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domingo, 7 de julho de 2019

Resenha Filme: A Mula


Clint Eastwood é o caubói fundamental de toda uma geração. Provavelmente de todas as gerações que vieram após John Wayne, na verdade...
Nenhum ator contemporâneo chegou sequer perto de personificar com tamanha competência um determinado ideal de masculinidade durona e silenciosa da maneira que Eastwood conseguia, não apenas em faroestes, mas em filmes de diversos gêneros.
Eu já devo ter falado do tamanho da surpresa que foi esse pistoleiro fundamental do cinema se transformar em um cineasta de obra tão ampla, competente e diversificada quanto Eastwood é hoje, aos oitenta e nove anos.
Clint não é um samba de uma nota só.
Ele dirigiu faroestes, sim. O brilhante e algo revisionista Os Imperdoáveis, mas dirigiu filmes de guerra como o sublime Cartas de Iwo Jima, dirigiu ficções científicas como Caubóis do Espaço, musicais como Jersey Boys, dramas político esportivos como Invictus e romances como As Pontes de Madison sempre esbanjando elegância.
Desde Curvas da Vida restrito a participações atrás das câmeras, Eastwood voltou à atuação neste A Mula, primeira vez que acumula as funções de ator e diretor desde o excelente Gran Torino.
Na trama conhecemos Earl Stone (Eastwood), em 2005 Earl é um celebrado floricultor, que tem seu trabalho reconhecido entre seus pares e admiradores que lhe rendem homenagens e premiações.
Colocando seu trabalho como prioridade, Earl prefere estar na estrada diuturnamente levando sua produção pelos quatro cantos dos Estados Unidos, participar de convenções e celebrar com seus amigos e colegas em um bar do que comparecer ao segundo casamento da filha Iris (Alison Eastwood, filha de Clint), e pra ele está tudo bem assim, pois ele é um provedor nato.
Corta para doze anos no futuro.
Os negócios já não são mais a mesma coisa. Incapaz de competir com a internet, Earl vê sua fazendinha ter a hipoteca executada pelo banco.
Sua ex-esposa Mary (Dianne Wiest) e sua filha se recusam a dividir qualquer espaço com ele. E sua neta Ginny (Taissa Farmiga), a única pessoa que parece o querer por perto está prestes a se casar, e Earl não tem nenhum dinheiro para ajudar com a festa.
Inconformado com a curva descendente de sua vida na velhice, Earl é abordado com um conhecido durante o noivado da neta. O sujeito lhe diz que Earl pode ganhar um bom dinheiro apenas para transportar algumas cargas de um lugar ao outro em sua velha picape.
Se em um primeiro momento o velho floricultor está reticente com a proposta, ele eventualmente se vê sem muito mais opções.
Com quase noventa anos e nenhum dinheiro, Earl resolve ligar para o número que lhe foi oferecido, e fazer uma entrega, apenas para ajudar no casamento de Ginny.
Um octogenário sem nenhuma multa em sua vida, Earl não tem problemas para levar a bolsa de viagem até um motel qualquer, e ser generosamente recompensado.
Se a ideia de Earl é que aquele seja um evento único, não tarda para ele perceber que pode fazer mais uma entrega para comprar uma nova picape...
E outra para pagar a hipoteca de sua fazenda...
E outra para ajudar na reforma do centro dos veteranos...
E eventualmente Earl é a mais eficiente mula a serviço do cartel chefiado por Laton (Andy Garcia), fazendo transportes periódicos na casa dos milhões de dólares, sempre à sua maneira. Dirigindo por vias secundárias, fazendo paradas para lanchar em restaurantes que sirvam suas guloseimas favoritas, dormindo em motéis onde se diverte com prostitutas, e parando para ajudar desconhecidos passando por problemas na beira da estrada e quase levando à loucura os capangas do cartel encarregados de vigiá-lo, como Julio (Ignacio Serricchio).
Mas quando brigas pelo poder mexem nas estruturas do cartel, e a família de Earl começa a enfrentar problemas ao mesmo tempo em que o cerco do DEA se fecha ao redor das entregas, ele se vê entre a cruz e a espada sem saber se terá tempo para corrigir ao menos um pouco dos erros que cometeu nos últimos anos.
Livremente baseado em uma história real, A Mula é um filme bacana, mas está muito longe dos melhores trabalhos de Eastwood.
Muito do que impede o longa de alcançar seu verdadeiro potencial é o roteiro de Nick Schenk (baseado no artigo da The New York Times Magazine), que parece mais preocupado em brincar com as manias de velho do protagonista do que em explorar eventuais dilemas morais de Earl com seu novo trabalho.
Dedicar alguns minutos ao momento em que Earl descobre (ou confirma) a natureza do trabalho que está fazendo teria sido, talvez, mais interessante do que os constantes discursos a respeito da importância da família que soam inócuos quando sabemos que Earl passou as últimas décadas os negligenciando, ou as piadinhas que mostram Earl como casualmente racista mas com um bom coração. Esse tipo de decisão desperdiça o talento de Eastwood, um ator que consegue demonstrar muito com gestos econômicos, mas que precisa de texto com o qual trabalhar.
Eastwood não é o único talento desperdiçado. Atores como Andy Garcia, Taissa Farmiga, Michael Peña e Laurence Fishburne fazem figuração de luxo, e Bradley Cooper no papel do agente Colin Bates faz muito pouco além de "coisas de tira" num papel que poderia ter sido feito por qualquer ator de TV sem grandes prejuízos.
A Mula é mais que um filme assistível, divertido até, e em seus momento finais consegue capitalizar sobre a tensão da audiência com relação à perseguição do DEA sobre Earl, mas não dá pra não pensar que faltou algum polimento ao roteiro, mais estofo aos personagens, e mais clareza sobre a jornada de cada um (A linha narrativa do personagem de Serricchio, por exemplo, parece ser abruptamente abandonada à certa altura.).
Na melhor das hipóteses A Mula é um bom programa para um sábado gélido em Porto Alegre, na pior, é uma oportunidade para ver que Eastwood ainda domina seus ofícios, e é capaz de explorar a própria fragilidade no presente com a mesma competência que explorou sua virilidade no passado.

"As únicas pessoas que querem viver até os cem anos são as que têm noventa e nove."

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