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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

(Re)Aprendendo a Voar


Ele estava escorado na porta da cozinha com uma lata de Pepsi na mão, ela estava parada na frente do fogão, mexendo o conteúdo de uma panela com uma colher de madeira.
Ao fundo ressoava Learn to Fly, do Foo Fighters.
"Run and tell all of the angels... This could take all night..."
Ela tampou a panela, largou a colher sobre um guardanapo de papel em cima de uma mesinha de fórmica amarela, virou-se pra ele e sorriu:
-Agora é só esperar ficar pronto.
Ele sorriu de volta:
-E ter o telefone da pizzaria à mão.
Ela jogou o pano de prato que usava pra enxugar as mãos nele, que se defendeu com uma risada, enquanto devolvia o pano de prato pra ela, que disse:
-Tu é muito calhorda. Eu devia estar cozinhando pra um namorado. Pro futuro pai dos meus filhos, não pra um monstro que nem tu... Nem sei porque eu tô me dando esse trabalho esse calorão.
"Hook me up a new revolution... Cause this one is a lie...We sat around laughing and watched the last one die..."
-Cobaia - Ele disse, enquanto se afastava de novo.
-Hã? - Ela perguntou.
-Cobaia. - Ele sustentou. -Tu não pode correr o risco de afugentar o amor da tua vida, o pai dos teus filhos, então tu pratica comigo. Me usa como cobaia, vendo como tu está de dotes culinários.
-Hmmm. - Ela assentiu, olhando pra cima de cenho franzido. -Bom ponto, lorde Stark, bom ponto.
-Entretanto - Ele seguiu -Talvez tivesse sido mais prudente procurar alguém mais exigente que eu. Tenho paladar de ogro, gosto de quase tudo.
Ela deu uma risada forçada de deixar Rocket Racoon com inveja:
-Rá! Tu é a pessoa mais fresca que eu conheço pra comer, criatura!
-Sou nada! - Ele protestou.
-Tu é! - Ela insistiu. -Meu Deus, nunca vi um homem do teu tamanho ter tanta frescura pra comer... O que é tu comendo lanche do McDonald's? Catando cebola com os dedos...
E imitou o gesto dele catando, com o polegar e o indicador, o dedo mínimo mais aberto que os demais, os pedaços de cebola da superfície do sanduíche aberto.
Ele riu:
-Nah... Eu cato a cebola porque não gosto... Frescura seria se eu me recusasse a comer. - Racionalizou.
"I'm looking to the sky to save me... Looking for a sign of life..."
-Nem vem... Cebola: Não come. Pepino: Não come. Churrasco de ovelha: Não come... Tu não sabe o desgosto que foi pro meu pai-
-Mas eu comi o churrasco de ovelha do teu pai! Eu comi! - Ele interrompeu. -E isso que eu detesto carne de ovelha. Não como nem o churrasco de ovelha do meu pai, que é o melhor churrasqueiro do Rio Grande do Sul...
-Todo mundo diz isso do próprio pai. - Ela disse, fazendo pouco caso.
-É, mas no meu caso é diferente. Todo mundo que come o churrasco que meu pai faz diz a mesma coisa. Até quem é ranheta e se recusa a admitir começa a dizer "Ah, o melhor churrasco do mundo é o do meu pai, empatado com o do teu pai...". - Ele explicou.
-Bom, não importa, porque eu nunca comi o churrasco do teu pai, e tu fez pouco caso do churrasco de ovelha do meu pai. - Ela disse, com pouco caso.
-Não é verdade... Não fiz pouco caso. Só disse que, não gostava de ovelha. Mas acrescentei que estava muito bom. - Ele se defendeu.
-Não, não... Tu disse "Eu não gosto de carne de ovelha, mas essa não tá ruim."!
-Ah... Isso era um elogio de alguma forma... - Ele disse, rindo ao perceber a grosseria involuntária.
"Fly along with me, i can't quite make it alone... Try and make this life my own..."
Ficaram parados de novo, ela se apoiou na geladeira e abriu a porta, curvando-se pra dentro do eletrodoméstico:
-Calooooooooooooooor... - Disse, enquanto esgueirava-se, reborcando o corpo esguio por cima das prateleiras e se esquivando de jarros e frascos.
Ele, desconfortável ao perceber a lombar nua dela surgir entre a regata branca e o short de algodão amarelo pigarreou olhando em volta:
-Tu não tem nenhum gato, não é?
Ela saiu de dentro da geladeira fazendo uma expressão entre a surpresa e a confusão:
-Não...
-É... Eu gosto disso... Sem animais de estimação. - Ele disse.
Ela o encarou:
-Mas tu tem um cachorro... Um baita cachorro, diga-se de passagem.
-É... Eu sei... Mas é diferente... Mulher solteira e sem filhos com animal de estimação, especialmente gato, parece... Sei lá... Estar tentando compensar alguma coisa... Alguma falta de conexão... - Ele conjecturou sem muita certeza.
-Tipo a velha louca dos gatos dos Simpsons...?
-Tipo isso... - Ele concordou.
"Looking for something to help me burn out bright... I'm looking for a complication... Looking cause I'm tired of trying..."
Ela ficou encarando ele por algum tempo... Tomou fôlego e virou levemente o rosto fechando um olho:
-Tem algum elogio oculto nisso aí, também, não tem?
Ele sorriu.
-Viu? Tu me entende...
Ela riu.
-Tu tá elogiando a minha... Como tu diz? Solidez de caráter?
-Firmeza - Ele corrigiu. -Tua firmeza de caráter. E a tua força interior...
-Porque eu sou uma solteirona sem filhos, cachorros ou gatos e tu não entende como é que eu ainda não cortei meus pulsos com uma faca de manteiga...
Ele fez uma cara surpresa e deu de ombros como quem admite que não tem solução pra conclusão à que ela chegou.
"I think i'm done nursing the patient... It could wait a night... I'd give it all away if you give me one last try... "
Ela disse:
-Tu é horrível. Todos os teus elogios encerram uma ofensa oculta.
-Como eu elogiar a tua coragem em andar de short com essas pernas finas de saracura?
"We live happily ever trapped if you just save my life..."
Ela abriu a torneira e deu um tapa na água molhando-lhe as calças.
Ele protestou com um "nããããããããããããããããããããão!!!" e os dois começaram a rir muito. Ela riu de se dobrar, e então parou de rir, cruzou o braço esquerdo diante do peito, e apoiou o cotovelo esquerdo no antebraço, e colocou o polegar diante dos lábios, e sorriu olhando pra frente como quem sente falta de alguma coisa.
Ele se aproximou dela, a abraçou e deu-lhe um beijo no rosto, perto da orelha. Um cheiro forte de laranja-lima encheu-lhe as narinas. Afastou-se um pouco, e segurou o queixo dela a olhando nos olhos muito, muito azuis. Ela parecia assustada. Aturdida. Sem saber como reagir àquela aproximação excessiva e súbita.
-Alemoa... - Ele disse.
-Que foi? - Ela perguntou, olhando pra ele, surpresa.
-Teu bobó de camarão tá queimando. - Ele disse com um sorriso contido.
-Biltre! - Ela exclamou virando-se para a panela e apagando o fogo, ligeira.
"Make my way back home when I learn to fly high... Make my way back home when I learn to fly... Make my way back home when I learn to, learn to, learn to..."
Ela ergueu a tampa da panela com uma expressão que deve ter sido como a dos Cruzados de Jerusalém vislumbrando a aproximação das hordas de Saladino, mas imediatamente a expressão se abrandou, e após uma mexida rápida com a colher de pau, ela declarou:
-Deu uma queimadinha embaixo... Mas nada de grave. Tu gosta de arroz de carreteiro queimado no fundo, quer dar chance ao meu bobó? - Perguntou.
Ele estava apoiado nos cotovelos, debruçado sobre o balcão da cozinha, sorria olhando pra ela.
-Não vejo motivo pra não experimentar...
Ela o olhou de esguelha, abriu um sorriso desconfiado:
-Tu tá bem?
Ele, ainda sorrindo respondeu:
-Vou aprender a ficar...

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