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quarta-feira, 26 de maio de 2010

Frankenstein


Ele se olhava no espelho e sabia exatamente o que estava vendo. Não quer dizer que gostava do que via. Pele demais, na própria opinião. Se fosse vaidoso ou burro, ou tivesse dinheiro sobrando, talvez pudesse cogitar fazer uma plástica. Remover o excesso de pele. Mas não era vaidoso, nem tinha dinheiro sobrando. Olhava o espelho e contabilizava as imperfeições. As sombrancelhas demasiado espessas, o nariz bobo, os olhos miúdos, os dentes em desalinho. Ele olhava aquele sujeito no espelho, e sabia exatamente quem ele era.
Era um bom sujeito. Pelo menos assim o considerava. Não era um sujeito fácil, podia ser muito teimoso, ás vezes, era uma pessoa de difícil convívio, não gostava muito de falar sobre certos assuntos, e sobre outros falava em excesso. Nem sempre estava disponível para os amigos. Talvez, seu maior defeito fosse esse. Ele gostava de estar só, por isso faltava á seus amigos quando eles o queriam por perto. Compensava isso tentando estar presente quando seus amigos precisavam, o que nem sempre conseguia, mas ao menos tentava, e achava que era justo.
Era avesso á conhecer pessoas novas, era tímido, cauteloso, sim, mas não covarde. Não tomava decisões impensadas e não arrastava ninguém para sua melancolia quando ela se apresentava. Era irônico, sardônico, sarcástico, debochado, mas não mau. Pelo menos não o tempo todo.
Aquele sujeito, no espelho, sabia quem era. Era fruto de seu ambiente e das mazelas de sua vida, claro, mas era, acima de tudo, um produto de escolhas próprias. Aquele sujeito era quem escolhera ser. Levara mais de vinte anos para ser aquela pessoa, e, com mil demônios, ele até que se orgulhava disso.
Não que fosse motivo de orgulho, todas as pessoas são assim, elas são fruto de seu ambiente e de sua tragédia pessoal, seja ela abissal ou microscópica (Embora a tragédia pessoal de cada um tenha a dimensão que cada um está disposto á outorgá-la.), mas acima de tudo, somos quem queremos ser. Somos frutos das escolhas que fazemos á cada encruzilhada da vida.
Aquele sujeito no espelho sabia disso, e abraçava a responsabilidade de ser o doutor Frankenstein de seu próprio monstro de retalhos. Aquele camarada de cabelo arredio e sorriso contido refletido ali estava ciente de ser quem era e de ser responsável por ser quem era. Ele ria com flagrante ironia daqueles que não sabiam quem eram, que ainda não haviam desenvolvido a própria identidade fosse por não se responsabilizar pelas próprias escolhas, fosse por puro descaso.
Aquele cara no espelho achava que todos tinham a obrigação para consigo mesmo de saber quem eram. E de se responsabilizar por quem eram e por como afetavam aqueles ao seu redor.
E ele, ao olhar o camarada refletido no espelho, não pôde se furtar o prazer de dizer:
"Está vivo!"

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