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sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Boca Fechada


O Alício, ficou frente a frente com o Gilmar, do estoque, e várias pessoas em volta começaram a gritar palavras de ordem do tipo "quebra ele!", "pega!", "Porrada!" e outras da mesma estirpe.
O Alício, que trabalhava no setor fiscal se desentendeu com o Gilmar num jogo de futebol no campeonato da empresa durante o final de semana, dividiram uma bola, foi uma chegada dura dos dois, que na hora de jogar futebol todo o homem se transforma naquele proverbial atleta que é expulso aos oito minutos do segundo tempo após quase arrancar a perna do adversário com um voadora reversa demolidora, e, na entrevista diz que é um pai de família, que nunca foi um jogador violento, e que dentro do campo toda bola é um prato de comida e bibibi... Enfim, o Alício e o Gilmar, no campeonato da firma, numa dessas quadras de grama sintética lá perto do aeroporto, entraram na tal da dividida, e o Gilmar, que era um sujeito grande, bem grande, sólido, forte, com aquela testa projetada dos homens de Neandertal e cabelo de cantor de heavy metal dos anos noventa, levou a pior. Ficou no chão uns dez minutos, gemendo, teve que ser amparado e levado pra fora do campo pra se recuperar, logo ele, que era o pilar defensivo do time dos estoquistas, e acabou que, naquele tempo em que o Gilmar estava se recuperando fora de campo, o Alício marcou o gol da vitória do Fiscal sobre o Estoque, garantindo vaga na final, que acabou perdida pros office-boys, mas isso não vem ao caso.
A questão é que, depois do jogo Fiscal 2 x 1 Estoque, os colegas do Alício o saudaram muito, não só pelo gol marcado, mas também por ter nocauteado o Gilmar. Não que tivesse sido uma dividida do tipo Davi x Golias, o Alício, pra pequeno também não servia, tinha lá seu metro e oitenta e cinco, pesava seus oitenta quilos, então, não era nenhum raquítico, mas o Gilmar... Pô, o Gilmar era uma parede. Enfim, o Alício foi festejado, os outros funcionários do Fiscal lhe davam tapinhas nas costas e perguntavam se ele tinha comido o espinafre dele hoje, se ele tinha Kryptonita no bolso, e, como ser humano que é, o Alício acabou se empolgando com os festejos à sua pessoa, e soltou até uma frase de efeito sobre o lance, disse "Um braço vigoroso não é mais aguerrido contra a lança do que um braço frágil; são o caráter e a coragem que fazem o guerreiro." ou alguma outra referência, o Alício adorava referências e citações. A questão é que a tal da frase alcançou os ouvidos do Gilmar, que ficou ainda mais descontente do que já estava com as chacotas de seus colegas que o rotularam como "O cara que levou uma 'feupa' do Alício do Fiscal".
Acabou que o Gilmar, com o orgulho ferido, resolveu que a melhor forma de recuperar sua honra perdida era dar uma sonora surra no Alício, de preferência em algum lugar onde todos os funcionários pudessem ver. E lá estavam, na segunda feira, no estacionamento da empresa, o Gilmar e o Alício. O Gilmar com o macacão azul do estoque, o Alício com uma camiseta do Demolidor, jeans e óculos, sendo instigados pela pequena turba ao redor.
O Gilmar andou até o Alício e estapeou a lata de Fanta que ele tinha na mão, derrubando-a.
-Tu não é muito macho jogando bola, trouxa? Quero ver a macheza, agora.
O Alício, entre o incrédulo e o assustado, via aquele sujeito gigante parado em frente dele com cara de quem iria moê-lo inteiro com as mãos, não sabia o que fazer. Não brigava desde os dezenove anos, quando trocara empurrões com um sujeito dentro de uma danceteria. O que faria? Claro, se Gilmar batesse nele e ele ficasse acordado, teria que revidar, mas como? Não era nenhum mestre de artes marcias, nem assistia MMA pra ter uma noção de golpes de imobilização ou algo do tipo, teria que partir para os sopapos com Gilmar, mas... Como? Além de Gilmar ser muito maior e provavelmente mais forte, Alício não se imaginava desferindo um soco no rosto de ninguém, nem do brutamontes que se agigantava diante dele. Pro Alício, até tapa na cara era um abuso, deixava ele aflito até quando via em novela, imagina um soco, de mão fechada, na cara de alguém? Credo. Tentaria argumentar, afinal, eram dois adultos:
-Olha, Gilson-
-Gilson o cacete, bichona, é Gilmar!
É, não foi a melhor das tentativas.
-Olha, Gilmar, o que aconteceu na quadra foi um lance normal de jogo, cara, eu me desculpei na hora e tudo, é só um jogo.
-O lance do jogo é do jogo, sim. O que não é é tu ficar metendo banca e posando de bacana depois, babaca.
-Tá, olha Gils, Gilmar, Gilmar, eu, talvez tenha me excedido um pouco na comemoração, mas é por que partida foi difícil, vocês tavam jogando um bolão, e, pôxa, tu é uma fortaleza, tchê, é um sujeito parrudo, fortão, não vou mentir, eu, que sou um sujeito mediano, me orgulhei, sim, de ter entrado naquela dividida contigo, eu sei, que tu provavelmente não estava entrando como eu estava, que se tu tivesse entrado á morrer naquela bola eu provavelmente teria levado a pior, mas a questão é que, pô, ganhar a dividida de um sujeito com a tua compleição física é motivo de orgulho pra mim. De qualquer forma, ó, me desculpa se eu te ofendi, não era minha intenção, beleza? Eu sei que tu é uma pessoa sensata, e que eu dei motivo pra te deixar fulo, e peço desculpas por isso também. Tu pode me desculpar?
o Alício encerrou a frase estendendo a mão direita em direção ao Gilmar. Ninguém mais gritava palavras de ordem, nem nada, apenas olhavam em silêncio. O Gilmar olhou em volta, parecia estar assimilando, ainda, todo o discurso de Alício.
Olhou, indeciso para seu desafeto, suspirou, e estendeu a mão, cumprimentando-o.
Alívio geral de alguns, desapontamento de outros tantos. Gilmar ainda foi até a máquina de refrigerante e comprou outra Fanta pro Alício, que agradeceu muito. Quando saiu da empresa ainda deu um efusivo "Até amanhã, colega." pro brutamontes, e foi-se embora feliz da vida.
No outro dia, na contabilidade, só se falava do desdobre que Alício dera em Gilmar, que já sobrepujara Gilmar fisicamente jogando bola, agora fizera-o novamente, mas intelectualmente, vencera-o de maneira tão absoluta que até obrigara o cavalão a comprar-lhe um refrigerante. Quando lhe perguntaram como tinha sido aquilo, o Alício ainda pensou em dizer algo como "Força, sem inteligência, é como movimento sem direção", mas lembrou que, em boca fechada não entra mosca, e achou melhor ficar na sua, vai que o Gilson ouvisse.
Gilson, não, Gilmar, Gilmar...

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