fosse de um cristal muito delicado, e a cobriu. Quando saía do quarto ela, com os olhos semi-cerrados perguntou em um murmúrio:
-Aonde tu vai?
Ele sorriu e respondeu que ia escovar os dentes, mas pensou:
"Onde tu estiver, morena linda. Eu vou onde tu estiver."

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