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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O que Hannibal faria?


Horácio acordou naquela manhã se sentindo meio Hannibal Lecter. Não que quisesse saborear o fígado de um recenseador com vagem e um bom chianti, ou fazer swis-shiwsh-swhis pra uma agente do FBI, nada disso. Ele apenas se acordou naquela manhã ciente da maldade do mundo, e, por que não, da sua própria. Havia sido um final de semana particularmente horroroso, no qual não fizera nada do que queria ter feito, apenas fora confrontado com a pequenez e a mesquinharia da raça humana, aí incluídas as suas próprias medidas de pequenez e mesquinharia. Vira a desfaçatez com que o mundo trata a si mesmo, e foi dormir assustado. Tudo naqueles dias de suposto descanso serviu apenas para deixá-lo apreenssivo, inquieto, irritadiço. Política, futebol, a condição humana, a falência do mundo ocidental, e, claro, sua própria atitude com relação a vida, o universo e tudo mais. Saiu de casa disposto a fazer a sua parte. Já que era pra ser podre, com mil diabos, ele sabia ser podre. Até a raíza da alma.
Tomou se banho matutino, se vestiu com a primeira roupa que encontrou no armário, se penteou com desdém, e nem sequer fez a barba. Calçou os sapatos e saiu para trabalhar. "Cuidado, Mundo.", pensou.
Apertou o botão do elevador, viu a luzinha acender no painel, ouviu o ruído alto do motor e ficou esperando. Poucos segundos depois sua vizinha de meia idade, dona Tônia, que vivia sozinha com três cães, um poodle, um yorkshire e um chihuahua, saiu também. Os três bichos à tira-colo.
Assim que os cães puseram os olhos nele, começaram a latir desesperados. Oito e sete da manhã, e aquela cachorrada esganiçada cuspindo seus latidos estridentes no corredor do prédio como se estivessem na presença do anti-cristo, latindo alto, de formar hérnia. A velha sorriu levemente embaraçada, e disse, casual:
-Ai, não sei o que houve, eles são sempre tão bonitinhos, néah?
Aquela era a hora de despejar de volta pro universo o que recebera em doses cavalares no sábado e no domingo, era o momento de cuspir misantropia e asco, era o momento de abrir a boca e dizer:
-Não.
Ela não entenderia:
-Como assim, não... Não o quê?
-Não. Eles não são bonitinhos. Eles são estridentes, desagradáveis e fedidos, três características, aliás, que a senhora partilha com essa bicharada cretina. A quarta é que vocês todos devem ter o mesmo Q.I..
-Mas como o senhor se atreve-
-E digo mais. A pior parte, é que a culpa não é deles. É da senhora. Eles são animais irracionais e desagradáveis por não mais que sua natureza, a grande culpada é a senhora, que em teoria devia ser uma criatura racional e se utilizasse um mínimo de discernimento saberia que pode aplacar a falta de sentido da sua vida solitária e miserável com um mascote só, mas ainda assim, resolveu abrir um mini-zôo com os três cachorros mais detestáveis do universo, que nem sequer foram adotados, mas comprados de criadores.
-Francamente-
O elevador chegaria enquanto a dona Tônia falava. Ele abriria a porta e entraria:
-A senhora e esses animais asquerosos não entram no elevador comigo, passar bem.
E iria embora com a certeza de uma perversa satisfação, como a de Hannibal quando remove a máscara de pele humana que usou para escapar da prisão!
Mas ele achou, entre outras coisas, que não saberia ser tão mal-educado de forma gratuita, e que não conseguiria articular todos os insultos nos quais pensara, e, por fim, achou que nenhum ser-humano valia o esforço que aquele curso de ação lhe custaria. Então, só olhou pra velha com uma expressão muito séria e fechada sem dizer palavra, e ela, de tão sem graça, acabou voltando pra casa balbuciando que esquecera de pegar a carteira.
Enquanto ela fechava a porta do apartamento o elevador chegou, e ele entrou, sentindo uma pequena fagulha de satisfação. Menor, é verdade, como aquela do Hannibal quando informa o doutor Chilton que seu livro foi recusado pela editora novamente, menor, mas não menos maquiavelicamente saborosa.

Um comentário:

  1. Faz 21 anos que eu não dou uma surtada dessa. Que porre essa coisa de ser boazinha, quietinha e nhénhénhé. Horácio está certo, aposto que depois disso, a gastrite dele nunca mais voltou a atacar :)

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