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quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Quando o amor acaba...


Eram mais de três e meia da manhã quando a Rose entrou em casa na ponta dos pés. Na mão direita segurava a bolsa e os sapatos de salto alto sobre os quais não conseguiria se equilibrar nem sob decreto imperial, na esquerda trazia uma garrafa long Neck quase cheia de uma daquelas bebidas prontas de vodka e suco. Entrou, fechou, com cuidado, a porta atrás de si enquanto decidia se acenderia a luz, ou não. Achou melhor não ligar. Seus olhos se habituariam à escuridão e ela não precisaria correr o risco de acordar o Ayrton. Trocaria de roupa no banheiro, detaria no sofá e, na manhã seguinte, diria que chegou antes da uma e meia, e que acabou pegando no sono ali, mesmo.
Ao entrar na sala, na penumbra atacou o pé da poltorna com o dedo mínimo do pé direito. Gritou um "Ai!" Sussurrado, e deu mais um passo, e chutou algo. Algo que não devia estar ali. O pé do Ayrton.
-Tava boa a noite, Rose?- Perguntou ele, sentado nas trevas.
-Que horror, Ayrton! O que tu faz sentado sozinho no escuro á essa hora?- Quis saber Rose, após se recuperar do susto.
-Nada... Não tinha o que fazer... Tava boa a noite?
-Tava, tava... Saí com as gurias, a gente foi á um barzinho, pra conversar, mesmo, mas aí a Lê disse que precisava dançar, por que tinha brigado com o namorado, e queria ver gente bonita dançando, e aí a gente foi...
-Podia ter ligado. Eu fiquei preocupado. Liguei pro teu celular, mas deu caixa postal.
-Bah, nem ouvi, no meio daquela zoeira...
-Hm...
-O quê, Ayrton?
-Como assim, "O quê", Rose? Eu não disse nada.
-Não disse, mesmo. Deu uma gemida, aí. Quer falar alguma coisa fala, logo. O que que é? O que tá te incomodando?
-Por que tu tá tão na defensiva, Rose? Alguma coisa aconteceu diferente do que tu queria essa noite?
-Ah, eu sabia. Eu sabia. Tu tá paranóico, Ayrton. Ficou a noite inteira aí, sentado no escuro esperando eu chegar... Qual é teu problema? Tu acha que é meu marido? Meu dono?
-Se eu... Eu não sei se tu reparou, mas tu chegou em casa ás três e meia da madrugada, de cara cheia, depois de passar a noite inteira sabe Deus onde, fazendo sabe Deus o quê, na companhia daquelas tuas amigas piranhas, como, aliás, tu faz com alguma frequência, e eu nunca disse que tu não podia ir. Em nunca fiquei ligando querendo saber á que horas tu iria chegar, até hoje, quando deu três da manhã e eu fiquei preocupado, então, acho que isso já responde a questão de eu achar que sou teu "dono", Rose.
-Então o que que é, Ayrton? Tu acha que eu saí pra dar? É isso? Tu acha que eu tava dando na madrugada porto alegrense?
-Na hora em que eu achar que eu devo me preocupar com isso tu vai achar só a tua mala na porta do apartamento, Rose. Por que eu não gosto de sentir ciúmes e acho traição a coisa mais escrota do mundo, especialente entre pessoas que, como nós, não tem nenhuma obrigação uma pra com a outra.
-Ah, então é assim? Teu apartamento e se eu não me comportar direitinho é rua? É isso?
-Qual a tua definição de "comportar direitinho"? Por que... São três da manhã, tu tá bêbada na sala aventando a hipótese de ter saído, nas tuas palavras, pra "dar" pra alguém, isso, no meu tempo, tava bem longe de ser se "comportar direitinho".
-Não vem com essa de "no meu tempo", bobalhão, que eu sou mais velha que tu, aliás, tu sabe, tá sempre jogando isso na minha cara.
-Não, Rose, não. Eu raramente lembro que tu é mais velha, até por que, tu te comporta como se tivesse dezesseis anos a maior parte do tempo.
-Vai pro raio que te parta!
Foi ali que acabou a relação. Pra Rose, pelo menos. Pra ela "vai por raio que te parta" foi a fronteira, a linha a ser ultrapassada, o momento em que ela percebeu que não respeitava mais o Ayrton, em que ela percebeu que aquelas saídas esporádicas com as amigas dela, em que ela até flertava um pouco, mas onde jamais o traíra, de fato, eram o ponto alto de sua vida de "pseudo-casada". Foi ali que ela viu que não gostava da pessoa que tinha virado naquela relação, e que talvez ela tivesse ficado daquele jeito por causa do Ayrton, do jeito hiper bom-moço dele, daquela coisa politicamente correta que chegava a dar nos nervos de vez em quando, pelo fato de que, quando eles começaram a namorar, todos diziam que eles se completavam, ela impulsiva, comunicativa, explosiva, e ele comedido, tímido, contido. E ela gostava dele, gostava de ele se comportar como se fosse um homem com o dobro da idade, gostava de seu jeito cerebral, da forma como ele falava... Talvez por isso Rose tenha começado a agir como uma caricatura de si mesma, tentando, quiçá inconscientemente, ser mais e mais a parte que faltava a Ayrton, a ponto de reforçar coisas que ela própria considerava defeitos. Até ali. Até dizer "vai pro raio que te parta", colocando um ponto final à conversa, e perceber que odiara tudo o que disse durante a discussão. Dali em diante não tinha mais volta pra Ayrton e ela, era cada um por si. Ela arrumou as malas e, por volta das cinco da manhã estava saindo. Ayrton não disse nada. Nem sequer pediu que ela ficasse. Ela foi pra casa da tia, que tinha um quarto vago, onde ficaria até pensar no que fazer.
O ayrton olhou pela janela a Rose pegar o táxi que ele chamou pelo telefone. Não queria que ela ficasse quarando em frente ao prédio no meio da madrugada, e sabia que ela não iria lembrar de ligar pra chamar, então, pareceu o mais correto a fazer.
Ayrton sentiu um pequeno vaziu ao chegar ao quarto e perceber quão monocromático ele ficava sem as almofadas coloridas e bichos de pelúcia de Rose. Foi engraçado, também, perceber como sentia falta de alguém a quem já não amava mais. Ayrton, com seu descontrolado espírito analítico, sabia, aliás, exatamente quando deixara de amar Rose. Não foi quando ela o mandara ir para um raio que o partisse, nem quando suas saídas com as amigas de moral duvidosa tornaram-se mais frequentes, nem quando ela começou a negar seus convites para ir ao cinema ou ao theatro. Foi cerca de dois meses atrás, quando ela mandara uma mensagem de texto pra ele, convidando-o para alguma coisa, e após vários "beijo" escritos sem separação, havia um emoticon, uma carinha piscando de língua de fora. Foi a primeira vez que Ayrton não fez a careta representada no emoticon após ler o recado. Pra ele, um sinal claro de que o amor terminara.

2 comentários:

  1. O começo do fim foi culpa do emotion. Pláusivel isso.

    Mas puxa, que triste....é curioso que mesmo na ausência do amor, a falta se faz presente, é inevitável .

    E '' tu acha que eu tava dando na madrugada porto alegrense '' foi muito engraçado. Muito mesmo.

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  2. Ahahaha, não foi por causa da carinha, a carinha foi só aquele indício irrevogável.

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