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terça-feira, 26 de outubro de 2010

O apartamento na André da Rocha



A Julia estava meio deslumbrada naqueles dias. Tão deslumbrada que sua beleza natural ganhara um aspecto ainda melhor. Seus cabelos louros, seus lábios rosados e seus olhos castanhos carregavam um brilho que fazia os homens virarem a cabeça para vê-la melhor quando ela passava com seu corpo longilíneo pela rua.
Finalmente as coisas iam bem.
A faculdade, o trabalho, e, até que enfim, um relacionamento com o homem dos seus sonhos, um sujeito que era tudo o que ela queria da vida, que era o extremo oposto de todos os namorados que ela já tivera:
O Vanderlei.
Vanderlei era mais velho que a Julia. A mãe dela diria que ele era bem mais velho, mas ela não achava tanto assim, e ainda que fosse muito, Julia achava o máximo ele ser mais velho, achava o máximo ele ganhar mais dinheiro que ela, achava o máximo o seu apartamento de solteiro bem decorado e repleto de janelas na André da Rocha... Tudo relativo ao Vanderlei era o máximo.
Conhecera o Vanderlei em um bar, saindo da faculdade em uma sexta-feira.
Bar, não, pub.
O Vanderlei sempre a corrigia, ela achava genial quando ele a corrigia colocando a mão dele sobre a sua em uma atitude quase paternal.
O fato de o Vanderlei não ter vergonha de agir como se fosse mais velho também era genial pra Julia. Ela gostava demais do modo como ele tomava as rédeas da relação em tudo. Logo ela, que durante toda a vida afetiva se vira no papel de equilibrista, tendo que coordenar seus namoros com sujeitos da sua idade, agora ser paparicada, praticamente gerenciada por um homem seguro e mais velho tinha um sabor muito especial. Era uma delícia poder agir como uma menininha mimada de quando em quando, afinal de contas Julia não tivera muito daquele privilégio enquanto crescia, seu pai e sua mãe se separaram quando ela era muito pequena, e pouco tempo depois, ele morreu. Sua mãe, consumida por algum sentimento de culpa, nunca mais se relacionou com outro homem. Julia fora uma criança e adolescente sem presença paterna alguma, e, talvez, o namoro com Vanderlei, de certo modo, preenchesse uma lacuna em sua formação.
Julia estava feliz, muito feliz. Via-se em uma relação confortável e estável, e, embora soubesse que aquele namoro não se tornaria um casamento, podia aproveitar enquanto durasse o encanto.
Não era, claro, um namoro perfeito.
Vanderlei era um profissional liberal, nunca foi muito claro sobre o que fazia, aparentemente tinha a ver com representação comercial para uma grande empresa farmacêutica.
Por conta de seu trabalho, Vanderlei viajava, em média, três ou quatro dias por semana, de modo que, os dias que tinha para ver Julia eram na terça, ou quinta-feira, além dos finais de semana. Durante a semana, eles se encontravam na casa dele, o apartamento com decoração descolada na André da Rocha, nos finais de semana variavam, viajavam para a serra, ou litoral, ou apenas saíam, comiam em um lugar, passeavam em outro, dormiam em motéis, era sempre diferente e divertido.
Julia adorava.
Adorava a liberdade e a imprevisibilidade da relação, os finais de semana com Vanderlei nunca eram iguais.
Foi por sentir que Vanderlei se esforçava tanto para fazer coisas diferentes por ela que Julia sentiu-se na obrigação de fazer algo de diferente por ele, também.
Bolou um estratagema para fazer-lhe uma deliciosa surpresa. Na segunda-feira, dia em que Vanderlei estaria fora da cidade, Julia iria para o apartamento dele, prepararia um jantar espetacular, encheria o apartamento de velas aromáticas, colocaria uma música relaxante, e se vestiria de maneira levemente oferecida e disporia-se a fazer algumas alegorias de alcova diferenciadas naquela noite, tudo como prova de seu apreço pelo homem dos seus sonhos, que iria se fartar quando chegasse na terça.
O primeiro passo para colocar seu plano em prática foi dado ainda na noite de domingo, quando Julia sorrateiramente surrupiou a chave do apartamento de Vanderlei e, com a desculpa de que precisava de absorventes (homem algum jamais questiona esse tipo de necessidade, mulheres, podem usar sempre.), saiu e foi até o chaveiro da esquina onde fez uma cópia. Voltou para os braços de Vanderlei satisfeita com a própria engenhosidade e antevendo o que faria depois.
Cedíssimo, na manhã de segunda, despediu-se de Vanderlei perguntando se ele iria viajar, o que ele confirmou. Perguntou quando voltava, e ele disse que, provavelmente na terça à tardinha.
Julia quase riu de alegria, tudo correria conforme ela planejara.
Assim que ele virou as costas, Julia saiu às compras. Velas coloridas, um CD da Sade, espaguete, peito de frango queijo de búfalo e requeijão, ingredientes indispensáveis ao seu especialíssimo frango descabelado, um vinho chileno não muito pretensioso e um conjunto de lingerie e um baby-doll que faria sua avó ficar de cabelos em pé. Trabalhou, foi à aula, tudo muito normal, tudo como sempre fazia, mas, à noite, ao invés de voltar ao apartamento que dividia com duas primas, dirigiu-se ao lar de Vanderlei.
Chegou quase às dez da noite, não tinha problema, pensou, podia fazer alguns preparativos entre as dez e a meia-noite, e depois iria para a cama, no dia seguinte terminaria os preparativos.
Ao entrar no apartamento algo chamou-lhe a atenção:
Música.
Música vinha do quarto.
Mas como? Se Vanderlei estava viajando?
A menos que o safado houvesse mentido e estivesse... Com uma amante! Claro! Era dolorosamente óbvio.
Sujeitos adultos, altos, educados, seguros e asseados como Vanderlei precisavam ter algum defeito, e, como seu cartel de qualidades era demasiado amplo, seu defeito tinha que ser proporcional. O pulha era um calhorda que tinha amantes.
Como um decidido furacão de um metro e sessenta e sete, Julia invadiu o quarto com seus cabelos louros esvoaçando furiosamente e os olhos faiscando de ira.
Arrá! Uma mulher, mais ou menos da mesma idade que Julia estava sentada na cama em trajes sumários, se é que meias sete oitavos e sapatos de salto agulha podiam ser considerados "trajes" na acepção da palavra.
A moça fez cara de susto quando viu Julia e cobriu-se com o lençol. No banheiro contíguo podia ouvir-se o barulho do chuveiro. Fosse qual fosse o ato libidinoso que houvera ali, já fora plena e inapelavelmente consumado.
Julia olhou a mulher semi-nua na cama e fez sinal de silêncio para ela com o dedo indicador a frente dos lábios e uma expressão que não dava lá muita margem para réplicas de qualquer espécie. Adentrou o banheiro na ponta dos pés, parou em frente ao box, ainda em silêncio, e abriu a cortina como um Norman Bates deparando-se com o homem que...
Não era Vanderlei!
O sujeito sob o chuveiro, escondendo a própria nudez com as mãos e perguntava o que diabos estava havendo ali tinha mais ou menos a mesma idade de Vanderlei, quarenta e tantos, talvez cinquenta anos, tinha o mesmo tipo de físico, mas não era Vanderlei, nem se parecia com Vanderlei.
Julia ainda olhou em volta, para ver se estava no apartamento certo, e estava. Saiu do banheiro sem entender nada. Sentou-se na cama atordoada sem nem perceber a moça que se vestia apressadamente atrás de si.
Alguns minutos mais tarde, o sujeito saiu do banheiro. Vestia calças cáqui e camisa azul-clara. Estava descalço e cheirava bem. De cabelos molhados escorou-se na parede com uma expressão preocupada e fitou Julia.
Ela se pôs de pé, perguntou quem ele era.
Ele disse que era o dono do apartamento e que ela tinha que ir embora.
Ela quis saber onde estava Vanderlei, ele disse que não sabia e que ela estava invadindo.
Ela disse que se ela era uma invasora ele devia chamar a polícia e eles resolveriam tudo na delegacia. Foi quando ele deixou os ombros caírem e sentou na cama. Tirou a carteira do bolso da calça, deu duzentos reais em notas de cinquenta para a moça que ainda estava ali, meio perdida, e acendeu um cigarro enquanto ela ia embora. Tragou longamente, e então olhou de novo pra Julia.
-Que putaria é essa? -Ela perguntou.
O sujeito, muito a contragosto, explicou tudo.
O apartamento da André da Rocha era dele.
E de Vanderlei.
E de outros dois amigos.
Eles compraram o lugar juntos, mobiliaram, decoraram, aparelharam, e mantinham o apartamento em sociedade.
Era um covil. Um "abatedouro" onde os quatro levavam moças que conheciam. Namoradas, amantes, prostitutas...
Eram todos casados. Nenhum deles morava em Porto Alegre, eram empresários, médicos, profissionais liberais, podiam dar-se ao luxo de matar um ou dois dias de trabalho por semana, mentiam às esposas que viajavam a trabalho nos finais de semana e voilá. Tinham o seu recanto.
Um lugar secreto onde viviam vidas duplas como se fossem homens com a metade de sua idade. Quiçá menos.
Julia perguntou onde Vanderlei morava.
-Tu sabe que eu não vou te dizer isso, guria. -Foi o que ele respondeu.
Era verdade. Ela sabia. Se pôs a chorar.
Ele esfregou seu ombro, "isso passa", disse.
Arrumou algumas coisas que estavam fora de lugar. Colocou uma toalha, um roupão e alguns DVDs dentro de uma bolsa de viagem elegante, calçou as meias e os sapatos. Disse que Julia dormisse ali. Não viria mais ninguém, e Vanderlei apareceria na terça. Poderiam conversar.
Julia seguiu o conselho, mas, no dia seguinte, saiu cedíssimo para o trabalho. Trabalhou quase no piloto automático, matou a aula da noite, foi pra casa e preparou seu especialíssimo frango descabelado. Colocou a comida em uma travessa com tampa e foi para o prédio de Vanderlei, onde ficou esperando que ele chegasse.
Assim que dobrou a esquina Vanderlei viu Julia e abriu um sorriso. Andou até ela devagar, e, quando estava a poucos metro dela abriu os braços. Ela andou até ele e o abraçou de leve. Ele a beijou, ela deixou, mas não retribuiu de maneira lá muito efusiva.
Subiram, ele entrou no apartamento, jogou a bolsa sobre o sofá, e perguntou o que Julia tinha consigo que cheirava tão bem. Ela mostrou a iguaria dentro da travessa, e disse que ele tomasse banho enquanto ela esquentava e servia, ao que ele atendeu prontamente.
Enquanto a comida rodopiava dentro do microondas e Vanderlei tomava seu banho, Julia, como uma larápia, vasculhou sua carteira. Encontrou um porta-cartões de visita, e dois telefones celulares, um deles desligado. Ligou rapidamente o aparelho enquanto guardava um cartão de visita no bolso da calça jeans. Ali estava, na letra C, "casa", e um número de oito dígitos. Julia anotou nas costas da mão, desligou o celular e guardou-o de volta onde o encontrara.
Quando Vanderlei saiu do banho encontrou a mesa posta com o especialíssimo frango descabelado de Julia.
Ela sorriu e disse que recebera uma ligação da prima. Estava doente e precisava de ajuda, se desculpou, deu um beijo rápido e meio sem graça em Vanderlei e saiu. Parou na primeira lan house que encontrou, foi direto á lista telefônica on-line, onde encontrou o endereço referente ao número de telefone que encontrara na agenda de Vanderlei.
Era em São Leopoldo.
Não se preocupou, estava no Centro, em cinco minutos assomava na fila de trabalhadores e estudantes que aguardavam o ônibus de volta a São Leo, em quarenta minutos estava desembarcando na cidade do Vale dos Sinos, entrou em um táxi e deu o endereço.
Pouco mais tarde parava em frente a um condomínio elegante. Andou decidida até o interfone, e, quando se preparava para tocar o botão do número correspondente, parou.
O que ia fazer?
Dizer a uma mulher que seu marido era um pilantra, um salafrário, ou algo que o valha. OK... Parecia um plano. Mas onde esse curso de ação iria desembocar?
Um divórcio? N
ão é o fim do mundo, certo, mas... E se houvesse uma família? O que a intervenção de Julia faria com os filhos de Vanderlei? Com as filhas? E se uma família fosse destruída por culpa de Julia? Ela não queria essa responsabilidade. Não fora amante (Nossa, como ela odiava essa palavra.) de Vanderlei de propósito, fora tão vítima das circunstâncias quanto a esposa dele, não é?
Por mais que quisesse ver o Vanderlei, aquele sujo pusilânime e asqueroso se dar mal, não podia aparecer na casa dele dizendo que ele tinha uma amante. Suspirou e deu as costas ao painel repleto de números, e voltou com passos lentos em direção ao ponto de ônibus mais próximo.
Naquela noite dormiu mal, pensando no que fazer. No dia seguinte, estava decidida. Ligou para Vanderlei e marcou um encontro. No pub onde se conheceram. Pontualmente ás seis e meia da tarde, Julia estava entrando no bar e dando de cara com Vanderlei. Sentou-se na mesa sem parar quando ele abriu os braços. Disse-lhe que sabia de tudo. Do consórcio de salafrários que gerenciava o apartamento da André da Rocha, da família em São Leopoldo, das amantes, tudo. Disse que não queria mais vê-lo naquela vida, nem pintado de ouro, e que se, no futuro próximo, o visse na mesma calçada que ela, gritaria "estupro" do alto de seus pulmões.
-Tu tem filhos?- Quis saber.
Vanderlei, com a cabeça baixa respondeu:
-Dois guris e uma guria.
-Qual a idade deles?
-O mais velho tem vinte e dois, a Sofia tem dezenove, e o Carlos tem treze.
Julia tremeu de raiva. O filho mais velho do Vanderlei tinha a idade do ex-namorado de Julia. Era só dois anos mais moço que ela.
Julia respirou fundo, e sugeriu a Vanderlei que contasse tudo a sua esposa. Disse-lhe que o modo como ele levava sua vida não era justo para com ela, e nem consigo próprio se não estava feliz.
Não lhe diria para pensar nas crianças, achava que, como pai, ele sabia o quanto elas eram importantes.
-Pensa na tua vida, Vanderlei.
Julia foi embora, enquanto andava, pensava que não sabia o que Vanderlei faria. Talvez ele ficasse com medo de Julia desmascará-lo e agisse com correção, talvez apenas encontrasse outra moça de vinte e quatro anos para substituí-la, ela não sabia, não podia, e, pra ser bem franca, nem queria saber.
Só o que ela sabia, é que dali por diante, teria os dois pés atrás quando encontrasse um quarentão charmoso e seguro de si em um pub.
Pub, o cacete. Em um bar.

2 comentários:

  1. hahaha Cd da Sade foi muito bem sacado, ''you think I' leave your side baby? you know me beter than that'' hahaha clássica dos jantares á luz de vela, eu sugiro essa que é minha favorita pra Julia quando ela tiver coragem de colocar os pés num pub novamente !

    Ahh, muito legal como você sempre fala da sua cidade em suas histórias....Eu tenho vontade de fazer mestrado em ai em Porto Alegre, São Leopoldo mora mais família, André Da Rocha moram as amantes e não se pode das muita trela pros quarentões charmosos daí. Vai falando mais que no google eu não acho esse tipo de informação rsrsrs

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  2. Ahahaha, pois é, quem sabe a Secretária Municipal de Turismo me coloca na folha de pagamento, né?
    E, putz, Sade é muito clássico em jantares românticos...

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